sexta-feira, 10 de novembro de 2023

D.117.Diva da Noite - Douglas Farias


Fazes lindas minhas noites
Diva da mais linda noite
Sua imagem reflete no lago
Que banha o pé do monte

Meus encalços as águas alcançam
Banham e beijam-me os pés
Me olhas tão pequeno
Não enxerga-me o mais ralé

Trata-se de uma rainha
Governa em meus sonhos
Realiza-me os desejos
Dos simples aos medonhos

Na mais fria noite vagas
Procuras um coração quente
Atiras suas flechas de amor
Acertas o mais carente

Por quê me escolhe
Se ódio e rancor sou eu?
Não sou merecedor
Do amor que me ofereceu

Diva da mais linda noite
Queres algo de valor
Quando olhares pra mim
Receberás todo meu amor

D.116.Desejos vãos - Florbela Espanca


Eu queria ser o Mar de altivo porte 
Que ri e canta, a vastidão imensa!
Eu queria ser a Pedra que não pensa,
A pedra do caminho, rude e forte!

Eu queria ser o sol, a luz intensa
O bem do que é humilde e não tem sorte!
Eu queria ser a árvore tosca e densa
Que ri do mundo vão é ate da morte!

Mas o mar também chora de tristeza...
As árvores também, como quem reza,
Abrem, aos céus, os braços, como um crente!

E o sol altivo e forte, ao fim de um dia,
Tem lágrimas de sangue na agonia!
E as pedras... essas... pisá-as toda a gente!...
Florbela Espanca - Fanatismo 

Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida 
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não es sequer razão do meu viver,
Pois que tu es já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo , meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!

"Tudo no mundo é frágil, tudo passa..."
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, digo de rastros:
"Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu es como Deus: Princípio e Fim!..."

D.115.Dois - Mia Sodré


Uma vez vi minha alma num espelho. 
Durante um sono ou devaneio. 
Era num dia 15 de novembro. 
O suor pingava de meu travesseiro.

O que vi, a ninguém desejo. 
Foi um assombro ou um simples lampejo? 
Só sei dizer que não era meu desejo 
conhecer as marcas de todos os meus erros.

Uma alma apareceu no desespero. 
Na tormenta, o reflexo de um milênio e meio. 
Era desbotada, mal cuidada, e havia medo 
de viver outra vez em vão, correndo.

D.114.De nenhuma maneira - Douglas Farias


Sou transportado para seu lado
Nas abrangências de meu sonho
Sinto-me firmado ao seu lado
Mais que união a ti proponho

Lento na ilusão, devagar na ambição
Que transpassam na minha mente
Quero mais que uma simples paixão
"Yo quiero un amor muy caliente"

Só a passagem que é corriqueira
Mostra a velocidade de nossa vida
De perto não saio de nenhuma maneira
Diz que não, mas pede que eu insista

D.113.Me deixa - Douglas Farias


Deixa o mundo ser meu sozinho
Ora ninguém mais tem que entrar
Olha o que fizeram com meu coração
Transformaram tudo em ilusão
Agora como em mim acreditarão?

Beijei rostos frios
Abracei árvores secas
Deitei em camas de gelo
Dei as mãos para a sombra
Sonhei com nenhum sonho

Falei para ninguém vir aqui
Meu espaço virou minha praça
Já não bastou tanta tormenta?
Vieram com falsas desculpas?
Saiam, já viram o que queriam

Não irei mais
Deixa eu aqui
Esse mundo agora é meu
Entorpecido estou
Por falta de amor

D.112.Dia do nosso casamento - Betânia Lima/Wiliam Nascimento


É, acho que vou chorar
É, quando eu te olhar
É, um clipe em minha mente vai passar
É, valeu acreditar
É, suportar e esperar
É, Nosso amor será pra sempre

Será só benção o nosso lar
Toda nossa casa vai servir a Deus
Nos completaremos
Em tudo aprenderemos
Meu amor o nosso tempo chegou

Hoje é o dia do nosso casamento
Oramos tanto por esse momento
Metade se unindo, o mel e a flor
Deus confirmando esse amor

Hoje é o dia do nosso casamento
E esse sonho lindo que nós dois vivemos
Por toda nossa vida vamos lembrar
Que Deus o abençoou

D.111.Da essência - Lu Tostes


Alguém disse
que só os poetas enxergam
as pequenas grandes coisas
do mundo.

Se a pena flutua por oito segundos,
enquanto a menina abraça o amigo,
se pende o balanço solitário,
quando estala a folha seca de outono,
se treme a flor no topo da árvore,
embalada pelo vento com cheiro de azul,
bem verdade é que o poeta nada vê.

Quem o faz 
é o especialíssimo leitor,
que capta com 
seus vastos sentidos
esse templo etéreo
de delicadezas.

O poeta amanhece, floresce,
flutua, abraça, 
agoniza, pisa, 
sopra, venta e voa.
Ele nasce, vive e morre  
cada um desses infindos
frêmitos de plenitude.

D.110.Dois corações - Luiz Sergio Marino


Você é a saudade que gosto de sentir
Você é a ternura que gosto de sentir
Você é a meiguice que gosto de sentir
Você é a paixão que gosto de sentir
Você é tudo, mesmo sabendo que não posso ter você.

Mas se um dia me quiser ter ao seu lado
Lembre-se que meu coração será só seu
Este coração estará aberto para receber o seu
Com muito afeto e com muita ternura

Lembre-se que gostaria de caminhar ao seu lado
Lembre-se que gostaria de participar de sua vida
Lembre-se que gostaria de participar de suas alegrias
Lembre-se que gostaria de participar de suas tristezas
Lembre-se que gostaria de participar de seus momentos

Mas principalmente lembre-se:
Nunca esquecerei de esquecer de você.

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

D.109.Dessas despretenciosas alegrias que nos vêem - Lu Tustes


Nem sempre
meu jardim sorri em flores.
Por vezes
o jardineiro sequer abre
suas janelas embaçadas
e, entre nuvens,
o sol se esconde
com pequenos
lábios amarelados.

Mas a esperança
sempre prevalece
no dia
em que, alheias
à luz, às cores
e às pobres retinas riscadas,
passeiam borboletas distraídas,
tracejando sua estrada.

Segue o tempo natural
de todas as coisas
(expansões, recolhimentos),
enquanto as belas,
ainda que sós,
soluçam plenamente
a vida
por entre os girassóis.

D.108.Dia nublado - Mauricio Dieckman


Nessa manhã
Que o sol não apareceu
Lembro dos dias de chuva
Só você e eu

Do beijo molhado
Da cama quentinha 
De suas pernas
Roçando as minhas

Um filme
Qualquer na tv
Mas tudo o que importa 
És você

Sinto saudades
Desse tempo
Sinto falta
Daquele momento 

Mas hoje não chove 
Só está nublado 
É um bom dia
Pra lembrar do passado
Mauricio Dieckman (Sonhador)

D.107.Desculpem-me, sou carnívoro - Um Poeta Vagabundo


                Desculpem-me, sou carnívoro, saboreio cadáveres cozidos, fritos, assados ou grelhados, aprecio aquela  gordurinha  bem tostada de uma picanha ou contra-filé, adoro o cheirinho do frango girando na porta da padaria.               
Pobres bichinhos, escravos, nascidos e criados confinados, detento sem crime, condenados pelo meu paladar, pelo meu bel prazer humano, humanizo a dor, acho normal, justifico –me  “é para comer”, mas é para comer que desmatam as florestas  da Amazônia para criar gado, é para  comer que desmatam o pantanal, cada dia mais assoreado por conta das fazendas , é para comer que mudam a legislação para favorecer pecuaristas, e é para lucrar que morre tanta gente com os efeitos nocivos da carne vermelha e ainda assim é fomentado o seu uso, é para comer que transformam campos e florestas em plantações de soja para gado de gringo comer, enquanto um sem número de humanos morrem de fome, é para comer que as vacas tem suas tetas cheias de pústulas sangrando de tanto serem sugadas, mas nas embalagens de laticínios sempre tem uma vaca feliz, alegre, sorridente  e saudável, nos doando leite cheia de satisfação,   e os pobres touros tem seus testículos  esmagados, mutilados para engordarem rápido,  e os porquinhos, tão inteligentes como os cães,  sentem e percebem seu triste destino, que azar ser um torresminho ambulante, bacon, pernil, costelinha, pururuca, bisteca, que delícia, azar o deles não terem nascido cachorro, de preferência cachorro de madame, melhor tratado que muita gente por aí, sorte dos cães não terem a carne saborosa(embora os chineses apreciem)                
As vezes me pergunto:  se uma  outra espécie   vier do espaço, se elas forem mais fortes e ou mais engenhosas que nós e por isso acharem-se superiores a nós  “humanos” e se colocarem   no topo da cadeia alimentar, seria justo ou lícito nos criar  como seus escravos, forçando-nos a reprodução? Seria legítimo  nos castrar e nos  confinar até o dia em  que resolverem nos matar das maneiras mais cruéis  para depois nos destrinchar, esquartejar  e nos colocar exposto em balcões de açougue?  Seria hediondo girar nossos pedaços em espetos e festejar com nossa carne e dar nossos ossos para os animais “inferiores”?               
Ainda bem que não tenho do que me preocupar, somos o topo da cadeia alimentar.

D.106.Destino - Elvira


Às vezes, quando volta da escola, pega o ônibus mais barato. Só quando está com paciência. Criança, a barriga gritando por comida. O veículo vai por lugares não imaginados. Alguns muito bonitos: fazendas, gado, aves pernaltas e brancas junto a eles, casas grandes entrevistas no amontoado de árvores. Mas há casinhas pobres, sofás rasgados nas varandas. Para quem? Lá dormem gatos e cachorros da casa e até vira-latas da rua. Uma sempre lhe atrai o olhar, quando passa. Desde a primeira vez, quando nunca vira. Pois mesmo não tendo visto, sabia tudo. Sabia até o que havia por dentro. Um quadro de um casal, muito antigo, coisa do final do século XIX, preto e branco, na parede, a mulher abotoada até o pescoço, o homem, um bigode farto. Outro sofá bem grande. Verde. Um móvel na horizontal, dos que não se encontram mais. Uma cristaleira no canto, só achada, hoje, em antiquário. Um quarto só, com a porta dando para a sala. Uma cortina estampada com motivos também verdes separa os cômodos da cozinha pequena, atrás, dando para um avarandado com telheiro de zinco. Ao fundo, uma hortinha. Um sentimento confuso enche o peito. É atraído, mas tem medo. Uma mulher mexe nas hortaliças e ele lembra seu nome: Elvira. É fornida de carne e morena, os cabelos presos para cima, relaxadamente. Mas fica linda. Quando abaixa, os seios redondos brotam do decote, vêm saudar as couves, os tomates, as salsinhas. Parece que vai sentir saudade, porém um sentimento de horror e ódio, mais forte, atropela o outro. Quer tirar a casa e Elvira da cabeça. Ela, porém, está beijando um rapazote, um buço despontando, atrás de uma mangueira enorme, no fundo de um terreno baldio. Aos poucos se deitam no chão. Ela levanta a saia comprida do vestido vagabundo, para que o meninote se decida rápido. E tão enlouquecidos se tornam que não veem um vulto chegar, facão de cortar mato na mão. Com a mão no peito, ele abre os olhos e vira o rosto para a janela. Quer se concentrar na paisagem, que, recentemente, começou a conhecer. O coração, entretanto, ainda sacode violentamente. Quando o ônibus para, muito tempo depois, ainda não está sereno. Mochila às costas, cadernos e livros dentro, salta meio sonâmbulo ainda, medo de novamente encontrar

D.105.Do outro lado - Eliane F.C.Lima


Morreu. E foi direto para o inferno. Porque tinha feito em vida tudo que prejudicava o próximo. Sem nenhuma preocupação sobre isso. Seu único objetivo era atender a seus interesses pessoais, fossem eles desonestos ou não, ilegais ou não, desumanos ou não. Armou muitas trapaças, sempre com aquela finalidade. Morreu. E viu-se logo diante do diabo ou um seu representante, não sabia bem. Viu que o tal correspondia, na aparência, exatamente, ao que todos imaginavam. Embora ainda um pouco confuso pela mudança de estado, pensou, velhaco ainda, que aquilo podia ser para impressionar o recém-chegado. Mas não pôde evitar que o medo se apossasse de si. Seu interlocutor, com uma voz meio rouca, mandou que ele contasse tudo que tinha feito em vida. E que pensasse bem, que não mentisse, pois, se algum mal tinha feito antes, no mundo dos vivos, a mentira, agora, para ele, diabo, seria uma ofensa grave. E sorriu, mostrando um calhamaço de papéis, acrescentando que sua vida estava toda ali, nos mínimos detalhes. O homem já ia argumentar que, se o outro sabia de tudo, não fazia sentido, então pedir a ele para contar, mas calou-se a tempo, vendo que não estava em condições de fazer desaforos. E contou. Foi desfiando minuciosamente todas os seus ardis para garantir seu passado bem-estar. A princípio com um fio de voz, a garganta entalada, respirando com dificuldade, todo o corpo tremendo, o coração quase parando. Não de remorso, só de medo. Reparou, porém, que seu interlocutor, que, no começo estava escarrapachado na enorme cadeira, foi levantando o corpo, chegando-se para a frente, para a ponta do assento, como se não quisesse perder um lance que fosse do relato. E seus olhos brilhavam vivamente, os olhos grudados na boca do falante, adivinhando-lhe as palavras futuras, embebendo-se de suas feições. Todo ele era a própria encarnação do gozo. Para testar – uma das estratégias do ex-vivo, em vida, era conhecer o terreno onde pisava –, ele contou certos pormenores mesquinhos que poderia ter evitado. O outro sorriu, contente, deliciado. A palavra que veio à mente do que narrava foi “cúmplice”. No fim, ainda sorrindo, o demo deu um tapinha camarada na perna do homem. Esse, entendendo que aquele era o lugar perfeito para o perdão de seus pecados, ouviu do capeta, companheiro, que andava precisado de um auxiliar, levando-o, fraternal, às suas novas funções.
Fonte: http://conto-gotas.blogspot.com

D.104.Dia de sorte - Eliane F.C.Lima


Não tinha emprego nem casa. Chegava perto de uma quitandinha, dono colocando mercadoria na porta. Perguntava se podia ajudar em troca de umas frutas, no fim do dia. Levava muito “não”, mas, às vezes dava certo. E ia levando.
Um dia, família colocava montes de sacos de lixo na porta. Robustos os sacos e a mãe. Suor pingando da cara de todos.
Pediu para ajudar, no final, davam uns trocados para comprar comida. Meio na dúvida, a dona dos entulhos velhos aceitou.
Trabalhou como nunca, até móveis ajudou a desmontar.
Na hora do almoço, sem mais nem menos, a senhora trouxe um prato enorme: macarrão, feijão, legumes, até bife tinha.
À tarde, agradecido, ainda recebeu uma nota de dez.
Antes de ir pela rua, viu um pipoqueiro. Há quanto tempo não comia pipoca, só pelo nariz. Dinheiro era para comida, mas uma vezinha só...
Saco de bobagem na mão, olho nos sacos de lixo na rua. Beiral de loja era para sentar e pensar: será que tinha alguma coisa para aproveitar ali? Quem sabe vendia?
Lambendo ainda os beiços, foi abrindo os sacos, muito cuidadoso, não fosse espalhar nada...
Num deles, um envelope pardo, enrolado, bojudo, quase explodindo. Aberto, surpresa pura. Muitas, muitas notas de cem, em pequenos maços, elástico diligente.
Sacão de plástico preto fechado, envelope pardo debaixo do braço, respirou fundo. Podia retribuir a gentileza do prato de comida ofertado.
Passos firmes para a casa da família, agora homem de novo. Tocou a campainha: dignidade do coração até a ponta do dedo.
Fonte: http://conto-gotas.blogspot.com

D.103.Delicadeza e sensibilidade - Eliane F.C.Lima


Sempre fui uma pessoa muito sensível, desde menino. Ainda novinho, ia de árvore em árvore do enorme quintal de minha casa. Subia e, se achava um ninho com os ovinhos lá dentro, sem a mãe, acreditava que eles estavam abandonados. Pegava e levava para casa, deixando em uma caixinha que eu tinha ali. Sempre me frustrava. Não nascia nada e eles ainda estragavam. Quando via aquele monte de formigas no chão de terra, andando para lá e para cá, atarantadas, cria eu, morrendo de pena por ver a aflição delas, que estavam sofrendo muito e, desesperado, para acabar com aquilo tudo, arrastava o pé em todas elas. Foi assim com a história do gatinho. Sujinho e faminto, levei, escondido, para casa. O bichinho miava muito. Na minha inocência de criança, imaginei que ele tinha esquecido como é que parava de miar. Amarrei a boca dele com um pano. E para que ele não tivesse mais frio, guardei em uma caixa de papelão dentro do armário. Passados muitos dias, como tivesse me esquecido, comecei a sentir um cheiro esquisito. O pobrezinho tinha morrido, imagine a minha aflição. Para que minha mãe não descobrisse nada, joguei no lixo bem longe de casa e derramei meu vidro de perfume dentro do armário. Disse que tinha sido um acidente. Hoje, mesmo adulto, continuo com esse mesmo tipo de sentimento, imaginem. Continuo a salvar os bichinhos que encontro pela rua.
Fonte: http://conto-gotas.blogspot.com

D.102.Dor concreta - Eliane F.C.Lima


Gostaria de ser uma estátua de praça. Ver passar as pessoas apressadas. Ou ver os velhos ou os novos cansados, em busca de sombra, aquela moça lambendo um sorvete ou comento pipoca, sentados no banco de pedra fria, em volta de mim. Ou uma estátua daqueles casarões antigos, num grande jardim, limpo e organizado, mas onde nunca se vê ninguém. Com certeza, haveria outras como eu e poderíamos nos sorrir, se estivéssemos sorrindo, ou nos olhar languidamente, se estivéssemos nos olhando. Mas minha cabeça está voltada para baixo e minha mão esquerda pousada sobre o peito e a direita, levantada numa bênção. E meu rosto de anjo, concentrado e triste. Estou sentado à beira de um jazigo de uma família rica e tradicional. Mas isso não é bom. Há silêncio o tempo todo em volta de mim, a não ser quando toca aquele sino plangente e os cortejos vêm e passam por mim. Mas poucas vezes param. Porém, passando ou parando, sempre há lágrimas e desconsolo. Algumas pessoas têm de vir amparadas de tanta dor e desespero. E esses sentimentos me penetram e eu nem posso chorar. Petrificada nesse meu rosto bondoso, mas neutro, a solicitude de minha dor não pode ser notada e as pessoas passam por mim, recolhidas em seus sentimentos extremos e me devolvem a minha suposta indiferença.
Fonte: http://conto-gotas.blogspot.com

D.101.De Todas as Eras - Eliane F.C.Lima


Vive quieta na teia, casa própria. Não perde tempo com mitologia, Minerva, seu castigo implacável, inveja divina da antiga beleza de mulher. Afinal, que beleza maior do que aquelas pernas finíssimas, tantas, aquele corpo peludo e negro? Balança, em sua seda trançada, mais resistente que cabo de aço, feliz de sua aranhice convicta. Espécie de aracnídeo, nada sabe da Grécia, nova ou antiga, atravessado o Rio Letes do esquecimento. Só o tecer ainda o mesmo, trânsito entre os tempos e as formas. Perdida sua formosura humana – pudesse falar, discutiria a parcialidade do ato narrativo –, a paciência é sua maior virtude. Fica ali, dormindo, abraçada aos fios, casa-cama-caçada. Ao menor balanço, abre um olho: vento ou presa? No segundo caso, não se afoba. Deixa-se ficar algum tempo, cansando o almoço, não vá ter trabalho. Depois, toda preguiça, sem pressa alguma, caminha para o banquete. Nunca perde uma refeição: inseto que passe não é mais inseto. Como agora.
Fonte: http://conto-gotas.blogspot.com

D.100.Delírios - Guimarães Rosa


No parque morno, um perfumista oculto
ordenha heliotrópios…
Deixa aberta a janela…
Minhas mãos sabem de cor o teu corpo,
e a alcova é morna…
Apaguemos a luz…
Não sentes na tua boca
um gosto de papoulas?…
Passa o lenço de seda de tuas mãos
sobre minha fronte,
e não me digas nada:
a febre está, baixinho, ao meu ouvido,
falando de ti….

D.099.Dá-me a tua mão - Clarice Lispector


Dá-me a tua mão:
Vou agora te contar
como entrei no inexpressivo
que sempre foi a minha busca cega e secreta.
De como entrei
naquilo que existe entre o número um e o número dois,
de como vi a linha de mistério e fogo,
e que é linha sub-reptícia.
Entre duas notas de música existe uma nota,
entre dois fatos existe um fato,
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam
existe um intervalo de espaço,
existe um sentir que é entre o sentir
- nos interstícios da matéria primordial
está a linha de mistério e fogo
que é a respiração do mundo,
e a respiração contínua do mundo
é aquilo que ouvimos
e chamamos de silêncio.

D.098.Desejo - Gonçalves Dias


Ah! que eu não morra sem provar, ao menos
Sequer por um instante, nesta vida
Amor igual ao meu!
Dá, Senhor Deus, que eu sobre a terra encontre
Um anjo, uma mulher, uma obra tua,
Que sinta o meu sentir;
Uma alma que me entenda, irmã da minha,
Que escute o meu silêncio, que me siga
Dos ares na amplidão!
Que em laço estreito unidas, juntas, presas,
Deixando a terra e o lodo, aos céus remontem
Num êxtase de amor!