quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Crônica.P.003.Pai - Samelly Xavier

Campina Grande, 04 de abril de 2002. Pai: Hoje tenho uma difícil missão, transformar este aglomerado de sentimentos em uma carta para o senhor. Ela deve falar de saudade, sabe, pai ? Lembrei que a língua portuguesa tem em seu contexto uma única e imperativa palavra para falar desse sentimento: SAUDADE. Imagine se não fôssemos brasileiros? Como expressaria este meu sentimento? Pensando nisso, procurei no dicionário o significado aparente: Saudade s.f. (Do lat. solitas, solitatis, solidão, soledade) - 1. Recordação suave e melancólica de pessoa ausente ou coisa distante que se deseja voltar a ver ou possuir. - 2. Nostalgia. - 3. Pesar, mais pela ausência de alguém que nos é querido. Das três, gostei mais da última, porém não concordei inteiramente com nenhuma. O senhor acha possível sentir saudade de algo que nunca se teve? Pois é isso que acontece comigo... Sinto saudade das conversas que não tivemos, das permissões que nunca pedi, dos olhares que nunca trocamos,! dos filmes a que nunca assistimos, das atividades de casa que o senhor poderia ter me ensinado, de atrapalhar seu sono à noite por estar com medo de um pesadelo, do seu colo que poderia ter me acalentado enquanto eu chorava, do seu abraço que poderia ter me envolvido quando eu estava feliz. Sinto saudade das trocas de sonhos, até dos possíveis "sermões" eu sinto saudade, acredita? Sabemos que não houve culpado na nossa separação, certo? Uma doença não é motivo de alegria, também não deve ser alicerce para lágrimas e dores. Os médicos disseram que a doença se manifesta com grandes emoções, e foi no casamento com minha mãe que ela surgiu. Passaram-se 14 anos até que quase "milagrosamente" eu nasci. Disseram que o senhor teria uma probabilidade de melhorar ou de piorar, mainha me falou que durante um ano tudo ficou bem, porém depois o senhor ficou mais agressivo e teve que ir morar no hospital. Fui crescendo e ouvindo falar do senhor de duas formas: por minha mãe que sempre me mostrou o grande caráter que tem, pelas pessoas que parecem não entender minha falta de traumas. Uma coisa que me deixava com raiva eram os comentários dos colegas escolares, quando eu passava e ouvia "Essa menina é filha de um doido". Eu tinha vontade de responder: "Meu pai não é doido, é esquizofrênico, uma doença genética. Louco é um cara saudável que não se merece, se maltrata, se humilha". Na verdade nunca respondi nada. (Não ria de mim, viu?). Eu não sabia pronunciar direito a palavra esquizofrênico (tinha uns 7 anos), e para não me atrapalhar saía andando, fingindo que não ouvia. Sabe outra coisa muito engraçada? O modo como as pessoas falavam do senhor. As frases sempre começavam com "apesar de tudo, ele era ...", apesar de tudo o quê, meu Deus?. Diziam para eu não ter traumas, ao mesmo tempo que informavam ótimos psicólogos infantis para mainha. Eu pensava: "Mente de adulto não entende realmente nada de mente de criança"... Sabe por que eu era tranqüila, pai? Porque tive uma mãe maravilhosa que me falava do senhor apenas como era. Graças a ela sempre encarei a vida de frente. Não tinha um pai alcoólatra, drogado, ladrão ou que traíra minha mãe. Apenas tinha um pai doente, preso em seu inconsciente, alguém que tinha muitas virtudes. Por isso fico feliz quando falam que nos parecemos. Nos vimos poucas vezes, não foi? Para ser exata, quatro. Espero que o senhor entenda. Eu não me sentia bem naquele hospital (muito sofrimento...), e em outro lugar não poderíamos nos ver. Toda noite eu orava pelo senhor, algumas vezes pensando nessa saudade. Saudade tranqüila que não me arranca turbilhões de lágrimas ou arrependimento. O que sinto está liberto de imposições sociais. Transcende a matéria, acho que é saudade espiritual. O poeta Caetano Veloso disse que "de perto ninguém é normal". Compreendo quea doença cerebral o impedia de lidar com algumas coisas, porém seu espírito é esvoaçante. Hoje acredito que está muito melhor do que quando carregava um corpo. Poderão dizer que a louca agora sou eu... Escrever para alguém que já saiu deste mundo, mesmo assim sei que está lendo tudo que eu escrevo. Ao começar esta carta tive dois objetivos: O primeiro era homenageá-lo. O segundo diz respeito à frase que li no cartaz deste concurso: "Já imaginou o mundo todo lendo sua redação?". Pensei: "Isso é bom! Poderei finalmente expressar o que sinto, e o que realmente sinto é que nunca me senti a criança sem pai, traumatizada, problemática". Tento passar com isso que devemos sempre sorrir para a vida, já que ela não nos dá mais do que precisamos, nem menos do que merecemos. Obrigado, pai! Pelas lições de vida que me deu através do que minha mãe conta do senhor. É um grande exemplo, e, por mais que eu escreva, uma vida não cabe em palavras. Enfim, acabo de deduzir meu conceito de saudade, bem diferente do que o dicionário trouxe: Saudade (s. s. g. - substantivo sem gênero.) - 1. Ansiedade calma pelo dia do reencontro que com certeza acontecerá. Querido pai, até lá! !!! De sua continuação terrestre: SAMELLY XAVIER

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