sexta-feira, 23 de março de 2018
Crônica.F.004.Felicidade realista - Mário Quintana
A princípio, bastaria ter saúde, dinheiro e amor, o que já é um pacote louvável, mas nossos desejos são ainda mais complexos.
Não basta que a gente esteja sem febre: queremos, além de saúde, ser magérrimos, sarados, irresistíveis.
Dinheiro? Não basta termos para pagar o aluguel, a comida e o cinema: queremos a piscina olímpica e uma temporada num spa cinco estrelas.
E quanto ao amor? Ah, o amor... não basta termos alguém com quem podemos conversar, dividir uma pizza e fazer sexo de vez em quando. Isso é pensar pequeno: queremos AMOR, todinho maiúsculo. Queremos estar visceralmente apaixonados, queremos ser surpreendidos por declarações e presentes inesperados, queremos jantar à luz de velas de segunda a domingo, queremos sexo selvagem e diário, queremos ser felizes assim e não de outro jeito. É o que dá ver tanta televisão. Simplesmente esquecemos de tentar ser felizes de uma forma mais realista. Ter um parceiro constante, pode ou não, ser sinônimo de felicidade. Você pode ser feliz solteiro, feliz com uns romances ocasionais, feliz com um parceiro, feliz sem nenhum. Não existe amor minúsculo, principalmente quando se trata de amor-próprio. Dinheiro é uma benção. Quem tem, precisa aproveitá-lo, gastá-lo, usufruí-lo. Não perder tempo juntando, juntando, juntando. Apenas o suficiente para se sentir seguro, mas não aprisionado. E se a gente tem pouco, é com este pouco que vai tentar segurar a onda, buscando coisas que saiam de graça, como um pouco de humor, um pouco de fé e um pouco de criatividade. Ser feliz de uma forma realista é fazer o possível e aceitar o improvável. Fazer exercícios sem almejar passarelas, trabalhar sem almejar o estrelato, amar sem almejar o eterno. Olhe para o relógio: hora de acordar. É importante pensar-se ao extremo, buscar lá dentro o que nos mobiliza, instiga e conduz mas sem exigir-se desumanamente. A vida não é um jogo onde só quem testa seus limites é que leva o prêmio. Não sejamos vítimas ingênuas desta tal competitividade. Se a meta está alta demais, reduza-a. Se você não está de acordo com as regras, demita-se. Invente seu próprio jogo. Faça o que for necessário para ser feliz. Mas não se esqueça que a felicidade é um sentimento simples, você pode encontrá-la e deixá-la ir embora por não perceber sua simplicidade. Ela transmite paz e não sentimentos fortes, que nos atormenta e provoca inquietude no nosso coração. Isso pode ser alegria, paixão, entusiasmo, mas não felicidade.
Crônica.F.003.Filho preferido - Sérgio Zambiazi
Certa vez perguntaram a uma mãe qual era seu filho preferido, aquele que ela mais amava. E ela, deixando entrever um sorriso, respondeu: "nada é mais volúvel que um coração de mãe. E ,como mãe, lhe respondo: o filho dileto, aquele a quem me dedico de corpo e alma, é o meu filho doente, até que sare; o que partiu, até que volte; o que está cansado, até que descanse; o que está com fome, até que se alimente; o que está com sede, até que beba; o que está estudando, até que aprenda; o que está nu, até que se vista; o que não trabalha , até que se empregue; o que namora, até que se case; o que casa, até que conviva; o que é pai, até que os crie; o que prometeu, até que se cumpra; o que deve , até que pague; o que chora, até que cale; E já com o semblante bem distante daquele sorriso, completou: o que já me deixou, até que o reencontre.... e uma lágrima rolou dos seus olhos!
Crônica.F.002.Fiquei pensando - Osvaldo Straguetty
Não quero que alguém morra de amor por mim... Prefiro esse alguém bem pertinho me abraçando. Não quero que alguém me ame como eu amo Quero apenas que me ame Não quero que alguém seja igual a mim Porque quero ser a única pessoa do jeitinho que sou para alguém Não posso pretender que todas as pessoas gostem de mim Mas posso imaginar que algumas gostem E talvez um sorriso meu possa fazer pelo menos que uma dessas pessoas sorria também! Quero fechar meus olhos e pensar em alguém E imaginar que alguém pensa em mim. Quero ser um pedacinho do mundo de alguém e saber que esse alguém precisa de mim e que sou importante e que talvez sem mim a vida não fique tão boa. Quero ter certeza que apesar das minhas burrices e loucuras alguém gosta de mim como eu sou! Quero conseguir só lembrar das coisas boas que alguém possa ter feito pra mim e procurar não me lembrar das ruins Não quero brigar com o mundo e se o mundo brigar comigo quero ter coragem de enfrentá-lo Quero sempre poder dizer o quanto alguém é especial e importante pra mim Quero poder acreditar que mesmo que hoje eu não consiga, vou conseguir um dia! Quero poder sempre dizer a alguém que gosto dele e o quanto gosto e como gosto! Se você tem um alguém, alguém especial e importante na sua vida, não deixe de dizer isso...
talvez alguém goste de escutar!
Crônica.F.001.Filhos, pais e avós - Affonso Romano Sant'anna
Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos seus próprios filhos. É que as crianças crescem independentes de nós, como árvores tagarelas e pássaros estabanados. Crescem sem pedir licença à vida. Crescem com uma estridência alegre e, às vezes, com alardeada arrogância. Mas não crescem todos os dias de igual maneira. Crescem de repente. Um dia sentam-se perto de você no terraço e dizem uma frase com tal maturidade que você sente que não pode mais trocar as fraldas daquela criatura. Onde é que andou crescendo aquela danadinha que você não percebeu? Cadê a pazinha de brincar na areia, as festinhas de aniversário com palhaços e o primeiro uniforme do Maternal? A criança está crescendo num ritual de obediência orgânica e desobediência civil. E você está agora ali, na porta da discoteca, esperando que ela não apenas cresça, mas apareça! Ali estão muitos pais ao volante, esperando que eles saiam esfuziantes sobre patins e cabelos longos, soltos. Entre hambúrgueres e refrigerantes nas esquinas, lá estão nossos filhos com o uniforme de sua geração: incômodas mochilas da moda nos ombros.Ali estamos, com os cabelos esbranquiçados. Esses são os filhos que conseguimos gerar e amar, apesar dos golpes dos ventos, das colheitas,das notícias, e da ditadura das horas. E eles crescem meio amestrados, observando e aprendendo com nossos acertos e erros. Principalmente com os erros que esperamos que não repitam. Há um período em que os pais vão ficando um pouco órfãos dos próprios filhos. Não mais os pegaremos nas portas das discotecas e das festas. Passou o tempo do ballet, do inglês, da natação e do judô. Saíram do banco de trás e passaram para o volante de suas próprias vidas. Deveríamos ter ido mais à cama deles ao anoitecer para ouvir sua alma respirando conversas e confidências entre os lençóis da infância, e os adolescentes cobertores daquele quarto cheio de adesivos, pôsteres, agendas coloridas e discos ensurdecedores. Não os levamos suficientemente ao Playcenter, ao Shopping, não lhes demos suficientes hambúrgueres e cocas, não lhes compramos todos os sorvetes e roupas que gostaríamos de ter comprado. Eles cresceram sem que esgotássemos neles todo o nosso afeto. No princípio subiam a serra ou iam à casa de praia entre embrulhos, bolachas, engarrafamentos, natais, páscoas, piscina e amiguinhos.
Sim, havia as brigas dentro do carro, a disputa pela janela, os pedidos de chicletes e cantorias sem fim. Depois chegou o tempo em que viajar com os pais começou a ser um esforço, um sofrimento, pois era impossível deixar a turma e os primeiros namorados. Os pais ficaram exilados dos filhos. Tinham a solidão que sempre desejaram, mas, de repente, morriam de saudades daquelas "pestes". Chega o momento em que só nos resta ficar de longe torcendo e rezando muito (nessa hora, se a gente tinha desaprendido, reaprende a rezar) para que eles acertem nas escolhas em busca de felicidade. E que a conquistem do modo mais completo possível. O jeito é esperar: qualquer hora podem nos dar netos. O neto é a hora do carinho ocioso e estocado, não exercido nos próprios filhos e que não pode morrer conosco. Por isso os avós são tão desmesurados e distribuem tão incontrolável carinho. Os netos são a última oportunidade de reeditar o nosso afeto. Por isso é necessário fazer alguma coisa a mais, antes que eles cresçam. Aprendemos a ser filhos depois que somos pais. Só aprendemos a ser pais depois que somos avós..
Crônica.E.006.Entre amigos - Martha Medeiros
Para que serve um amigo? Para rachar a gasolina, emprestar a prancha, recomendar um disco, dar carona pra festa, passar cola, caminhar no shopping, segurar a barra. Todas as alternativas estão corretas, porém isso não basta para guardar um amigo do lado esquerdo do peito. Milan Kundera, escritor tcheco, escreveu em seu último livro, A Identidade", que a amizade é indispensável para o bom funcionamento da memória e para a integridade do próprio eu. Chama os amigos das testemunhas do passado e diz que eles são nosso espelho, que através deles podemos nos olhar. Vai além: diz que toda amizade é uma aliança contra a adversidade, aliança sem a qual o ser humano ficaria desaramado contra seus inimigos. Verdade verdadeira. Amigos recentes costumam perceber essa aliança, não valorizam ainda o que está sendo construído. São amizades não testadas pelo tempo, não se sabe se enfrentarão com solidez as tempestades ou se serão varridos numa chuva de verão. Veremos. Um amigo não racha apenas a gasolina: racha lembranças, crises de choro, experiências. Racha a culpa, racha segredos. Um amigo não empresta o verbo, empresta o ombro, empresto o tempo, empresta o calor e a jaqueta. Um amigo não recomenda apenas um disco. Recomenda acutela, recomenda um emprego, recomenda um país. Um amigo não dá carona pra festa. Te leva pro mundo dele, e topa conhecer o teu. Um amigo não passa apenas cola. Passa contigo um aperto, passa junto o reveillon. Um amigo não caminha apenas no shopping. Anda em silêncio na dor, entra contigo em campo, sai do fracasso, fica ao teu lado. Um amigo não segura a barra, apenas. Segura a mão, a ausência, segura uma confissão, segura o tranco, o palavrão, segura o elevador. Duas dúzias de amigos assim ninguém tem. Se tiver um, amém."
Crônica.E.005.Edelweiss - Silvana Duboc
"...E é no início do ano de 1939 que começa a nossa história. Vivíamos na Áustria, um país coberto por flores, eu, meus pais e meu irmão. Éramos a imagem da família feliz e unida e entre nós reinava a certeza que nada na vida conseguiria nos separar, mas não foi bem assim. Meu pai era um cirurgião de renome, minha mãe professora, daquelas dedicadas, que lecionava por puro amor aos seus alunos. Eu tinha então dez anos e meu irmão quinze. Nossos dias e nossas noites eram muito alegres. Meus pais tinham o hábito de nos levarem até a varanda de nossa casa após o jantar para vermos as estrelas e enquanto fazíamos isso, cada um ia contando as coisas boas que haviam acontecido no seu dia. Não que não pudéssemos contar as ruins, mas é que naquela época das nossas vidas só aconteciam coisas boas. Não me recordo de algum dia ter visto um deles triste. Depois que contávamos tudo e que admirávamos bastante as estrelas, cantávamos ao som do violão do meu irmão. A primeira música sempre era Edelweiss, linda, sonora, trazia paz aos nossos corações. Ah! como era bom cantar Edelweiss junto da minha família e debaixo das estrelas, eu tinha a sensação que poderia fazer aquilo a vida toda sem jamais enjoar. Mas, enfim, o tempo foi passando e veio a guerra e só se ouvia falar em Hitler e eu não entendia bem que homem era aquele, nem o que ele representava e então eu continuava todas as noites olhando para as estrelas junto das pessoas que eu mais amava. Um dia, um terrível dia de dezembro que jamais esquecerei, tivemos que partir. Me lembro que meu pai veio até nós e nos disse delicadamente: "Vamos ter que passar algum tempo sem ver as estrelas no céu" Fomos covardemente arrancados de nossa casa por soldados, fomos levados a um local que viria a ser a nossa nova casa, chamava-se campo de concentração. Lá, não fomos felizes e lá eu pude ver pela primeira vez o semblante da minha família triste, nem pareciam aquelas pessoas adoráveis que conviviam comigo naquela varanda.
Todas as noites eu dizia à minha mãe que queria ver as estrelas, cantar sob elas e ela me respondia com lágrimas nos olhos que durante um pequeno período a única estrela que eu poderia ver era a que eu trazia pendurada no pescoço, de seis pontas, tão linda quanto as que brilhavam no céu. Acontece que minha mãe se enganou, não foi um período tão curto assim que ficamos por lá e com o tempo foram me levando muito mais coisas além das estrelas do céu, foram me levando tudo. Levaram-me a estrela do pescoço também, levaram meus pais para um banho do qual eles nunca mais voltaram, levaram meu irmão dentro de um trem que eu nunca soube para onde foi, levaram o meu sorriso, a minha alegria de viver, levaram a minha infância, só não levaram a minha voz e por isso, todas as noites ao deitar, eu fechava os olhos e cantava baixinho Edelweiss e aí eu podia ver as estrelas, o meu pai, a minha mãe, o meu irmão, a varanda da nossa casa.... A minha imaginação eles também não conseguiram levar... Hoje eu tenho a absoluta certeza que realmente eu nunca teria me cansado de cantar na varanda com a minha família, que eu, de forma alguma, abandonaria o meu país, que minha mãe foi a pessoa mais doce que eu conheci, que meu pai foi a imagem da dignidade, que meu irmão foi o meu grande companheiro e que tocava violão como ninguém. Hoje eu sei a verdadeira razão das lágrimas de meus pais ao se despedirem de mim apenas porque iriam tomar um banho e o motivo do abraço tão apertado que meu irmão me deu naquela tarde em que foi colocado dentro daquele trem. Hoje eu sei de tantas coisas que eu não queria saber, sei que os homens podem agir como animais ferozes, sei que raças, credos, religiões, são apenas subterfúgios que o homem usa para deixar o leão que existe dentro deles despertar. Hoje eu sei que o tempo é poderoso, mas não tão poderoso a ponto de apagar qualquer coisa que tenha sido muito boa ou muito ruim. Hoje eu sei finalmente, que a saudade é o campo de concentração do coração. Hoje eu sei que o maior tesouro que existe na vida é a paz..." Shalom! "Dedicado a todos os judeus que tiveram as suas vidas exterminadas durante o Holocausto e às suas famílias, que sofrem por essas perdas até hoje"
Crônica.E.004.Eu queri, se eu pudesse - Maria Alice Estrella
Eu queria, se eu pudesse, rever todos os amigos que adquiri desde a infância para partilhar abraços inesquecíveis ... Eu queria, se eu pudesse, brincar de roda com as lembranças como se eu fora uma menina e não tivera medo de perdê-las ... Eu queria, se eu pudesse, viajar pelo mundo das emoções sem ter que pagar ingresso e nem precisar de "vistos" no passaporte como se fora uma estrangeira... Eu queria, se eu pudesse, fotografar a vida e ampliar todo o bom momento num cartaz imenso de "outdoor" ... Eu queria, se eu pudesse, evitar despedidas reversíveis e adeuses de nunca mais ... Eu queria, se eu pudesse, escapar da incerteza, da indecisão entre o melhor e o pior, entre o ir e vir, entre o sempre e o nunca ... Eu queria, se eu pudesse, sacudir a inércia dos sentimentos que estão apáticos no ostracismo ... Eu queria, se eu pudesse, impedir os naufrágios dos risos na amplitude do mar de lágrimas ... Eu queria, se eu pudesse, fazer brotar do coração jardins de perfume em meio aos espinhos que ferem ... Eu queria, se eu pudesse, fugir do alcance da inveja para voar invisível com asas de uma fada mágica, chamada de imunidade ... Eu queria, se eu pudesse, aprisionar a tristeza numa torre e libertar a alegria pelos ares ... Eu queria, se eu pudesse, ver o horizonte como marco de esperança, como linhas de chegada, como curva de rio ... Eu queria, se eu pudesse, recortar os instantes de felicidade do jornal da existência e confeccionar um álbum para folhear aos domingos ... Eu queria, se eu pudesse, encontrar respostas para as perguntas de ontem que se repetem hoje ... Eu queria, se eu pudesse, ouvir a voz do silêncio sem medo de suas verdades ...
Eu queria, se eu pudesse, sentir menos solidão na companhia de tantos ... Eu queria, se eu pudesse, reinventar afazeres para mudar a rotina do previsível e esperado na monotonia dos dias ... Eu queria, se eu pudesse, trazer de volta o tempo que perdi, deixando de viver o mais importante, postergando para depois o lado bom da paisagem ... Eu queria, se eu pudesse, acrescentar meio século ao total do já vivido para fazer o que eu, agora, quero ou que eu, ainda posso ...
Crônica.E.003.E agora? - Danusa Leão
Ela está casada há 25 anos, gosta do marido e é feliz. Eles se dão bem, são bons companheiros e a vida corre mansa; mansa, boa e morna. Só que depois de tanto tempo algumas coisas não acontecem mais: o romance, o coração disparado, as transas enlouquecidas. É um casamento feliz, calmo e sereno, tão sem sobressaltos que ela foi perdendo certas vaidades. Dá-se ao luxo de ficar em casa bem à vontade, com uma calça larga, raramente se maquia, salto alto nem pensar e passou de manequim 38 para 42/44, "conforme a modelagem", como gosta de dizer. É uma mulher tranqüila, que não bota rímel para jantar em casa com o marido e pra quê? Tem a mais perfeita consciência de que a vida anda sem graça, mas está bom assim mesmo e sempre soube que não se pode ter tudo. Só que, às vezes, mesmo nas existências mais pacatas, coisas acontecem. O casal ia jantar em casa de amigos; com uma certa preguiça, ela se pintou, botou um salto alto e, antes de sair, lembrou que precisava comprar um remédio. Como o "Jornal Nacional" estava começando e marido que é marido tem que ver, ela resolveu descer rapidinho; e aí, na farmácia, encontrou um homem. Ele olhou para ela daquele jeito que não deixa a menor dúvida, coisa que há muito tempo não acontecia; ela percebeu e ficou perturbada, coisa que há muito tempo não acontecia. Tão perturbada que voltou voando para casa, sabendo que o vulcão -aquele-, que considerava mais do que extinto, estava bem vivo. Sentiu o sangue correndo nas veias, a vida entrando por todos os poros e, enquanto o marido terminava de ver a TV, tomou dois uísques e teve um pensamento traidor (o primeiro de uma série): "Aquele homem não vê o "Jornal Nacional". Há anos achava que a vida para ela já tinha passado e que ter pequenas emoções como vibrar com as alegrias dos filhos, sofrer com seus sofrimentos e achar uma relativa graça nos netos já estava de bom tamanho; de repente, percebeu que o outro mundo, do qual havia se esquecido, continuava existindo e gostou da idéia. Gostou muito. Nessa noite, seus olhos brilharam como havia muito tempo não acontecia e, na manhã seguinte, acordou outra pessoa. Teve sonhos: sonhou com um homem, um qualquer, e ficou maravilhada. Nem se lembrava mais direito da cara do tal da farmácia, mas descobriu que estava viva coisa da qual havia se esquecido há muito tempo. Que acontecimento; e agora? Pois é, e agora? Não quer mudar nada -em princípio-, não tem a menor intenção de arranjar um caso -em princípio- e sabe perfeitamente que qualquer mulher com o olho brilhando arranja um homem na esquina.
Mas não acha justo continuar vivendo como uma quase morta; como é que alguém, em qualquer idade, pode achar que a vida está encerrada, que o futuro não vai ser mais do que um jantarzinho gostoso, ir a um cineminha às vezes, esperar que os filhos telefonem, com um marido que não desperta nela rigorosamente nada, além de uma grande amizade? Um marido para quem ela não faz charme, não compra uma camisola mais sexy e com quem vai para a cama como se estivesse só? Se não gostasse dele, se tivesse raiva, se ele aprontasse, fosse uma presença desagradável, seria fácil. Mas não: ele é legal, tudo que pode haver de bom, depois de 25 anos de convivência. Aos 53, ela fez a grande descoberta: que ainda existe como mulher. Só que não tem coragem de encarar novos rumos, trocar a segurança pela aventura e por uma possível solidão futura. E se pergunta, curiosa: na próxima vez que for à farmácia, bota um salto alto e um rímel ou se esconde atrás de uma blusa bem larga e uma sandalinha para se proteger, não ser olhada por ninguém e não ter tentação de nada? Tão mais fácil continuar como estava; feliz e conformada, como sua mãe gostaria. Está vivendo um momento de decisão que é só dela e sabe que para certas coisas não se pode pedir ajuda de amiga nem de analista. Mulher é um bicho perigoso, e com elas ninguém sabe o que pode acontecer. No caso específico, nem ela.
Crônica.E.002.Eu, o ser e a dúvida - Angelo Rodrigues
O quarto é uma selva de neurose. É ofegante a permanência, é persistente o desejo, vontade tão própria de inovação.
Uma porta e uma janela são a novidade do cativeiro. Tudo se conhece; um conhecer terrível e espantado que se dilui em interrogação.
Diz-me, ar perplexo de mundo, onde está a fuga? Tu, visitante assíduo e perspicaz que vagueias por este meu Inferno. Chega-te à cama minha universal, repouso dos sonhos que sugam o meu inquieto pensamento. Chega-te cá, meu perdido dualismo, que reflectes sem saber quando e porquê, que divagas viajando na essência abstracta e pura de um Não-Ser das coisas e não-coisas.
Não te rias de mim, vida repouso de deuses-demónios; não esperes que eu tombe a teus pés, imagem talhada de Incerteza.
Mata-me só hoje, nobre tempestade de silêncio; afaga os gritos escaldantes de um ninguém que não é daqui, que viaja sem destino e com todos os destinos, que...
Recôndito raio de sol que penetras com esforço essa janela amedrontada, vem um pouco mais a mim, aquece, ilumina este meu Não-Ser, dúvida agitada e agitante de ser Ser sem saber o que é Ser e porque é Ser na imensa frustração que é ser Ser.
Vem tu também, imagem do meu último sonho que será sempre o primeiro; vem e envolve-me na pleura do teu fascínio, tu que tens o poder da deusa profana que me encanta, que me beija o espírito, que me adormece em divino ócio
Crônica.E.001.Eis a questão - Fátima Irene Pinto
Há pessoas que nos libertam... há outras que nos aprisionam e asfixiam. Há pessoas capazes de extrair de nós o que há de melhor e mais bonito... há outras que colocam em evidência toda a nossa imperfeição... há pessoas que nos tomam pela mão e nos conduzem... há outras que nos empurram para o abismo da desorientação... há pessoas que semeiam flores de esperança e luz... há outras que vão colocando espinhos na nossa cruz. Há pessoas que nos injetam vida, otimismo, confiança... há outras que aniquilam nosso equilíbrio e temperança. Há pessoas que nos fazem multiplicar nossos poucos talentos... há outras que nos fazem enterrar os poucos que supúnhamos ter. Há pessoas que são balsâmicas em nossas vidas... há outras que tornam completamente inócua a nossa lida. Há pessoas que nos estruturam e nos levantam... há outras que nos fragmentam e nos desmontam... Assim posto, até onde o destino o permitir, que possamos ficar longe daqueles que nos são corrosivos, e que possamos ficar perto daqueles que nos são benfazejos. Mas as vezes, por uma destas razões incompreensíveis da natureza humana, descobrimos com espanto que há pessoas que simultaneamente nos elevam e nos abatem... nos levantam e nos derrubam... nos apedrejam e deitam bálsamo nas nossas feridas. E, mais perplexos ainda ficamos quando constatamos que, por um capricho da Criação, ou quem sabe, da nossa mísera condição, não somos vítimas passivas deste processo, e que vivendo e interagindo, vamos nós também distribuindo (querendo ou não querendo) alegrias e dores, mágoas e alentos, luz e escuridão... Como se dançássemos em perfeita simetria Ou como se contracenássemos em perfeita sintonia com os nossos "balsâmicos algozes". Tal é a humana condição... eis a questão!
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