segunda-feira, 26 de dezembro de 2016
Q.011.Que presente te dar - Affonso Romano Santana
Que presente te darei, eu que tanto quero e
pouco dou, porque mesquinho, egoísta,
distraído não te cumulo
daquilo que deveria cumular?
Deveria desatar inúmeros presentes ao pé da árvore,
entreabrindo jóias, tecidos, requintados e pessoais
objetos, ou deveria dar-te o que não posso buscar
lá fora, mas o que em mim está fechado e
mal sei desembrulhar?
Gostaria de dar-te coisas naturais, feitas com a mão,
como fazem os camponeses, os artesãos, como faz
a mulher que ama e prepara o Natal com seus
dedos e receitas, adornos e atenção.
Te dar, talvez, um pedaço de praia primitiva,
como aquelas do Nordeste, ou de antigamente
Búzios e Cabo Frio; um pedaço de mar das Ilhas
o Caribe, onde a água e o amor são transparentes
e onde a areia é fina e brilhante e, sozinhos,
habitam a eternidade, os amantes.
Te dar aquele verso de canção um dia ouvida não
sei mais aonde, se numa tarde de chuva,
se entre os lençóis cansados; um verso, uma
canção ou talvez o puro som de um saxofone
ao fim do dia, som que tem qualquer coisa
de promessa e melancolia.
Fugir uma tarde contigo para os motéis, quando
todos os homens se perdem nos papéis e
escritórios, números e tensões: fugir contigo
para uma tarde assim,um espaço de amor
entreaberto na peça que nos prega
a burocracia dos gestos.
Gravar numa fita as canções que me
fazem lembrar de ti e ouvi-las, ou tocar de
algum modo, em algum cassete as frases que
disseste, que em mim gravaste: frases líricas,
precisas, que quando estou cinza,
relembro e me iluminam.
Te enviar todos os cartões que colecionas,
de todos os lugares que conheço ou que tu
nem imaginas, ir a essas paisagens e ilhas
e habitá-las com os selos e palavras
de intermitente paixão.
Dar-te aquela casa de campo entre montanhas,
aquele amor entre a neblina, aquele espaço
fora do mundo, fora de outros espaços,
sem telefone, sem estranhas ligações,
para ali nos ligarmos um no outro em
una e dupla solidão.
Se queres jóias, te darei. Aqueles corais que
vendem na Ponte Vecchia, em Florença;
o âmbar ou as pérolas que expõem nas lojas
do Havaí; aquelas pedras de vidro para
iridescentes colares, que vendem em Atenas,
ao pé da Plaka, ao pé da Acrópole, que
amorosa nos contempla.
Te dar numa viagem os castelos do Loire,
e sair comendo e rindo juntos no roteiro
gastronômico franco-italiano; ali comendo
e aqueles vinhos bebendo, de tudo nos
esquecendo, sobretudo dos remorsos
tropicais de quem tem sempre ao lado
um faminto desamparado, de culpa nos ferindo.
Te darei flores. Sempre planejei fazer isto.
Tão simples: de manhã acordar displicente
e começar a colher flores sob a cama. Ir tirando
buquês de rosas, margaridas, vasos de íris,
orquídeas que estão desabrochando e, uma
a uma, de flores ir te cumulando. E amanhecendo
dirás: o amado hoje está mel puro, seu amor
aflorou e está me perfumando.
Escrever bilhetes pela casa inteira, metê-los
entre as roupas, armários, prateleiras,
pra que na minha ausência comeces a desdobrar
recados daquele que nunca se ausentou,
embora esse ar de quem vive partindo, mas,
se alguma vez partiu partido foi para
reunido regressar.
Te dar um gesto simples. Passar a mão
de repente sobre tua mão, como se apalpa
a vida ou fruto que pede para ser colhido.
Te dar um olhar, não aquele olhar distraído,
alienado de quem está nas coisas prosaicas
perdido, mas um olhar de quem chegou inteiro
e que se entrega enternecido e desamparado
dizendo: olha, sou teu, agora veja lá
o que vai fazer comigo.
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