quarta-feira, 8 de novembro de 2023

D.105.Do outro lado - Eliane F.C.Lima


Morreu. E foi direto para o inferno. Porque tinha feito em vida tudo que prejudicava o próximo. Sem nenhuma preocupação sobre isso. Seu único objetivo era atender a seus interesses pessoais, fossem eles desonestos ou não, ilegais ou não, desumanos ou não. Armou muitas trapaças, sempre com aquela finalidade. Morreu. E viu-se logo diante do diabo ou um seu representante, não sabia bem. Viu que o tal correspondia, na aparência, exatamente, ao que todos imaginavam. Embora ainda um pouco confuso pela mudança de estado, pensou, velhaco ainda, que aquilo podia ser para impressionar o recém-chegado. Mas não pôde evitar que o medo se apossasse de si. Seu interlocutor, com uma voz meio rouca, mandou que ele contasse tudo que tinha feito em vida. E que pensasse bem, que não mentisse, pois, se algum mal tinha feito antes, no mundo dos vivos, a mentira, agora, para ele, diabo, seria uma ofensa grave. E sorriu, mostrando um calhamaço de papéis, acrescentando que sua vida estava toda ali, nos mínimos detalhes. O homem já ia argumentar que, se o outro sabia de tudo, não fazia sentido, então pedir a ele para contar, mas calou-se a tempo, vendo que não estava em condições de fazer desaforos. E contou. Foi desfiando minuciosamente todas os seus ardis para garantir seu passado bem-estar. A princípio com um fio de voz, a garganta entalada, respirando com dificuldade, todo o corpo tremendo, o coração quase parando. Não de remorso, só de medo. Reparou, porém, que seu interlocutor, que, no começo estava escarrapachado na enorme cadeira, foi levantando o corpo, chegando-se para a frente, para a ponta do assento, como se não quisesse perder um lance que fosse do relato. E seus olhos brilhavam vivamente, os olhos grudados na boca do falante, adivinhando-lhe as palavras futuras, embebendo-se de suas feições. Todo ele era a própria encarnação do gozo. Para testar – uma das estratégias do ex-vivo, em vida, era conhecer o terreno onde pisava –, ele contou certos pormenores mesquinhos que poderia ter evitado. O outro sorriu, contente, deliciado. A palavra que veio à mente do que narrava foi “cúmplice”. No fim, ainda sorrindo, o demo deu um tapinha camarada na perna do homem. Esse, entendendo que aquele era o lugar perfeito para o perdão de seus pecados, ouviu do capeta, companheiro, que andava precisado de um auxiliar, levando-o, fraternal, às suas novas funções.
Fonte: http://conto-gotas.blogspot.com

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