quinta-feira, 31 de dezembro de 2020
C.077.Captain smart - Afonso Celso
Depois da formosa mulher do dentista americano, era, sem dúvida, o capitão canadense o mais interessante personagem de bordo.
Meses antes, ao que se dizia, naufragara entre as Bermudas o navio que ele comandava.
Perdera-se completamente a carga e sucumbira quase toda a tripulação.
Cabia a Captain Smart não pequena responsabilidade na catástrofe - afirmavam à meia voz passageiros bem informados. E o fitavam rancorosamente de esguelha, quando passava carrancudo e hirto, o eterno cachimbo plantado no matagal dos bigodes ruivos, que lhe interceptavam a boca e se emaranhavam na barba, derramada em catadupa sobre o peito.
O infeliz comandante regressava à pátria, despojado pelo mar dos haveres e da reputação.
Antipatizavam todos com ele no paquete em que viajávamos. Ninguém lhe dirigia a palavra. Chegavam a considerar de mau agouro a sua presença. Se algum acidente desagradável ocorresse durante a derrota, atribuí-lo-iam com certeza à sua nefasta influição.
Penosíssimas deviam ser-lhe as monótonas horas de travessia. Levantado antes do alvorecer; forçado à inação; arredado dos companheiros; sem tomar parte nos jogos e diversões com que estes procuravam matar o tempo; desdenhando livros e jornais - arrastava os intermináveis dias a fumar, enterrado numa cadeira de lona, os pés apoiados à murada, encarando insistentemente as ondas - ou a caminhar pelo convés, de proa a popa, as mãos cruzadas nas costas, carregado o aspecto, no acabrunhamento de quem, ao peso de revoltante injúria, cogita em vão no como se desforçar.
Mas Captain Smart às vezes transfigurava-se.
No alto mar, importa acontecimento de monta o encontrar-se um outro navio.
Sacam-se os binóculos. Cada qual formula as suas observações e conjeturas.
Surdem, de ordinário, vivas discussões.
- É um vapor; um yatch à vela; vai para a Europa; regressa da África; um vaso de guerra; brigue de pesca; alemão; inglês - opina-se com convicão e profusos argumentos.
Vistas privilegiadas dão aqui pormenores. Contestam-nos acolá. E durante largo período concentram-se olhares e atenções na sombra longínqua, que ora cresce e se acentua, apresentando os contornos da embarcação, ora apaga-se e dissolve-se, miragem etérea na linha confinante da água e do céu.
Retina marítima, habituado a perscrutar os meandros da imensidade líquida, Captain Smart parecia adivinhar o barco iminente, ainda invisível para os mais.
A fisionomia expandia-se-lhe então. Apontava, soltando sons guturais, para um trecho perfeitamente unido e límpido da aquática planície. E mais tarde, não raro após longa demora, emergia efetivamente dali, e se aproximava, um lenho errante qualquer.
Enquanto o navio lobrigado se conservava em distância, ou afogado na bruma, dele não despegava os olhos o comandante náufrago. Acompanhava-lhe com solicitude os movimentos; dir-se-ia que lhe estudava cuidadosamente a manobra, absorto, seriamente empenhando no orientação do seu rumo.
Denunciava-se feliz nesse momento. Nos seus olhos ríspidos perpassavam suavizações. Defrontando um dia comigo, que o observava curioso, quase esboçou um sorriso.
À proporção, porém, que o barco se achegava, ia-se-lhe demudando a feição. Sonho querido parecia evolar-se de sua alma, onde entornara claridade fugaz. Ficava mais taciturno do que dantes. Agressivo e procelo o seu ar.
Então, se o tal barco emparelhava com o nosso, ou cruzava o caminho deste, de modo que entre os dois peregrinos das vagas se trocavam sinais, Captain Smart traía mostras de inexplicável agastamento, virava as costas ao primeiro, calcava nervosamente o chapéu sobre a fronte, cerrava as pálpebras e se envolvia em bastas fumaças do cachimbo, aspiradas e expelidas com frenesi.
Naquele coração agreste, estuava evidentemente uma dor misteriosa e cruel, dessas de que se padece e se morre, sem que jamais o próprio paciente as possa bem compreender e explicar.
Despeito? Inveja? Remorso? Esperança? Quem o lograria dizer?!
Evocaria, como um fantasma, a imagem da nave confiada ao seu governo, de que a sua perícia era a alma e a defesa contra as perfídias do pego, nave galharda, cujos membros, por negligência sua talvez, à semelhança de um cadáver espostejado por uma fera, vogavam agora esparsos e despedaçados, à mercê das correntes e dos ventos?
Recearia divisar no tombadilho entrevisto a figura de algum camarada seu, escapo, como ele, ao desastre, e que, reconhecendo-o, o aniquilasse com um gesto de maldição?
Anima-lo-ia, porventura, a ilusão, cedo dissipada, de que tudo não houvesse sido senão um pesadelo horrível e de que o ponto pressentido na fímbria do horizonte se transformasse na embarcação morta, milagrosamente ressuscitada?
Revoltar-se-ia contra a iniqüidade inflexível do oceano, ao aspecto de suas novas vítimas possíveis?
Comprazia-se-me o imaginar nestas presunções. Do fundo de meu ser subia uma corrente de dó para com o rebarbativo comandante.
Quisera conhecer e mitigar a sua mágoa íntima, lenir com a caridade da compaixão as lágrimas de fogo que percebia brotarem-lhe n'alma sem o refrigério de vingarem extravasar-lhe pelos olhos ressequidos.
Captain Smart teve, suponho, a intuição dos meus sentimentos comiseradores.
No dia em que desembarcou, compreendi que hesitava em me falar e agradecer. Não se despediu, entretanto, de mim, como de ninguém. Lançou-me apenas um rápido olhar de humilde reconhecimento, enquanto no seu torvo aspecto relampejava amistosa expressão.
Jamais trocamos palavra. Separamo-nos desconhecidos, indiferentes, tomando veredas opostas, à lei de heterogêneos destinos. Nossas existências coincidiram um segundo, em interseção fortuita, e passaram, no turbilhão infinito da vida. Com quantas tragédias não topamos assim quotidianamente.? Nada resultará para nós ou para elas do respectivo atrito? Significarão secretas afinidades os espontâneos e súbitos movimentos de um espírito na direção de outro? Reminiscências de relações anteriores à nossa atual organização corpórea? Pactos para ulteriores existências?!
Nunca mais, provavelmente, verei Captain Smart, neste planeta. Esvaiu-se decerto a minha figura na sua memória, como em mim se extinguiria a dele se não me viesse a fantasia, numa noite triste, de fixar no meu livro de notas alguns traços do seu perfil.
Mas faz-me bem a lembrança do seu agradecido olhar.
Acabo de sentir, na consciência, ao recordá-lo, uma espécie de consoladora satisfação semelhante à de quem houvesse piedosamente acendido em bravio e perigoso rochedo, batido de vagalhões desesperados, a luzinha de um pequenino farol.
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