sexta-feira, 30 de abril de 2021
E.070.É Ela! É Ela! É Ela! É Ela! - Alvares de Azevedo
É ela! É ela! - murmurei tremendo,
E o eco ao longe murmurou - é ela!
Eu a vi... minha fada aérea e pura -
A minha lavadeira na janela!
Dessas águas-furtadas onde eu moro
Eu a vejo estendendo no telhado
Os vestidos de chita, as saias brancas;
Eu a vejo e suspiro enamorado!
Esta noite eu ousei mais atrevido
Nas telhas que estalavam nos meus passos
Ir espiar seu venturoso sono,
Vê-la mais bela de Morfeu nos braços!
Como dormia! Que profundo sono!...
Tinha na mão o ferro do engomado...
Como roncava maviosa e pura!...
Quase caí na rua desmaiado!
Afastei a janela, entrei medroso...
Palpitava-lhe o seio adromecido...
Fui beijá-la... roubei do seio dela
Um bilhete que estava ali metido...
Oh! de certo... (pensei) é doce página
Onde a alma derramou gentis amores;
São versos dela... que amanhã de certo
Ela me enviará cheios de flores...
Tremi de febre! Venturosa folha!
Quem pousasse contigo neste seio!
Como Otelo beijando a sua esposa,
Eu beijei-a a tremer de devaneio...
É ela! É ela! - repeti tremendo;
Mas cantou nesse instante uma coruja...
Abri cioso a página secreta...
Oh! Meu Deus! Era um rol de roupa suja!
Mas se Werther morreu por ver Carlota
Dando pão com manteiga às criancinhas
Se achou-a assim mais bela - eu mais te adoro
Sonhando-te a lavar as camizinhas!
É ela! É ela! meu amor, minh'alma,
A Laura, a Beatriz que o céu revela...
É ela! É ela! - murmurei tremendo,
E o eco ao longe suspirou - é ela!
C.085.Cores de Verão - Angela Bretas
O verão está chegando
E com ele as cores da estação
Refletido nas cores das passarelas
Nas cores do por do sol radiante
Do flamingo rosado
Do verde das árvores
Do azul do céu
Nas cores estampadas
Nas faces coradas
Nos corpos bronzeados
Que passam a desfilar
São cores 'calientes' que fazem que a gente
Se sinta contente e note no ar
A magia de amar...
De amar a vida
Que é colorida
Apesar de sofrida
Com certas feridas
Mas pintada de cores
Que nos inspiram a cantar...
Cantar com alegria
E apreciar os sabores
Das frutas gostosas
Variadas de cores
Cores resfrescantes
Que nos fazem lembrar
Do vermelho da melancia
Ao amarelo do mamão...
Cores variadas
Que representam o verão!
C.084.Conversando com as estrelas - Angela Bretas
Diz para mim estrela brilhante
Como faço para suprir a falta de um alguém
Que me faz sentir completa, confiante
E me leva muito mais do além...
Conta para mim estrela cadente
O que é que digo ao meu coração
Que agora encontra-se doente
Recordando uma doce paixão...
Me mostra o caminho estrela guia
E me ensina a lutar contra esta dor
Acabe com esta agonia
Não me deixe morrer de amor...
Ilumine meus caminhos estrela cintilante
Ajude-me a acreditar em um sonho bonito
Acabe com esta ausência distante
Traga prá perto meu tesoro infinito...
Me escuta estrela d'alva
Ouça esta prece de quem tanto precisa
Que nasce do fundo d'alma
E eleva seu desejo em forma submissa...
Não me deixa sozinha estrela do céu
Faça eu acreditar no verbo amar
Me enlace com seu sagrado véu
E me leve para bem longe, além do mar...
Vem comigo estrela de luz
Me embala em sua doce visão
Seu brilho que tanto reluz
Ameniza a dor da solidão...
Acredita em mim estrela distante
Quando rogo por sua piedade
Sua força é grande, é possante
E pode me levar novamente ao encontro da felicidade...
C.083.Cio - Angela Bretas/Isar Maria Silveira
"...amando a gente acredita em qualquer possibilidade,
e essa é uma das belezas do amor."
Lya Luft
Para amar-te, sou inteira.
Quero a perfeição para atender teus desejos
e nesse exercício, corpo e alma,
amadurecem em sintonia de perfeita guirlanda
em que flor por flor são entrelaçadas.
O amor tem disso:
a possibilidade da transformação.
É em teus olhos que me busco,
em teu corpo me encontro.
Fábrica dos mais loucos devaneios,
coração é engenho de açúcar
que nos inunda em deliciosas entregas.
Por amar-te sou mulher.
Quero sorver a veracidade de tuas palavras trôpegas
e a delícia de saber-me tua.
Sentir-me melada como cana caiana.
Deixar-me escorrer como a areia sinuosa,
pincelando rastros vestígios na tua tez avermelhada ,
marcada por beijos meus...
Misturar meu fel com teu mel
e obter o tempero exato, raro...
Enroscar meus
desejos com tuas taras,
e viver o ápice do gozo
em um ímpeto de paixão e despudor...
entregar-me ao riso solto...
ao corpo mole...
mergulhar em tua boca louca,
e renascer fêmea completa... em teus vãos.
Sou naufraga em teus braços,
perco-me em teu mar de ondas bravias.
Em completo desalinho, fundimos nossos corpos.
Tuas mãos subvertem antigas pousadas
e como um Deus, brincando de dar prazer,
me recrias plena de possibilidades ainda não desvendadas...
B.028.Buscando uma Inspiração - Angela Bretas
Hoje parecia ser um dia como qualquer outro, sentei-me aqui para tentar escrever algo... Mas a inspiração não veio, às vezes ela some, desaparece e me torna inapta a escrever. Levantei-me e resolvi dar uma caminhada em minha redondeza e assim tentar ir em busca de algo que pudesse me fazer inspirada, algo que eu mesma ao certo não sabia o que...
Sabe quando a gente está assim meio perdida, sem assunto? Pois é, apesar de ser um dia lindo, sol quente, céu azul ela (inspiração) estava escondida e não queria aparecer. Mas eu sabia que mais cedo ou mais tarde ela apareceria...
Saí caminhando e a cada passo que eu dava ela chegava de mansinho de forma diferente, primeiro passou um carro veloz perto de mim, e lembrei que sempre estamos correndo, sempre com pressa e às vezes é por isto que não temos tempo de olhar um pouco dentro de nós e vermos que podemos dedicar um pouquinho de nosso tempo para ir em busca de algo que nos inspire...
Sentei-me à beira de um lago e, ao contemplar alguns patos e cisnes que nadavam tranqüilamente, eu me transportei até eles e deu vontade de sair nadando... de sair voando... e ir de encontro à sensação de liberdade, conseguindo ultrapassar fronteiras, rios e mares ao encontro de mim mesma...
Olhei para o mesmo céu azul e neste céu nuvens carregadas começavam a aparecer no horizonte e me conscientizei que nós, humanos, muitas vezes deixamos que nuvens obscuras apossem de nossa alma, de nossa mente e não fazemos nada para que elas se dissipem, deixamos que o céu de nosso ser fique nublado por não sabermos como perdoar, por não termos coragem de pedir desculpas, por não acreditarmos em amizade sincera, por não valorizarmos o que nos é dado...
Com medo de que iria começar a chover retornei pelo mesmo caminho e outra vez a inspiração veio me dizer que muitas vezes deixamos o medo tomar conta de nós e não temos coragem de enfrentar as situações de frente, não ficamos para ver o que pode acontecer, não damos chance ao percurso natural da vida, pois escutamos a voz insistente do medo em primeiro lugar. Muitas vezes este medo nos priva de várias oportunidades, no meu caso estava me privando de ficar ali sentada admirando a bela paisagem...
Em poucos minutos em que fui buscar algo que me inspirasse, consegui me conscientizar que a inspiração está dentro da gente, o que faz com que ela apareça é somente a nossa capacidade de ler as pequenas e simples coisas que nos cercam... é a nossa capacidade de sentir o mundo girando à nossa volta... de perceber que o tempo passa a cada segundo... de tentar junto com este mundo rodando e este tempo passando usar nossa imaginação e crescer, notar, sentir, ver, achar e encontrar o que estamos procurando...
E assim cheguei aqui e consegui passar a vocês, leitores, um pouco do que consegui captar em apenas alguns minutos que me predispus a ir em busca de uma inspiração.
E vocês, já foram ao encontro da sua, hoje? Não precisa ir muito longe, basta que olhem dentro de si mesmos!
B.027.Brasil 500 anos - Angela Bretas
Brasil terra de ouro,
Ar puro, rios, cachoeiras...
País de riquezas, tesouros,
Também de moças faceiras...
Brasil grandioso,
Repleto de lutas, conquistas...
Pais de histórias, glorioso,
Imenso à perder de vista...
Brasil de futebol, pagode, folias,
Carnaval, samba, axé...
País que irradia alegria,
E é berço do Rei Pelé...
Brasil de Maria Bonita, Lampião,
Guerreiros destemidos...
País de cangaceiros do sertão,
Que nunca serão esquecidos...
Brasil do Rio de Janeiro,
Lugar de grande esplendor...
País que será sempre o primeiro
A ter seu Cristo Redentor...
Brasil da Mata Atlântica,
Que estende-se como um tapete...
País da Floresta Amazônica,
Coberto de muito verde...
Brasil do cacau, café, borracha,
Milho, guaraná, algodão...
País da aguardente, cachaça,
E da farinha de pilão...
Brasil dos Pampas, pinheiros,
Churrasco e chimarrão...
País que abriga pioneiros,
No mesmo pedaço de chão...
Brasil de Manaus, Santarém,
Florianópolis, Salvador, Cuiabá...
País dos Estados de São Paulo, Belém,
Ceará, Rondônia e Paraná...
Brasil do pão-de-queijo, cocada,
Iguarias sem iguais...
País do arroz-doce, feijoada,
Que só lá é que se faz...
Brasil de Aleijadinho, Rui Barbosa,
Drummond, José de Alencar...
País de pessoas famosas,
Que sempre iremos lembrar...
Brasil das Cataratas do Iguaçú,
Lugar nenhum possui esta grandeza...
País do Pelourinho e do rio Itajaí Açú,
Locais de tamanha beleza!
Brasil de céu limpo, sol azulado,
Praias diversas, mar infinito...
País de corpos bronzeados,
Em pequenos bikinis bonitos...
Brasil do rio Tocantins,
Majestoso, profundo e visitado...
País do Solimões que não tem fim,
Onde não se enxerga do outro lado...
País de grandes boiadas,
Fazendas, peões e berrante...
País de vaqueiros e festas animadas,
Que levantam poeira no horizonte..
Brasil de Elis Regina, Vinícius, Jobim e Toquinho,
Mestres da MPB...
País que reflete o carinho,
Com talentos que só lá é que se vê...
Brasil do Pantanal,
Repleto de vida selvagem...
País de flora e fauna sem igual,
Como se fossem miragens...
Brasil em 500 anos,
Sua terra foi desbravada...
País de índios, brancos, negros, mulatos, ciganos,
Por todos a Pátria amada!
B.026.Brasa - Angela Bretas
Dispo-me
Sem pudor
Entrega total
Desejo
Tremo
Suplico
Rogo
Chamo por ti
Apago tua brasa
Concedo
Chego
Explodo
Gozo
És meu homem...!
B.025.Branca Noite de Luar - Abgar Renaut
Mal o dia se esgueira e foge entre as árvores do crepúsculo,
insinuam-se os seus finais entre as dúvidas do nascer da noite.
Pára o rio e sua viagem. Cessam as águas a sua voz.
Cantos de pássaros interrompem-se e tombam nos ouvidos da solidão.
Póstumos bois adormecem no relvado as suas sombras,
e um gesto final do ocaso conduz a ovelha derradeira.
Entre os rebanhos recolhidos recolheu-se a tarde
e, enquanto as distâncias se estiram brancamente,
lúcido vinho vai a terra embebedando:
o chão é claro sonho e firmamento.
Verte o céu a sua azul antiguidade
sobre as formas, as ausências e os corações dos homens,
e a lua vai abrindo em leve solo nas alturas
imaginativas ruas de silêncio, de outrora,
de alva tristeza e amoroso pensamento.
B.024.Borghi mano - Adelino Fontoura
Ao doce timbre harmonioso e brando
Da tua voz, ó alma enamorada,
Sinto minha alma em sonhos embalada
E como que eu também fico sonhando!
Como agitava o vento, perpassando,
A harpa eólea no salgueiro alada,
Tal me agita essa voz apaixonada
Quando, ó ave de amor, surges cantando.
Ouvir-te é como ver nascer a aurora:
Tudo inunda de luz, tudo ilumina
A tua voz angélica e sonora.
Solta, pois, a volata peregrina!
Ama, geme, soluça, canta e chora,
Celeste Aída, Malibran divina!
B.023.Boêmios - Alvares de Azevedo
(Ato de uma comédia não escrita)
Totus mundus agit histrionem (proverbio do tempo de Shakespeare)
Prólogo
Levanta-se o pano até o meio. Passa por debaixo e vem até a rampa um velho de cabeça calva, camisola branca, carapuça frígia coroada de louros. Tem um ramo de oliveira na mão. Faz as cortesias do estilo e fala:Dom Quixote! Sublime criatura!
Tu sim foste leal e cavaleiro,
O último herói, o paladim extremo
De Castela e do mundo. Se teu cérebro
Toldou-se na loucura, a tua insânia
Vale mais do que o siso destes séculos
Em que a Infâmia, Dagon cheio de lodo,
Recebe as orações, mirras e flores,
E a louca multidão renega o Cristo!
Tua loucura revelava brio.
No triste livro do imortal Cervantes
Não posso crer um insolente escárnio
Do Cavaleiro andante aos nobres sonhos,
Ao fidalgo da Mancha-cuja nódoa
Foi só ter crido em Deus e amado os homens,
E votado seu braço aos oprimidos.
Aquelas folhas não me causam riso,
Mas desgosto profundo e tédio à vida.
Soldado e trovador, era impossível
Que Cervantes manchasse um valeroso
Em vil caricatura, e desse à turba,
Como presa de escárnio e de vergonha,
Esse homem que à virtude, amor e cantos
Abria o coração!
Estas idéias
Servem para desculpa do poeta.
Apesar de bom moço, o autor da peca
Tem uns laivos talvez de Dom Quixote.
E nestes tempos de verdade e prosa -
Sem Gigantes, sem Mágicos medonhos
Que velavam nas torres encantadas
As donzelas dormidas por cem anos-
Do seu imaginar esgrime as sombras
E dá botes de lança nos moinhos.
Mas não escreve sátiras: apenas
Na idade das visões-dá corpo aos sonhos.
Faz trovas, e não talha carapuças.
Nem rebuça no véu do mundo antigo,
P'ra realce maior, presentes vícios.
Não segue a Juvenal, e não embebe
Em venenoso fel a pena escura
Para nódoas pintar no manto alheio.
O tempo em que se passa agora a cena
É o século dos Bórgias. O Ariosto
Depôs na fronte a Rafael gelado
Sua c'roa divina, e o segue ao túmulo.
Ticiano inda vive. O rei da turba
É um gênio maldito-o Aretino.
Que vende a alma e prostitui as crenças.
Aretino! essa incrível criatura,
Poeta sem pudor' onda de lodo
Em que do gênio profanou-se a pérola
Vaso d'oiro que um óxido sem cura
Azinhavrou de morte homem terrível
Que tudo profanou co'as mãos imundas,
Que latiu como um cão mordendo um século,
E, como diz um epitáfio antigo,
Só em Deus não mordeu, porque o não vira.
Como ele, foi devasso todo o século.
Os contos de Boccaccio e de Brantôme
São mais puros que a história desses tempos.
Tasso enlouquece. O Rei que se diverte
-O herói de Marignan e de Pavia
Que num vidro escrevera do palácio
Femme sovem varie, mas leviano
Com mais amantes que um Sultão vivia,
Mandava ao Aretino amáveis letras,
Um colar d'oiro com sangrentas línguas,
E dava-lhe pensões. O Vaticano
Viu o Papa beijando aquela fronte.
Carlos V o nomeia cavaleiro,
Abraça-o e-inda mais-lhe manda escudos.
O Duque João Médicis o adora,
Dorme com ele a par no mesmo leito.
É um tempo de agonias. A arte pálida,
Suarenta, moribunda, desespera
E aguarda o funeral de Miguel Angelo
Para com ele abandonar o mundo
E angélica voltar ao céu dos Anjos.
Agora basta. Revelei minh'alma.
A cena descrevi onde correra
Inteira uma comédia em vez de um ato,
Se o poeta mais forte se atrevesse
A erguer nos versos a medonha sombra
Da loucura fatal do mundo inteiro.
Boas-noites, platéia e camarotes;
O ponto já me diz que deixe o campo.
O primeiro galã todo empoado,
Cheio de vermelhão, já dentro fala:
Estão cheios de luz os bastidores.
Uma última palavra: o autor da peca,
Puxando-me da túnica romana,
Diz-me da cena que eu avise às Damas
Que desta feita os sais não são precisos;
Não há de sarrabulho haver no palco.
É uma peça clássica. O perigo
Que pode ter lugar é vir o sono;
Mas dormir é tão bom, que certamente
Ninguém por esse dom fará barulho.
O assunto da Comédia e do Poema
Era digno sem dúvida, Senhores,
De uma pena melhor; mas desta feita
Não fala Shakespeare nem Gil Vicente.
O poeta é novato, mas promete.
Posto que seja um homem barrigudo
E tenha por Talia o seu cachimbo,
Merece aplausos e merece glória.
ATO ÚNICO
A cena passa-se na Itália no século XVI. Uma rua escura e deserta. Alta noite. Numa esquina uma imagem de Madona em seu nicho alumiado por uma lâmpada.Puff dorme no chão abraçando uma garrafa. Níni entra tocando guitarra. Dão 3 horas.
NÍNIO
lá! que fazes, Puff? dormes na rua?
PUFF, acordando.
Não durmo... Penso.
NÍNI
Estás enamorado?
E deitado na pedra acaso esperas
O abrir de uma janela? Estás cioso
E co'a botelha em vez de durindana
Aguardas o rival?
PUFF
Ceei à farta
Na taverna do Sapo e das Três-Cobras.
Faço o quilo; ao repouso me abandono.
Como o Papa Alexandre ou como um Turco,
Me entrego ao farniente e bem a gosto
Descanso na calcada imaginando.
NÍNIE
mbalde quis dormir. Na minha mente
Fermenta um mundo novo que desperta.
Escuta, Puff: eu sinto no meu crânio
Como em seio de mãe um feto vivo.
Na minha insônia vela o pensamento.
Os poetas passados e futuros
Vou todos ofuscar... Aqui no cérebro
Tenho um grande poema.
Hei de escrevê-lo,
É certa a glória minha!
PUFF
A idéia é boa:
Toma dez bebedeiras-são dez cantos.
Quanto a mim tenho fé que a poesia
Dorme dentro do vinho. Os bons poetas
Para ser imortais beberam muito.
NÍNI
Não rias. Minha idéia é nova e bela.
A Musa me votou a eterna glória.
Não me engano, meu Puff, enquanto sonho:
Se aos poetas divinos Deus concede
Um céu mais glorioso, ali com Tasso,
Com Dante e Ariosto eu hei de ver-me.
Se eu fizer um poema, certamente
No Panteon da fama cem estátuas
Cantarão aos vindouros o meu gênio!
PUFF
Em estátua, meu Níni! Estás zombando!
É impossível que saias parecido.
Que mármore daria a cor vermelha
Deste imenso nariz' destas melenas?
NÍNI
Estás bêbado, Puff. Tresandas vinho.
PUFFO
vinho! és uma besta; só um parvo
Pode a beleza desmentir do vinho.
Tu nunca leste o Cântico dos Cânticos
Onde o rei Salomão, como elogio,
Dizia à noiva-Pulchriora sunt
Ubera tua vino!
NÍNIÉ
sempre um bobo
PUFF
E tu és sempre esse nariz vermelho
Que ainda aqui na treva desta rua
Flameja ao pé de mim. Quando te vejo,
Penso que estou na Igreja ouvindo
Missa Dita por Cardeal.
NÍNI
És um devasso.
PUFF
Respondo-te somente o que dizia
Sir John Falstaff, da noite o cavaleiro:
"Se Adão pecou no estado de inocência,
Que muito é que nos dias da impureza
Peque o mísero Puff?" Tu bem o sabes:
Toda a fragilidade vem da carne,
E na carne se eu tanto excedo os outros,
Vícios não devem meus causar espanto.
Minha alma dorme em treva completíssima
Pela minha descrença... E tu, maldito,
Por que sempre não vens esclarecer-me
Com esse teu farol aceso sempre,
Cavaleiro da lâmpada vermelha
As trevas de minh'alma?
NÍNI
Que leproso!
PUFF
Sou um homem de peso. Entendo a vida;
Tenho muito miolo, e a prova disto
É que não sou poeta nem filósofo,
E gosto de beber, como Panúrgio.
Se tu fosses tonel, como pareces,
Eu te bebera agora de um só trago.
NÍNI
Quero-te bem contudo. Amigos velhos
Deixemo-nos de histórias. Meu poema…
PUFF
Se falas em poema, eu logo durmo.
NÍNI
Uma vez era um rei…
PUFF
Não vês? eu ronco.
NÍNI
Quero a ti dedicar minha obra-prima;
Irás junto comigo à eternidade.
Teu retrato porei no frontispício.
Meu poema será uma coroa
Que as nossas frontes engrinalde juntas.
PUFF
Pensei-te menos doudo. O teu poema
Seria uma sublime carapuça.
Mas, já que sonhas tanto, olha, meu Níni,
Tu precisas de um saco.
NÍNI
Impertinente!
PUFF
Dá-me aqui tua mão. Sabes, amigo?
Passei ontem o dia de namoro;
Minhas paixões voltei à nova esposa
Do velho Conde que ali mora em frente.
Estou adiantado nos amores.
A cozinheira, outrora minha amante,
Meus passos guia, meus suspiros leva.
Mas preciso, com pressa, de um soneto.
Prometes-me fazê-lo?
NÍNI
Se me ouvires
Recitar meu poema…
PUFF
Eu me resigno.
Declama teu sermão, como um vigário.
Mas o sono ao rebanho se permite?
(Entra um criado correndo.)
Roa-me o diabo as tripas, se não vejo
Ali correr com pernas de cabrita
O criado do cônego Tansoni.
NÍNI
Onde vais, Gambioletto?
GAMBIOLETTO
Vou à pressa
Ao doutor Fossuário.
PUFF
Acaso agora
O carrasco fugiu?
NÍNI
Quem agoniza?
GAMBIOLETTO
O Reverendo e Santo Sr. Cônego,
Deitando-se a dormir depois da ceia
No colo de Madona la Zaffeta,
Umas dores sentiu pela barriga,
Caiu estrebuchando sobre a sala...
Morre de apoplexia.
NÍNI
O diabo o leve!
GAMBIOLETTO
E o médico, Srs.!(Sai correndo.)
PUFF
Venturoso!Sempre é Cônego... Níni, dulce et decus
Pro patria mori É doce e glorioso
Morrer de apoplexia! Quem me dera
Morrer depois da ceia, de repente!
Não vem o confessor contar novelas,
Não soam cantos fúnebres em torno,
Nem se forca o medroso moribundo
A rezar, quando só dormir quisera!
Venturosos os Cônegos e os Bispos,
E os papudos Abades dos conventos!
Eles podem morrer de apoplexia!
E se morre pensando-coisa nova!
Quem nunca no viver cansou-se nisso;
Se eles morrerem pensando, ante seus olhos,
No momento final sem ter pavores,
Inda corre a visão da bela mesa!
A não morrer-se como o velho Píndaro,
Cantando, sobre o seio amorenado
De sua amante Grega, oh! quem me dera
Cair morto no chão, beijando ainda
A botelha divina!
NÍNI
Que maluco!
A estas horas da noite, assim no escuro
Não temes de lembrar-te de defuntos?
Beijarias até uma caveira,
Se espumante o Madeira ali corresse!
PUFF
Os cálices doirados são mais belos;
Inda porém mais doce é nos beicinhos
Da bela moca que sorrindo bebe
Libar mais terno o saibo dos licores...
Eu prefiro beijar a tua amante.
NÍNI
Tens medo de defuntos?
PUFF
Um bocado
Sinto que não nasci para coveiro.
Contudo, no domingo, à meia-noite. . .
Pela forca passei, vi nas alturas,
Do luar sem vapor à luz formosa,
Um vilão pendurado. Era tão feio!
A língua um palmo fora, sobre o peito,
Os olhos espantados, boca lívida,
Sobre a cabeça dele estava um corvo...
O morto estava nu, pois o carrasco
Despindo os mortos dá vestido aos filhos,
E deixa à noite o padecente à fresca.
Eu senti pelo corpo uns arrepios. . .
Mas depois veio o animo... trepei-me
Pela escada da forca, fui acima,
E pintei uns bigodes no enforcado.
NÍNI
Bravo como um Vampiro!
PUFF
Oh! antes d'ontem
Passei pelos telhados sem ter medo,
Para evitar um pátio onde velava
Um cão-que enorme cão! -subindo ao quarto
Onde dorme Rosina Belvidera.
NÍNI
Ousaste ao Cardeal depor na fronte
Tão pesada coroa?
PUFF
A mitra cobre.
Dizem que a santidade lava tudo;
Depois. . . o Cardeal estava bêbado…
A propósito, sabes dos amores
Do capitão Tybald? O tal maroto
Não sei de que milagres tem segredo
Que deu volta à cabeça da rainha.
NÍNI
Por isso o pobre Rei anda tão triste!
PUFF
Spadaro, o fidalgote barba-ruiva,
Contou-me que espiando p'la janela
Do quarto da rainha os viu Caluda!
NÍNI
E o Rei que faz? Não tem lá na cozinha
Algum pau de vassoura ou um chicote?
PUFF
El-Rei Nosso Senhor então ceava.
NÍNI
Santo Rei!
PUFF
E demais é bem sabido
Que El-Rei só reina à mesa e nas caçadas.
NÍNI
Nunca perde um veado quando atira.
PUFF
Ele caça veados! Má fortuna!
Não o cacem também pela ramagem!
NÍNI
Com língua tão comprida e viperina
Irás parar na forca.
PUFF
Níni, escuta.
Assisti esta noite a um pagode
Na taverna do Sapo e das Três Cobras.
Era já lusco fusco e eu entrando
Dou com Frei São José e Frei Gregório,
O Prior do convento dos Bernardos
E mais uns dous ou três que só conheço
De ver pelas esquinas se encostando,
Ou dormidos na rua a sono solto. . .
Que soberbo painel! Faze uma idéia!
Um banquete! fartura! que presuntos!
Que tostados leitões que recendiam!
Numa enorme caldeira enormes peixes,
Recheados capões fervendo ainda,
Peus, olhas-podridas, costeletas
Esgotara o talento a cozinheira!
Abertos garrafões; garrafas cheias;
Vinho em copos imensos transbordando;
Na toalha, já suja, debruçados
Aqueles religiosos cachaçudos
De boca aberta e de embotados olhos.
Gastrônomos! ali é que se via
Que é ciência comer, e como um frade
Goza pelo nariz e pelos olhos,
Pelas mãos, pela boca, e faz focinho
E bate a língua ao paladar gostoso
Ao celeste sabor de um bom pedaço!
Depois! era bonito! Frei Gregório
Co'a boca de gordura reluzente,
Farto de vinho, esquece o reumatismo,
Esquece a erisipela já sem cura,
Canta rondós e dança a tarantela.
Arrasta-se caindo e se babando
Aos pés da taverneira De joelhos
Faz-lhe a corte cantando o Miserere
Principia sermões, engrola textos,
E a gorda mão estende ao nédio seio
Da bela mocetona. . . a mão lhe beija,
A mão que o cetro cinge de vassoura. . .
Chora, soluça e cai, estende os braços,
Ainda a chama, e cantochão entoa
Era de rir! os velhos amorosos,
Uns de joelhos no chão, outros cantando
Estendidos na mesa entre os despojos,
Outros beijando a moça, outros dormindo.
Ela no meio deslambida e fresca
Excita-os mutuamente e os rivaliza,
Passa-lhes pelo queixo a mão gorducha...
Corre o Prior a soco um Barbadinho,
Atracam-se, blasfemam, esconjuram,
Um agarra na barba do contrário,
Outro tenta apertar o papo alheio...
Abraçam-se na luta os dous volumes
E rolam como pipas. No oceano
Assim duas baleias ciumentas
Atracam-se na luta... Que risadas!
Que risadas, meu Deus! arrebentando
Soltou o pobre Puff vendo a comédia!
NÍNI
Ouve agora o poema…
PUFF
Espera um pouco,
A taverna do canto não se fecha,
Está aberta. Compra uma garrafa …
Bom vinho tu bem sabes! Tenho a goela
Fidalga como um rei. Não tenho dúvida
Mentiu a minha mãe quando contou-me
Que nasci de um prosaico matrimônio
Eu filho de escrivão!. . . Para criar-me
Era-senão um Rei-preciso um Bispo!
NÍNI
(Vai à taverna e volta.) Eis aqui uma bela empada fria,
Uma garrafa e copo.
PUFF
(quebrando o copo). O Demo o leve!
Eu sou como Diógenes. Só quero
Aquilo sem o que viver não posso.
Deitado nesta laje, preguiçoso,
Olhando a lua, beijo esta garrafa,
E o mundo para mim é como um sonho.
Creio até que teu ventre desmedido
Como escura caverna vai abrir-se,
Mostrando-me no seio iluminado
Panoramas de harém, Sultanas lindas
E longas prateleiras de bom vinho!
NÍNI
Dou começo ao poema. Escuta um pouco:
I
Havia um rei numa ilha solitária,
Um rei valente, cavaleiro e belo.
O rei tinha um irmão.-Era um manceboPálido, pensativo. A sua vida
Era nas serras divagar cismando,
Sentar-se junto ao mar, dormir no bosque
Ou vibrar no alaúde os seus gemidos.
II
Vagabundo um vez junto das ondas
O Príncipe encontrou na areia fria
Uma branca donzela desmaiada,
Que um naufrágio na praia arremessara.
Revelavam-lhe as roupas gotejantes
O belo talhe níveo, o melindroso
Das bem moldadas formas. -O mancebo
Nos braços a tomou, e foi com ela
Esconder-se no bosque.Quando a bela
Suspirando acordou, o belo Príncipe
Aos pés dela velava de joelhos.
Amaram-se. É a vida. Eles viveram
Desse desmaio que dá corpo aos sonhos,
Que realiza visões e aroma a vida
Na sua primavera. A lua pálida,
As sombras da floresta, e dentre a sombra
As aves amorosas que suspiram
Viram aquelas frontes namoradas.
Ouviram sufocando-se num beijo
Suspiros que o deleite evaporava.
III
O rei tinha um truão. O caso é visto,
É muito natural.- Se reis sombrios
Gostam de bobos na doirada corte,
Não admira de certo que um risonho
Em vez de capelão tivesse um bobo.
Loriolo-o truão do Rei-acaso
Um dia atravessando p'la floresta,
Foi dar numa cabana de folhagens.
Ninguém estava ali, porém num leito
De brandas folhas e cheirosas flores
Ele viu estendidas roupas alvas
-E roupas de mulher!-e junto um gorro,
Que pelas jóias e flutuantes plumas
E pela firma no veludo negro
Denunciava o Príncipe.
Loriolo,
Apesar de na corte ser um Bobo,
Não era um zote. Foi-se remoendo,
Jurou dar com a história dos namoros.
E para andar melhor em tal caminho,
Ele que adivinhava que as Américas
Sem proteção de rei ninguém descobre,
Madrugou muito cedo-inda era escuro-
E convidou El-Rei para o passeio.
IV
Ora, por uma triste desventura,
O rei entrando na Cabana Verde
Achou só a mulher.-Adormecida
No desalinho descuidoso e belo
Com que elas dormem, soltos os cabelos,
A face sobre a mão, e os seios lindos
Batendo à solta na macia tela
Da roupa de dormir que os modelava . . .
Não digo mais....Loriolo pôs-se à espreita.
O Rei de leve despertou a bela,
Acordou-a num beijo...
V
A linda moça,
Se havia ali raivosa apunhalar-se,
Fazer espalhafato e gritaria,
Por um capricho, voluptuoso assomo,
Entregou-se ao amor do Rei...
VI
"Maldito!"
Bradou-lhe à porta um vulto macilento.
"Maldito! meu irmão, aquela moca
É minha, minha só, é minha amante
E minha esposa fora.. "O Rei sorrindo
Lhe estende a régia mão e diz alegre:
"A culpa é tua. Eu disto não sabia;
Se do teu casamento me falasses,
Eu respeitava tua....""Basta, infame!
Não acrescentes zombaria ao crime.
Hei de punir-te. É solitário o bosque;
Aqui não és um rei, porém um homem,
Um vil em cujo sangue hei de lavar-me.
Oh! sangue! quero sangue! eu tenho sede!"
VII
Despiu tremendo a reluzente espada.
O mesmo fez o Rei. -Lutaram ambos.
Feminae sacra fames, quantum pectora
Mortalia cogis! E embalde a moça,
Ajoelhando seminua e pálida,
Vinha chorando, mais gentil no pranto,
Entre as espadas se lançar gemendo.
Embalde! Longo tempo encarniçado
A peleja durou Enfim caíram
Rolaram ambos trespassados, frios,
E, na treva de morte que os cegava,
Inda alongando os braços convulsivos
Que avermelhava o fratricida sangue,
Procurando no sangue o inimigo!
VIII
O Bobo fez as covas. Na montanha
Enterrou os irmãos.-E quanto à moça,
Pelo braço a tomou chorosa e fria,
Foi ao paço, e na gótica varanda,
De coroa real e longo manto,
Falou à plebe, prometeu franquezas,
Impostos levantar e dar torneios.
-Falou aos guardas: prometeu-lhes vinho,
-Falou à fidalguia, mas no ouvido,
E prometeu-lhe consentir nos vícios
E depressa fazer uma lei nova
Pela qual, se um fidalgo assassinasse
Algum torpe vilão, ficasse impune
E nem pagasse mais a vil quantia
Que era pena do crime-e alto disse
Que havia conquistar países novos.
IX
A história infelizmente é muito vista,
Não sou original! É uma desgraça!
Mas prefiro o caráter verdadeiro
De trovador cronista.-
LorioloTrocou de guizos o boné sonoro
-Muito leve chapéu! -pela coroa
Só teve uma desgraça o Rei novato:
Foi que um dia fugiu-lhe do palácio
A tal moça volante nos amores.
X
Muitos anos passaram. Loriolo
Era um sublime rei. De rei a bobo
Já tantos têm caído! Não admira
Que um Bobo sendo Rei primasse tanto.
Governava tão bem como governam
Os reis de sangue azul e raça antiga,
Demais gastava pouco e, se não fosse
Seu amor pelas alvas formosuras,
De certo que na lista dos monarcas
Ele ficava sendo o Rei Sovina.
Enfim era um Monarca de mão-cheia.
Tinha só um defeito-vendo sangue
Tinha frio no ventre; e desmaiava
Ao luzir de uma espada era nervoso!
Ninguém falava nisso.-Até a giba,
A figura de anão, a pele escura,
Aquela boca negra escancarada
(E que nem dentes amarelos tinha
P'ra ser de Adamastor), as gâmbias finas,
Eram tipo dos quadros dos pintores.
Se pintavam Adônis ou Cupido,
Copiavam o Rei em corpo inteiro,
E o oiro das moedas, que trazia.
A ventosa bochecha os beiços grossos,
O porcino perfil e a cabeleira,
Era beijado com fervor e culto.
XI
Loriolo envelhecia entre os aplausos,
Dando a mão a beijar à fidalguia.
Demais um sabichão fizera um livro
Em vinte e tantos volumões in-fólio,
Obra cheia de mapas e figuras
Em que provava que por linha reta
De Hércules descendia Loriolo
E portanto de Júpiter Tonante.
E apresentou as certidões em cópia
De óbito e nascimento e batistério,
E até de casamento, e para prova
De que nas veias puras do Monarca
Não correra a mais leve bastardia.
É inútil dizer que os tais volumes
Nada contavam sobre o Pai, porqueiro
Como o do Santo Papa Sixto Quinto,
E sobre a mãe do Rei, a velha Mória
Que vendera perus, Deus sabe o resto!
Nos tempos folgazões da mocidade!
XII
Um dia o reino cem navios tocam.
São piratas do Norte! são Normandos!
Infrene multidão nas praias corre,
Levando tudo a ferro até os frades.
Matam, queimam, saqueiam, furtam moças.
E a infrene turba corre até aos paços.
XIII
Enquanto vem a campo a fidalguia
Armada pied en cap, espada em punho,
Loriolo, sem fala, nos apertos
Nas adegas se esconde.Embalde o chamam,
Embalde corre voz que dos Normandos
Emissário de paz o Rei procura.
El-Rei suou de susto a roupa inteira.
Nem era de admirar, que a reis e povo,
Como ao bicho-da-seda a trovoada,
Camisas de onze `-aras apavoram
E fazem frio aparições de forca.
XIV
Um soldado Normando que buscava
Nas adegas reais alguma pinga,
Mete a verruma numa velha pipa.
Um grito sai dali, mas não licores.
O soldado feroz destampa o nicho;
Agarra um vulto dentro, mas somente
Sente nas mãos vazia cabeleira
Desembainha a torva durindana.
Nas cavernas da pipa, e nas cavernas
Do coração do Rei reboa o golpe.
Estala-se o tonel de meio a meio.
Entretanto o bom Rei que não falava,
Sujo da lia da ruinosa pipa,
Mais morto do que vivo (já pensando
Que seu reino acabava num espeto
Como o reino do galo), às cambalhotas
Rola aos pés do soldado, chora e treme,
Gagueja de pavor nos calafrios
E pelo amor de Deus perdão implora.
XV
O soldado, maroto e bom gaiato,
Agarra às costas o real trambolho,
Como um vilão que à feira leva um porco,
E no meio do pátio, entre os despojos,
De pernas para o ar e cara suja
Atira o Bobo-El-Rei! clama um fidalgo.
XVI
Porém o Rei não fala… Sua e treme.
"Singofredo o pirata aqui me envia.
(Diz ao Rei o pacífico Mercúrio,
O Arauto de paz que vem de bordo):
Eu venho aqui propor-vos um tratado.
Por direito de espada e por herança
Singofredo é senhor destes países.
Ele vem reclamar sua coroa.
Se o Rei não se opuser, não corre sangue;
Senão hão de fazê-lo em sarrabulho,
Puxado p'lo nariz o encher de lado,
E espetar-lhe a careta sobre um mastro.
Singofredo o feroz exige apenas
Que o Rei deixando o cetro deste reino
Seja sempre na corte Rei da Lua.
Loriolo virá ao seu caminho
Trajando seu gibão amarelado
Com remendos de cor, e campainhas,
Meias roxas e gorro afunilado".
XVII
Loriolo suspira. O povo espera.
Pela face do Bobo corre a furto
Uma lágrima trêmula. - É desgraça
Tendo subido a Rei, voltar. . .
Nem ousa
O nome proferir de sua infâmia.
De repente uma idéia o ilumina....
Deu uma das antigas gargalhadas,
Inda em trajes de rei graceja e pula.
Foi uma dança cômica, fantástica,
Um riso que doía-tão gelado
Coava o coração!. . . Estava doudo. . .
Dançou a gargalhar. . . caiu exausto,
Caiu sem movimento sobre o lodo...
Escutaram-lhe o peito. Estava morto.
Ora o pirata, o invasor Normando
Era filho da nossa conhecida,
Que, posto não pudesse com acerto
Dizer quem era o pai de seu boemia'
Afirmava contudo afoutamente
Que, em todo o caso, tinha jus ao trono.
Reina pela cidade a bebedeira,
E bebendo à saúde do bastardo
O Bobo que foi rei ninguém sepulta
Bem vês, amigo Puff, que neste conto
Em poucos versos digo histórias longas;
-Amores, mortes, e no trono um bobo
E sobre o lodo um rei que não se enterra.
- Muito embora a mulher as roupas façam,
Eu provo que o burel não faz o monge,
E um bobo é sempre um bobo. Mostro ainda
De meu estro no vário cosmorama
Um rei que numa pipa o trono perde.
E um bastardo que o pai dizer não pode
E em nome de dous pais, ambos em dúvida,
Vem na sangueira reclamar seu nome.
Um outro só com isso dera a lume
Um poema em dez cantos. Sou conciso;
Não ouso tanto: dou somente idéias,
Esboço aqui apenas meu enredo.
Puff! olá, meu Puff! Estás dormindo,
Prosaico beberrão! Acorda um pouco!
Bebeu todo o meu vinho-a empada foi-se
Não resta?me esperança! Este demônio
De um poeta como eu nem vale um murro!
UM HOMEM DA PLATÉIA (interrompendo).
Silêncio! fora a peça! que maçada!
Até o ponto dorme a sono solto!
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