quarta-feira, 30 de setembro de 2020

A.155.Apoteose - Alexei Bueno


O brilho das avenidas
Gargalham na minha alma!
Sinto ódio e sinto calma
Por muito mais de mil vidas.
E vem-me a dor de repente
De certa mulher que morre
Enquanto a alegria escorre
Na festa de algum vivente.
Ser todos num só segundo!
- Os mortos mais de mil anos,
Os que urram dos seus planos
E os vencedores do mundo.
Os que morreram leprosos
No instante em que a minha amada
Me beija a boca, encantada,
Em sonhos maravilhosos...
Oh! grandes saltos da vida,
Oh! heróis velhos da raça,
Inventários de desgraça,
Toalha amarelecida.
Quero morrer entre taças,
Virando gelos na boca,
Gritando uma coisa louca,
Pisando um bolo de passas.
E que todos batam palmas
E riam sentindo inveja,
Com berros cor de cereja
Vendendo-me as suas almas.
E depois saiam dançando
Enquanto eu morra de tosse
Em meio à festa de posse
De um rei que está caducando....
Grandes brilhos sobre um rio!
Navios lançando salvas,
Brilhantes bandeiras alvas,
Palhaços sentindo frio.
Os sinos todos batendo
Com os padres dependurados,
Comícios desesperados,
Cidades enlouquecendo.
Avenidas explodindo
Com as luzes jogando à rua
As coroas cor de lua
De um soberano fugindo...
Enquanto que num convento
Um frei descobre a verdade
Num livro sem mais idade
Que espirra de ouvir o vento.
E um moço desesperado
Escreve em fogo um poema
Sem princípio, fim ou tema
E sonha um tiro bem dado.
Na hora em que eu fico a ver
A minha amada sonhando
Na boca de outro e falando
Palavras que eu não vou ter.
E atrás as famílias jantam
De lado a lado com os mortos
Lançando sorriso tortos
Que são a vida e me espantam...
Certidões de nascimentos!
Caixas velhas de costura,
Camisas para a loucura,
Perdões de pêndulos lentos...
As tranças de uma criança
Que morreu velha há cem anos
Pagando a um santo de panos
Pagando sem esperança.
Meretrizes a vender
Suas bocas para a desgraça
Pra que esta possa, com graça,
Sorrir ali e esquecer.
Corridas pelas cidades,
Mergulhos dos edifícios,
Gargalhadas, precipícios,
Promessas de eternidade.
Cabelos, para sonhar,
Não fossem também sonhados,
Olhares desenganados,
Anéis no fundo do mar...
Oh! farós! Oh! mendigos!
De seis mil anos de tudo,
Castelos, cartas, veludo,
Lençóis, pescoços, postigos.
Nucas com beijos vermelhos
À luz de um anjo de ferro,
Cetins, amores, enterro,
Olhares pelos espelhos.
O fogo do que morreu
Para queimar-nos de frio!
Sensações como que um rio
Sob a ponte que sou eu.
De braços entre as cortinas
E frases ao pé do ouvido,
Violino enlouquecido
Num cofre de sedas finas.
O ter a alma uma cela
Fechando uma multidão,
A grade o meu coração
Que a mão da turba esfacela.
O sonho do que eu não fui
Sobre tudo o que é apagado,
Suposto castelo alçado
Na noite que nunca rui.
Sensações me sacudindo
Como flor num vendaval,
Feridas de bem ou mal
Abrindo a boca e sorrindo.
Até não mais eu saber
Se vivi pouco ou em excesso,
Se sou tudo ou tudo impeço
Num sonho que nunca é ser.
Quando aí chego à minha porta
Que me diz que tudo é pouco
E a vida, mesmo a de um louco,
Se esvai como a aragem morta.

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