quinta-feira, 27 de abril de 2023
V.074.Volúvel - Eliane F.C.Lima
Observa da sacada o que o vento faz com um papel que roubou, indomável ladrão, de uma janela desavisada, no fim da rua: imprensa-o contra um muro em suas mãos invisíveis. Desde que caiu ali, o vento se diverte com ele, sem piedade. Só quando se cansar da vingança ou por sorte o desgraçado cair no bueiro próximo, estará findo seu suplício. Oprimido pela visão, sabe exatamente o que o pequeno mártir está passando. É exatamente assim que a vida fez com ele. Há muitos anos que um vendaval o joga daqui para ali, igualmente tonto, igualmente indefeso, igualmente vítima de uma vingança. De qual, não sabe. Quem saberá? Tantos passam pelo mesmo. Vivia tranquilo, inconsciente de sua felicidade. Que a gente só sabe da felicidade, quando não tem mais. Sem grandes exageros, ia seguindo seus dias de perfeição. Até tudo virar. Teresa morreu de repente. O filho resolveu trabalhar em outra cidade. A filha, sempre tão séria e estudiosa, se apaixonou por um malandro. Criticada, relacionamento não aceito, foi embora com o tal. E ele ficou ali, sozinho, tentando se agarrar nas lembranças boas do passado, as lufadas de vento forte já rodopiando com ele. E vieram as doenças: uma, duas, três. O médico disse que a causa era a depressão, o estresse dos problemas. A causa não importa. Ao papel, só lhe interessa que o vento pare ou que ele seja empurrado para dentro do bueiro escuro.
Fonte: http://conto-gotas.blogspot.com
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