domingo, 27 de junho de 2021
F.032.Fique Longe - Andréa Borba Pinheiro
E agora, a espada enferruja-se no meu peito,
rasgando o meu sentimento,
derramando tua indiferença,
rasgando meu pranto, sentindo o momento.
É estranho mas, não sinto dor...
Talvez você já tenha me acostumado à ela.
Talvez eu seja assim mesmo, insensível...
Não vou gritar, me chamaria de histérica...
Mas, na verdade, não me importo,
sei que sou muito mais do que podes suportar.
Tens inveja do meu amor, do meu carinho,
por isso, te escondes no teu canto e fica quietinho!
Continuo sem entender-te, és muito complicado...
Não me arrisco mais em amar-te...
Fique longe, não se aproxime mais!
Não espere amor de mim, agora já é impossível desejar-te!...
F.031.Fique - Andréa Borba Pinheiro
Fique do meu lado para sempre,
não levante dos meus braços,
fique aqui comigo, quente,
sem embaraços.
Fique ao alcance da minha visão,
não me abandone,
mantenha sempre a razão,
me surpreenda, mostre que você é bem homem!
Fique por perto,
não fuja,
não minta,
não corra.
Fique me abraçando aqui,
e que o mundo exploda na cidade.
Que carros se choquem e chova canivetes.
A única coisa que importa, é a nossa mocidade.
Nunca ameace dizendo:
-Vou embora.
Porque aí sim,
eu embrabeço e, saio porta afora.
Mas, se realmente, não quiser ficar,
me leve junto.
F.029.Felicidade Abgar Renaul
Felicidade - o título tão comprido deste poema tão pequeno!
Felicidade - substantivo comum, feminino, singular, polissilábico.
Tão polissilábico. Tão singular. Tão feminino. E tão pouco comum.
Substantivo complicado, metafísico,
que cabe todo
na beleza clara de alguém que eu sei
e no sorriso sem dentes de meu filho.
F.028.Fazer 30 Anos - Affonso Romano de Sant'ana,
Quatro pessoas, num mesmo dia, me dizem que vão fazer 30 anos. E me anunciam isto com uma certa gravidade. Nenhuma está dizendo: vou tomar um sorvete na esquina, ou: vou ali comprar um jornal. Na verdade estão proclamando: vou fazer 30 anos e, por favor, prestem atenção, quero cumplicidade, porque estou no limiar de alguma coisa grave.
Antes dos 30 as coisas são diferentes. Claro que há algumas datas significativas, mas fazer 7, 14, 18 ou 21 é ir numa escalada montanha acima, enquanto fazer 30 anos é chegar no primeiro grande patamar de onde se pode mais agudamente descortinar.
Fazer 40, 50 ou 60 é um outro ritual, uma outra crônica, e um dia eu chego lá. Mas fazer 30 anos é mais que um rito de passagem, é um rito de iniciação, um ato realmente inaugural. Talvez haja quem faça 30 anos aos 25, outros aos 45, e alguns, nunca. Sei que tem gente que não fará jamais 30 anos. Não há como obrigá-los. Não sabem o que perdem os que não querem celebrar os 30 anos. Fazer 30 anos é coisa fina, é começar a provar do néctar dos deuses e descobrir que sabor tem a eternidade. O paladar, o tato, o olfato, a visão e todos os sentidos estão começando a tirar prazeres indizíveis das coisas. Fazer 30 anos, bem poderia dizer Clarice Lispector, é cair em área sagrada.
Até os 30, me dizia um amigo, a gente vai emitindo promissórias. A partir daí é hora de começar a pagar. Mas também se poderia dizer: até essa idade fez-se o aprendizado básico. Cumpriu-se o longo ciclo escolar, que parecia interminável, já se foi do primário ao doutorado. A profissão já deve ter sido escolhida. Já se teve a primeira mesa de trabalho, escritório ou negócio. Já se casou a primeira vez, já se teve o primeiro filho. A vida já se inaugurou em fraldas, fotos, festas, viagens, todo tipo de viagens, até das drogas já retornou quem tinha que retornar.
Quando alguém faz 30 anos, não creiam que seja uma coisa fácil. Não é simplesmente, como num jogo de amarelinha, pular da casa dos 29 para a dos 30 saltitantemente. Fazer 30 anos é cair numa epifania. Fazer 30 anos é como ir à Europa pela primeira vez. Fazer 30 anos é como o mineiro vê pela primeira vez o mar.
Um dia eu fiz 30 anos. Estava ali no estrangeiro, estranho em toda a estranheza do ser, à beira-mar, na Califórnia. Era um homem e seus trinta anos. Mais que isto: um homem e seus trinta amos. Um homem e seus trinta corpos, como os anéis de um tronco, cheio de eus e nós, arborizado, arborizando, ao sol e a sós.
Na verdade, fazer 30 anos não é para qualquer um. Fazer 30 anos é, de repente, descobrir-se no tempo. Antes, vive-se no espaço. Viver no espaço é mais fácil e deslizante. É mais corporal e objetivo. Pode-se patinar e esquiar amplamente.
Mas fazer 30 anos é como sair do espaço e penetrar no tempo. E penetrar no tempo é mister de grande responsabilidade. É descobrir outra dimensão além dos dedos da mão. É como se algo mais denso se tivesse criado sob a couraça da casca. Algo, no entanto, mais tênue que uma membrana. Algo como um centro, às vezes móvel, é verdade, mas um centro de dor colorido. Algo mais que uma nebulosa, algo assim pulsante que se entreabrisse em sementes.
Aos 30 já se aprendeu os limites da ilha, já se sabe de onde sopram os tufões e, como o náufrago que se salva, é hora de se autocartografar. Já se sabe que um tempo em nós destila, que no tempo nos deslocamos, que no tempo a gente se dilui e se dilema. Fazer 30 anos é como uma pedra que já não precisa exibir preciosidade, porque já não cabe em preços. É como a ave que canta, não para se denunciar, senão para amanhecer.
Fazer 30 anos é passar da reta à curva. Fazer 30 anos é passar da quantidade à qualidade. Fazer 30 anos é passar do espaço ao tempo. É quando se operam maravilhas como a um cego em Jericó.
Fazer 30 anos é mais do que chegar ao primeiro grande patamar. É mais que poder olhar pra trás. Chegar aos 30 é hora de se abismar. Por isto é necessário ter asas, e sobre o abismo voar.
(13.10.85) O texto acima foi extraído do livro "A Mulher Madura", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1986, pág. 36.
Janaina, obrigado pela lembrança.
F.030.Fim - Abgar Renault
O que eu perdi não foi um sonho bom,
não foi o fruto a embebedar meus lábios,
não foi uma cançõ de raro som,
nem a graça de alguns momentos sábios.
O que eu perdi, como quem perde uma outra infância,
foi o sentido do enternecimento,
foi a felicidade da ignorância, foi, em verdade,
na minha carne e no meu pensamento,
a última rubra flor do fim da mocidade.
E dói - não esse gesto ausente, a que se apagam
as flores mais solares, mas uma hora,
- flor de momento numa breve aurora -
hora longínqua, esquiva e para sempre morta,
em cuja escura, inacessível porta
noturnos olhos cegamente vagam.
F.027.Fascínio - Affonso Romano de Sant'ana
Casado, continuo a achar as mulheres irresistíveis.
Não deveria, dizem.
Me esforço. Aliás,
já nem me esforço.
Abertamente me ponho a admirá-las.
Não estou traindo ninguém, advirto.
Como pode o amor trair o amor?
Amar o amor num outro amor
é um ritual que, amante, me permito.
F.026.Fala - Alexandre O'Neill
Fala a sério e fala no gozo
Fá-la pela calada e fala claro
Fala deveras saboroso
Fala barato e fala caro
Fala ao ouvido fala ao coração
Falinhas mansas ou palavrão
Fala à miúda mas fá-la bem
Fala ao teu pai mas ouve a tua mãe
Fala francês fala béu-béu
Fala fininho e fala grosso
Desentulha a garganta levanta o pescoço
Fala como se falar fosse andar
Fala com elegância - muito e devagar.
E.093.Exílio dele nas Urubuguáias - Adailton Medeiros
exilAdo nas urubuguáias
boi serapião do buriti
corre nos cerrAdos e grotões
tal marruá de tamAnca e reza
andarilho sem odres de couro
um patori desaplumbeAdo
na travessia das grAndes estórias
construindo em sete mil dias Dios
um antropomOrfa como
o veAdo do mistéRio
de gelos e vinhos tintos
ou o carCará castrAdo
vindo dos salEs noturnos
furnicAdo de marinhas
E.092.Exausto - Adélia Prado
Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.
E.091.Eu não gostaria - Alex Fagundes
Eu não gostaria...
de escrever poemas incompreensíveis.
Nem algo imaginado sem ser.
Mas às vezes o meu universo
se situa tão longe, ou tão dentro,
que eu não existo.
E não me sinto.
Como poderia eu,
nesses momentos, empatizar
a consciência de outrém,
e fazer-me, disciplinadamente,
um poeta compreensível, cristalino.
Não.
No emaranhado da minha solidão
mais interna, ou mais externa,
sou um ser tão vago,
que não consigo palpar-me.
O impalpável de mim,
nem mesmo é meu.
Embora eu o faça.
Nestes casos resta-me a esperança
de encontrar alguém
que já mergulhou nesses éteres
e tenha disposição de ler
um carta escrita para mim
por mim mesmo
sobre algo que
nem mesmo para mim
está sendo claro.
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