sexta-feira, 18 de novembro de 2022

I.054.Inconstância das coisas do mundo - Gregório de Matos Guerra


Nasce o Sol e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tritezas e alegria.
Porém, se acaba o Sol, por que nascia?
Se é tão formosa a Luz, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?
Mas no Sol, e na Luz falta a firmesa,
Na formosura não se dê constancia,
E na alegria sinta-se a triteza,
Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza.
A firmeza somente na incostância.

I.053.Inconfesso desejo - Carlos Drummond de Andrade


Queria ter coragem
Para falar deste segredo
Queria poder declarar ao mundo
Este amor
Não me falta vontade
Não me falta desejo
Você é minha vontade
Meu maior desejo
Queria poder gritar
Esta loucura saudável
Que é estar em teus braços
Perdido pelos teus beijos
Sentindo-me louco de desejo
Queria recitar versos
Cantar aos quatros ventos
As palavras que brotam
Você é a inspiração
Minha motivação
Queria falar dos sonhos
Dizer os meus secretos desejos
Que é largar tudo
Para viver com você
Este inconfesso desejo.

I.052.In memória - Carlos Drummond de Andrade


De cacos, de buracos
de hiatos e de vácuos
de elipses, psius
faz-se, desfaz-se, faz-se
uma incorpórea face,
resumo de existido.

Apura-se o retrato
na mesma transparência:
eliminando cara
situação e trânsito
subitamente vara
o bloqueio da terra.

E chega àquele ponto
onde é tudo moído
no almofariz do ouro:
uma europa, um museu,
o projetado amar,
o concluso silêncio.

I.051.Identidade - Mia Couto


Preciso ser um outro
para ser eu mesmo.

Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta.

Sou pólen sem inseto.

Sou areia sustentando
o sexo das árvores.

Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro.

No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço.

I.050.Ilusão e solidão - Elcimar Reis


[...] eu era ilusão e solidão; era alguém caminhando pelas ruas apenas com o pensamento de que um dia poderia encontrar alguém como tu; longe da realidade, longe de qualquer sensação próxima ao que tu eras. 
[...] eu era ilusão e solidão até finalmente esbarrar contigo em uma rua qualquer; eu o vi e encontrei no seu olhar o que estava nos meus! Alguém procurando a felicidade nos segundos que lhes eram direito; eu o amei, o imaginei feliz, e o "nós" para mim existia e era real. 
[...] eu era ilusão e solidão; você veio tão rapidamente quanto foi; deixando-me com minhas queixas e arrependimentos; imaginando apenas no que havia errado, e desejando minha própria condenação. 
[...] sou ilusão e solidão; nada mais. 

I.049.Insensato coração - Douglas Farias


Leva a sério
O que penso de você
Não é porque somos amigos
Que tenho que me esconder

Todo esse tempo
Que estive junto a ti
Permiti me apaixonar
O amor passou a existir

Incorreto, insensato
O coração não correspondeu
Quando falar que te amo 
Não finja que não percebeu

O que eu mais queria
A amizade nenhum limite impôs
Um dia perceberás
Que o amor não fica pra depois

Incorreto, insensato
O coração não correspondeu
Um dia perceberás, um dia perceberás
Que não existe um amor igual ao meu

I.048.Imagem me - Suziany Araújo


Houve um tempo
Em que busquei
Borboletas no céu

Fechei a janela
Desenhei um coração
Usando a ponta de um papel

O chão de barro
Ficou ao lado
Ouviu solidão

Quem me dera
Encontrar a viola
Que hoje tanto chora
Sobre a luz desse luar

Espero encontrar
O vento que um dia
Furtou-me os pensamentos
E antevia:
Os traços mais distantes
Do tempo sem partida

I.047.Indecisões e certezas - Gilson Tadeu Galhardi


Tenho certeza que irei te encontrar
Teus olhos refletem apenas ilusões
Não existem motivos para te amar
Apenas esperanças e recordações

Tento imaginar como você se sente
Diante deste amor tão inesperado
Que deixou teu mundo tão abalado
Trazendo indecisão em sua mente

Nós estamos sempre conectados
Dependo apenas de sua tristeza
Que só enaltece mais tua beleza
Para os meus olhos apaixonados

Então não importa onde você esteja
Tenho certeza que irei te encontrar
Não existem motivos para te amar
Ter você é o que minha alma almeja

I.046.Incandescente - Cléo Alves


Chegaste amor em vão momento
Na vaga de minutos displicentes
Que não notar se fez seu sentimento
Aos meus desejos dantes tão carentes

Chegaste mas fui eu ausente
E dei-lhe a face toda descontente
Minha presença tão completamente
Lhe foi distante bem ali presente

Ficaste ali parada em vão
Mas em vão não foi inteiramente
Ah... Meu amor! Foi no coração...

Que esse amor tão indiferente
Abriu os olhos na escuridão
E viu tua chama tão incandescente!

I.045.Insúbita - Douglas Farias


Adiantei o pedido para noite deste dia
Tive cuidado de selecionar o jantar que gostaria
Ajeitei a cadeira, acendi na mesa cada vela
Pedi ao garçom que aguardasse a chegada dela

Quanto tempo passou até ela chegar?
Quanto tempo terei que me controlar?
Quanto mais tempo passa não seguro a emoção
Quanto mais tempo passa, penso ter recebi um "não"

Sozinho esperei, não me aquietei
Mas já não podia aguentar
Aquela noite não poderia me reservar
Uma decepção que te faria me negar

Quanto tempo passou até ela chegar?
Quanto tempo terei que me controlar?
Quanto mais tempo passa não seguro a emoção
Quanto mais tempo passa, temi ter recebido um "não"

Olhei para o relógio e bobo fiquei
Não percebi o quanto me adiantei
Ri da situação que me aconteceu
E insubitamente linda ela apareceu

I.044.Ingratidão - Eliane F.C.Lima


Quando moço tinha sido herói. Quase profissão. O heroísmo foi diminuindo aos poucos. Aos quarenta e cinco, nem um heroismozinho para consolar. Mas também agradecia a Deus: não tinha mais coluna para aquilo. Heroísmo requer uma cervical perfeita e uma ótima lombar. As suas duas em cacarecos. Resultado: foi parando, ele e a coluna; foram enferrujando.
Agora vivia de lembranças, decadência para um herói. Quando um diz “naquela época” ou “no meu tempo” é que o fim já chegou.
Horrível é quando o herói abre a gaveta, recortes de jornal amarelados, para provar as aventuras. Ninguém se lembra mais. Todo mundo sai, finalmente, mas ele fica, vendo uma foto, conferindo outra, olhar parado de saudade.
Ele, agora, além de tudo, tinha dado para diminuir o heroísmo alheio, quando via alguma ação destemina em defesa de alguém, coisa rara de aparecer na televisão, é verdade. Nada que se comparasse a seus feitos, dizia ele, diante da louvação do jornalista. Isso era a pior parte do herói: velho, aposentado, esquecido e sem generosidade. Desdém, sentimento pequenino.
Um dia, uns sobrinhos entusiasmados – herói não casa, não tem tempo –, chegaram a casa, contando um filme novo sobre um badaladíssimo super-herói americano – não aceitava o “super”: ou se é herói ou não se é. Ao recontarem algumas proezas do tal, sentiu-se sufocar. Aquilo era plágio, apropriação indevida do alheio. Tinha sido ele o autor daquela façanha. E provar como? Daquela vez a mídia, que não se chamava assim naquela época, não estava lá. Só um grupo de curiosos e os salvos por sua bravura. Lembrava bem, tinha sido aplaudido por um grupo enorme. Nesses tempos idos, ninguém se dava ao trabalho de patentear nada, boa fé e ingenuidade. E herói legítimo faz tudo por espírito de colaboração. Esse é o valor maior da ação. Recusa até elogios e medalhas. Escondia algumas debaixo das roupas só para lembrar da mãe, a verdadeira colecionadora.
Quando terminou seu discurso indignado, os meninos se embolaram de rir. Adoravam as histórias do tio, para eles pura ficção. Um, mais atrevidinho, sinal dos tempos, ainda comentou:
- Dessa vez você exagerou, tio!
Revoltado com a usurpação, desanimado da vida, teve certeza que nada mais tinha a fazer neste mundo. Resolveu pular de um edifício.
Fotos e mais fotos no jornal. Nenhuma alusão ao passado de glória. Nem um repórter dos antigos foi conferir.
Um religioso, olho pra cima na banca de jornal, cabeça sacudindo, reprovativo:
- Quem se suicida é um covarde.
Fonte: http://conto-gotas.blogspot.com

I.043.Invulgar - Eliane F.C.Lima


As calçadas estavam cobertas de flores lilases, que não se sentiam constrangidas por se esparramarem até o asfalto. Na primavera – era primavera! –, as glicínias, que se estendiam por sobre todos os muros das casas, irreverentes e espaçosas, transbordavam para fora, tomando conta de tudo. O passante se sentia homenageado, tendo aquele tapete desdobrado para si. A rua era famosa pelo colorido aveludado. Mas, nem por isso, abria mão de ser silenciosa e requintada. Vez ou outra passava um carro, caro, importado, da mesma gente que mantinha aqueles jardins cuidados, aquele silêncio perfumado e cromático. Mas, nem por isso ainda, naquele dia, deixou de haver um corpo caído no meio das flores, atrevendo-se a manchar-lhes a suavidade lilás com seu vermelho impudico e derramado. Mas não foi só: o atrevimento se estendeu aos carros de polícia que também ousaram quebrar o requinte estabelecido para veículos e vieram se postar ao longo do meio-fio. E violentaram o silêncio dos requintados com suas sirenes obscenas. E houve mais: as fotos da imprensa, que se avolumou nas calçadas, em volta das árvores, encostando-se nos muros violáceos, que quase se encolhiam com a ousadia. E aqueles pés, atrevidos, pela primeira vez, coagiram as flores lilases, ofendidas ante a surpresa da invasão.

I.042.Imutável Final - Eliane F.C.Lima


Leiloquinha do papi, Tô com uma saudade danada de você. Não esqueço nosso último encontro. Espero você lá na adega. Com esse friozinho, um vinho cai bem. Depois a gente inventa... Mozão Oi, my baby Lei, O que houve? Te esperei até as dez. Tô preocupado. Aconteceu alguma coisa? Só liguei o comput para saber o que houve. A gente não pode ligar pra você, não é... Mozão Menina, Já to ficando nervoso. Mandei a última mensagem há três dias e você não responde. Por favor, diga alguma coisa. Só pra eu saber se está tudo certo. Tenho ido à adega todos os dias ver se você aparece. Mozão Oi, Não tenho conseguido dormir. Estou indo a todos os lugares aonde sei que você vai. Só para te ver de longe. Nem estou trabalhando direito. Não consigo me concentrar. O Pagaré, Paganre, Pangaré descobriu alguma coisa? Viu só o meu desespero, nem consigo escrever direito. Se não responder, vou radicalizar. Eu Leila, Fui a seu trabalho hoje. O pessoal disse que você não tem ido lá. Está doente. Seu marido ligou, avisando. Eu fiquei gelado. Quase desmaiei. Não pode nem levantar da cama para ir ao comput? É isso? Eu Oi, Mozão, Eu estava doente mesmo. Mas estou louca para te ver. Te espero às nove horas. Imagine que o Pangaré vai viajar e fico livre a essa hora. Abaixo, um endereço novo e seguro para a gente se encontrar. É um hotelzinho bem baratinho, mas escondidinho: Rua General Gastão da Costa, 52, na Lapa. Não deixe de ir de jeito nenhum. Bolei um monte de surpresas para você. Sua eterna Leila.
Fonte: http://conto-gotas.blogspot.com

I.041.Invencível Batalha - Eliane F.C.Lima


Intrépido era o adjetivo que classificava aquele homem. Nascido na Idade Média, seria cavaleiro heroico de algum rei conquistador. Tinha nascido, porém, no século XX, vida de cidade moderna e grande. Defrontava-se, mesmo assim, com muitas batalhas, principalmente as sociais. Talvez até mais acirradas. Não se via o inimigo, quando era o próprio Estado, por exemplo, ferindo seus direitos. Mas não se intimidava, procurando as vias legais ou levando seus concidadãos para as ruas, se necessário. Enfrentou a polícia, seguidamente, braço armado do stablishment para manter-se stablishment. Era um corajoso líder. E até na vida pessoal. Não ficava quieto, se o síndico do prédio ou algum vizinho, ou qualquer um, seja dita a verdade, lhe faltasse com a devida consideração. Nunca levou desaforo para casa. Direito era direito. Não que fosse um sujeito de perder as estribeiras, afeito a brigas. Não. Era até muito ponderado, tentando fazer o outro entender o erro cometido. Mas até um limite. Daí para a frente, agia conforme o preciso, embora sem perder as rédeas de seus atos. Naquelas férias, meio cansado da lide urbana, tinha ido para a casa de uns amigos, localidade rural, mato para todo o lado, pouca gente e muito silêncio. Ideal para um recompor-se, beber vinho à noite, conversar muito, dormir cedo e acordar mais cedo ainda, cheiro de mato molhado de sereno, entrando pelas narinas. Surpreender o sol saindo de sua cama. Boca ainda cheirando a café com leite e bolo de milho, resolveu passear pelos matos. E foi andando, descobrindo pequenas trilhas feitas por outros pés curiosos, florezinhas sem pedigree, mas com muitas cores e graças, juntinho ao rosto. Até que, de repente, a vegetação cerrada abriu e o caminhozinho ladeou uma várzea não imaginada. E viu o único adversário que temia nessa vida: um boi. Aliás, vários deles, amontoados, pastando, sua boca mole para lá e para cá. E seus chifres. Um deles o olhou tão surpreendido quanto o homem. Continuou, no entanto, seu processo de movimentar o queixo, sem perdê-lo de vista. Ele fez o mesmo, por sua vez. Estando aqueles a distância, reuniu toda a sua coragem e continuou pela trilha, o olho firme, porém, para o boi. Dez metros adiante, quando volta a cabeça, finalmente, para a frente, todo o pelo que tinha no corpo se eriçou: pela mesma minúscula vereda, um boi atrasado vinha trotando. Sem ter onde se esconder, puro instinto, descarga de adrenalina enchendo suas artérias, virou-se de costas e voltou, caminhando o mais depressa que podia, sem correr, para não estimular o terrível animal a fazer o mesmo. Em nenhum momento olhou para trás, cuidado para não desafiar o opositor. Só parou na segurança do portãozinho familiar e amigo, muito tempo depois, vista escura, pernas bambas. Por sorte, naqueles ermos não tinha topado com vivalma. Mesmo a pessoa mais heroica sempre encontra um desafeto impossível de enfrentar.
Fonte: http://conto-gotas.blogspot.com

I.040.Io me ricordo - Eliane F.C.Lima


Isso se passava no tempo em que crianças não falavam em conversa de adulto, só ouviam. Alguns almoços de domingo, pai, mãe e filhos sentados à mesa. Era a senha: desciam, da casa de cima, as três irmãs do pai. Vinham conversar. Começava conversa, sim, idéias jogadas aqui e ali. Tudo muito comportado, ainda. Aos poucos, um espírito felliano baixava naquela família carioca, avô baiano. Um frêmito tomava conta dos quatro irmãos, ninguém aceitava mais o que ninguém dizia, discussão instaurada. As crianças, para surpresa dos adultos que seriam futuramente, embora caladas, se divertiam muito, único momento de descontração no rigor da educação severa da época. Quase indo às vias de fato, providencialmente, sempre uma das irmãs - ou duas - desmaiava e era preciso socorrer. Atentos, os olhos infantis aguardavam, curiosos, o desfecho apoteótico do drama teatral dominical. Pena não poder aplaudir.
Fonte: http://conto-gotas.blogspot.com

I.039.Inconfessáveis olhares - Angélica T. Almstadter


Tantos desejos nesses olhares.
Tão inconfessáveis juras
ditas no silêncio que nos envolve.
Você e eu, tão estranhos
e tão indisponíveis um para o outro
e ainda somos amantes ardorosos
nos nossos momentos únicos.

Derrapo nas palavras
você se perde nos verbos
quando o silêncio maculamos
com falas que nada preenchem.

Voltamos aos olhares íntimos,
profundos no aconchego inaudível
que conservamos em cumplicidade.
Você me convida e eu aceito
o banho de olhares como longos beijos.

I.038.Interrogação - Camilo Pessanha


Não sei se isto é amor. Procuro o teu olhar,
Se alguma dor me fere, em busca de um abrigo;
E apesar disso, crê! nunca pensei num lar
Onde fosses feliz, e eu feliz contigo.
Por ti nunca chorei nenhum ideal desfeito.
E nunca te escrevi nenhuns versos românticos.
Nem depois de acordar te procurei no leito.
Como a esposa sensual do Cântico dos cânticos.
Se é amar-te não sei. Não sei se te idealizo
A tua cor sadia, o teu sorriso terno...
Mas sinto-me sorrir de ver esse sorriso
Que me penetra bem, como este sol de Inverno.
Passo contigo a tarde e sempre sem receio
Da luz crepuscular, que nerva, que provoca.
Eu não demoro a olhar na curva do teu seio
Nem me lembrei jamais de te beijar na boca.
Eu não sei se é amor. Será talvez começo...
Eu não sei que mudança a minha alma pressente...
Amor não sei se o é, mas sei que te esremeço,
Que adoecia talvez de te saber doente.

I.037.Intimidade poética - Rosa Pena


Não pude te ver nu!

No mundo não tinha

só eu e tu.

Não pude te chamar de meu!

Na vida não tinha

só tu e eu.

Segue essa poesia

tentando dizer nós.

Enfim sós.

I.036.Intimidade com a morte - Pastorelli


O estômago roncava. Sentia uma sensação esquisita. Deveria ser o café que tomara as pressas antes de vir para cá, pensou. Precisava ficar andando de um lado para outro para aliviar um pouco a sensação. Olhou o relógio, três horas da madrugada. Faltava muito tempo ainda. Também porque fora marcar para tão tarde? Na esperança de vir alguém? Seus parentes e amigos eram aqueles que estavam ali. O frio gelava a carne cansada. Ainda bem que não ventava. Nada se extingue, o fim é o princípio. Será verdade? Realmente se for fazer uma análise rigorosa nada se extingue, há sempre uma transformação moldando as coisas. A morte é uma transição da matéria onde à vida escapa por entre osdedos dos sentimentos. Nego a morte para tentar chegar além do esquecimento.Nisso o carro fúnebre entrou de ré no acostamento. Mais um que chegava para a sua derradeira viagem.
Os funcionários retiraram um caixão grande, bonito, bem envernizado. Todos comentaram o tamanho do caixão. E o pessoal que o acompanhavam, a maioria estavam vestido de branco.Será pai de santo? Ou uma mãe de santo. Não deu atenção, seguiu para o outro lado, tentando espantar o frio.
Andou até chegar no fim do corredor. Ficou longo tempo parado com os olhos mortiços de sono contemplando seu vulto refletido no sujo vidro da porta. Não se reconhecia, ou melhor, se reconhecia, mas certa dificuldade lhe dizia que o que via era apenas uma fútil imagem dele mesmo.
Imagem falsa de um ser que desejava estar longe dali. Não era ele, e, no entanto, se virou ao ouvir que alguém se aproximava. Que droga, não podia pelo menos ficar um pouco sozinho com seus próprios pensamentos? Aliviado suspirou ao notar o ruído sumindo na distância daquelas paredes. Abriu a porta e saiu para a madrugada fria. O ar o reanimou um pouco. Deu uma volta pelo prédio velho da prefeitura. Parou em frente à placa. Aquele edifício fora inaugurado por então prefeito Jânio da Silva Quadros. Já era a terceira vez que lia a placa. Voltou a sentar no banco perto da porta.
Estava evitando entrar e ver sua mãe no caixão. Não queria ver, não gostava, tinha a impressão que aquela seria à última imagem dela que ficaria gravada na sua mente. Lembrou de uma história que sua mãe vivia sempre contando. E que ultimamente, sempre que se começava a falar em velório, sua irmã contava. O tio Antônio, casado com uma irmã do seu pai, falecera, estava sendo velado em casa.
Naquele tempo era raro um defunto ser velado no cemitério. Ele não queria ir, mas como ordem de pai é ordem, foi obrigado a ir. O tempo todo ficou na calçada, nem tinha coragem para entrar e cumprimentar a tia e os primos, por não querer ver o caixão. E aos poucos, aproximava, criando coragem para entrar, e no instante em que estava na porta, transpondo a soleira, de imprevisto uma mulher apareceu gritando atrás de dele: - Aí, o que fizeram com o meu querido irmãozinho. Você não podia morrer, gosto de você. Levado pelo susto, foi empurrando para dentro da sala, quase derrubando o caixão e dando de cara com a cara cadavérica do tio. Ele já era magro, careca, sem dentes, e deitado no caixão envolto em flores, estava pior que a cara do Michael Jackson. Ele começou tremer, a suar, sem saber o que fazer sendo empurrando pela mulher que não parava de gritar, estava quase desmaiando. A mãe vendo a aflição do filho puxou o coitado tirando ele dali. Levou para a cozinha e deu um copo de água.
Ele não voltou mais para a sala, mais tarde foi levado para casa.
Que ele se lembre esse foi o seu primeiro encontro ou que teve a sua primeira intimidade com a morte. Isto é, que teve uma noção do que era a morte. Das outras vezes fora sempre alguém distante ou vizinho, com o falecimento do cunhado do seu pai poderia dizer que foi a primeira vez que viu a morte próxima dele. Quando os agentes funerários chegaram, ele se distanciou, não quis presenciar o momento da tirada do corpo da mãe da cama e ser colocada no caixão. E grato ficou ao saber que não precisava acompanhar o motorista no carro fúnebre. No enterro do pai, não lembra porque motivo teve que ir junto com o motorista até o cemitério. O pai fora velado em casa, talvez seja por isso. Certos instantes da vida ficam nítidos na mente esperando apenas o momento para vir à tona. É pensamentos que o faz seguir cada passagem da vida sendo ou não necessária. E os pensamentos ora em forma de palavras, ora em forma de cenas quase cinematográficas ajudava a passar o tempo. No início da doença da mãe perguntava freqüentemente o porquê disso ou o porquê daquilo, não se conformava com a situação caminhando daquela maneira, de um jeito que o sentir se tornasse descontrolado, chegando às vezes a perder a paciência. Sentiu a azia aumentar, queimar trazendo o gosto do café na boca. Pensou ir ao banheiro e vomitar, desistiu, não tinha coragem de enfiar o dedo na garganta e provocar o vomito. Foi até a lanchonete, talvez tomando alguma coisa passasse a azia. Pediu uma cerveja e um lanche. Tomava e comia calmamente se despreocupando um pouco com o que se passava a sua volta. Pessoas que vinham e saiam a todo o momento dentro daquele silencio que era o prantear da morte, figura indesejada e que volta e meia aparecia, ou melhor, que sempre esta ao nosso lado, a gente que não a percebe. Riu ao pensar nisso. Tudo isso eram apenas palavras que se juntando a outras formavam o sentir concreto da vida. Era apenas preciso coragem para pronunciá-las. Ele não tinha e nunca tivera essa coragem, essa audácia de expressar o seu sentir em palavras que soassem concretamente a vida, tanto a vida real como a vida irreal. Aliás, chegou à conclusão que sempre vivera com palavras que concretizavam a vida irreal que até aquele momento. Talvez se ele tivesse concretizado mais as palavras em sons e não em pensamentos, pudesse sua vida ter sido outra, diferente, mais dinâmica. Um exemplo disso estava no dia em que sua avó morrera.
Não lembrava exatamente do falecimento da avó. Não saberia dizer se já estava morando em São Paulo. E muito menos o detalhe do velório, do enterro, quem estava e quem não estava. Recordava-se de uma cena apenas: da mãe chorando. Estavam numa sala e, sentada na poltrona, sua mãe chorava. Ficou longo tempo observando o choro descontrolado da mãe sem dizer uma palavra. Uma palavra que pudesse amenizar o sofrimento materno. Descobriu que ao ser pressionado não sabia agir ou o que dizer. A avó apesar de ter sido pessoa boa não poderia afirmar que gostava dela imensamente para chorar sua morte. Sentia é claro, mas não era um sentimento insuportável que o tempo aos poucos amenizaria. Esse sentimento bem antes da morte da avó já estava amenizado, o que não conseguiria fazer sua mãe entender. Sentia e até entendia o sofrimento da mãe e dos outros, o que não entendia e, muito menos teria que explicar era o seu sentimento. As fibras da sua mente sofriam e choravam a morte da avó, patético choro e maneira de expressar a dor. Dor que ele guardava apenas para si ao invés de expressá-la, de carinhosamente reconfortar mostrando seu amor para a avó e para com a mãe. No entanto preferiu ficar ali impassível, frio, sem dizer nada, apenas vendo ridiculamente o choro dos outros. Talvez, seu íntimo quisesse ou sentisse menos oprimido, mas quem garantiria que era isso?
São coisas e sentimentos que muito tempo depois lhe é revelados. Assim tem que ser, não pode ser de outra maneira. Terminou de tomar a cerveja e comer o lanche. O dia já estava amanhecendo, mas o sol ainda não tinha aparecido. Continuou perambulando de um lado para o outro. O pessoal que passara a noite toda estava uns aqui conversando outros sentados nas cadeiras cochilando. Já sabia antecipadamente que não viriam todos que imaginara deveriam vir. Nesse momento desejou ter antecipado a hora do enterro. Como tinha marcado para a última hora, teria que esperar até o momento final. A sua mãe seria a penúltima a ser enterrada. Até o presente momento já saíram quase todos os que junto com ela chegaram, ou depois dela. Nisso lhe perguntaram se seguraria a alça do caixão.
Respondeu que não, não queria nem chegar perto. Não sentia o peito oprimido, e muito menos leve como deveria ser depois de uma longa opressão emotiva. E mais uma vez descobriu que já passara por isso, por momentos como aquele e com o mesmo grau de sentimento. Começaram o terço e as vozes se elevaram num grau de tonalidade só. De repente, como começou, a reza tinha terminado. O funcionário da prefeitura chegou perto dele e perguntou se fora ele que tinha assinados os papéis. E diante da sua resposta positiva o funcionário disse que os familiares é que tinham que fechar o caixão e levar até o carro fúnebre, que fizesse isso logo para não atrasar, pois tinha ainda outros enterros para fazer e não podia ficar esperando. Diante disso não tendo alternativa, teve que entrar no velório eajudar o pessoal a fechar o caixão. Evitou olhar o rosto da mãe. Sentia o corpo queimar, o rosto vermelho, pois sabia que todos o olhavam seus movimentos, sua expressão. Durante o trajeto procurou puxar conversa com o motorista para fugir de ter o que pensar. Parando a certa distância da cova, retiraram o caixão e passaram para as mãos dos coveiros. Reinava um silencio suave, sem vento, um sol não muito quente. Logo que a última pá de terra foi jogada e os coveiros deram o serviço por terminado, despediu-se dos poucos parentes e amigos, entrou no carro e foi embora. Mais uma etapa da sua vida estava encerrada ali naquele monte de terra que cobria sua mãe.

I.035.Instante - Conceição Pazzola


A gota d’água oscila
Na ponta de uma torneira
Contra o raio de sol poente
Refletido numa parede

Um átimo de segundo apenas
E a gota d’água desaparece
Cai, ninguém sabe onde
Some e se desvanece

Talvez ninguém tenha visto
O reflexo do raio de sol
Nele surgiu o teu rosto

Quem sabe talvez o meu.
Ninguém mais lembrará
Quantas gotas d’água

Oscilaram assim, quantas
Sequer tiveram a sorte
Instante mágico de encontro

Com a luz quente e brilhante
Efêmera luz, o raio de sol
Antes de sumir para sempre

E cair no esquecimento
Para onde costumam ir
Infinitas gotinhas d’água.