terça-feira, 25 de agosto de 2020
A.145.Até - Alexandre Baros de Medeiros
Até dia livre de toque e cor vivos
(e som e tom nos ouvidos)
Até que flores cresçam
(e cantem a saudade do não-ver)
Até que dor não tome conta
Até que Sol sopre os nossos segredos
Até que vento brilhe em nosso silêncio
Até que as puras loucuras tuas sejam nossas
Até que nossos olhos se vejam melodicamente
(como nossa música)
Até que meu toque seja teu alívio
Até que teu cheiro seja meu sabor
Até que tua história seja minha estória
Até que vejamos o Sol-amigo aquecer nossa pele na manhã
(no entardecer)
Até que bebamos dágua do mesmo rio doce
Até que sopremos as mesmas velas
Até que brindemos as mesmas graças
Até que sonhemos os sonhos livres dos que andam com pé na terra
Até que nossas asas sejam asas do mesmo ultraleve
(no mesmo céu de estrelas)
Até!
A.147.A Catedral - Alphonsus de Guimarães
Entre brumas ao longe surge a aurora,
O hialino orvalho aos poucos se evapora,
Agoniza o arrebol.
A catedral eburnea do meu sonho
Aparece na paz do ceu risonho
Toda branca de sol.
E o sino canta em lugebres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"
O astro glorioso segue a eterna estrada.
Uma aurea seta lhe cintila em cada
Refulgente raio de luz.
A catedral eburnea do meu sonho,
Onde os meus olhos tao cansados ponho,
Recebe a bencao de Jesus.
E o sino clama em lugebres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"
Por entre lirios e lilases desce
A tarde esquiva: amargurada prece
Poe-se a luz a rezar.
A catedral eburnea do meu sonho
Aparece na paz do ceu tristonho
Toda branca de luar.
E o sino chora em lugebres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"
O ceu e todo trevas: o vento uiva.
Do relampago a cabeleira ruiva
Vem acoitar o rosto meu.
A catedral eburnea do meu sonho
Afunda-se no caos do ceu medonho
Como um astro que ja morreu.
E o sino chora em lugebres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"
A.146.Albertina - Alexandre O'Neill
O poeta está só, completamente só.
Do nariz vai tirando alguns minutos
De abstração, alguns minutos
Do nariz para o chão
Ou colados sob o tampo da mesa
Onde o poeta é todo cotovelos
E espera um minuto de beleza.
Mas o poeta é aos novelos;
Mas o poeta já não tem a certeza
De segurar a musa, aquela
que tantas vezes, arrastou pelos cabelos...
A mosca Albertina, que ele domesticava,
Vem agora ao papel, como um inseto-insulto,
Mas fingindo que o poeta a esperava ...
Quase mulher e muito mosca,
Albertina quer o poeta para si,
Quer sem versos o poeta.
Por isso fica, mosca-mulher, por ali...
- Albertina!, deixa-me em paz, consente
Que eu falhe neste papel tão branco e insolente
Onde belo e ausente um verso eu sei que está!
- Albertina! eu quero um verso que não há!...
Conjugal, provocante, moreno e azulado,
O inseto levanta, revoluteia, desce
E, em lugar do verso que não aparece,
No papel se demora como um insulto alado.
E o poeta sai de chôfre, por uns tempos desalmado ...
A.144.A central das frases - Alexandre O'Neill
... já te disse que são os do primeiro...
... e afinal não pudémos telefonar...
... ai nem queira saber o engenheiro...
... se me dão licença eu vou contar...
... penses nisso era só o que faltava...
... não as outras duas é que são as tais...
... mas o senhor presidente autorizava...
... na avenida centenas de pardais...
... de facto muito inteligente...
... ó filha por aqui fazes favor...
... que veio ontem para falar com a gente...
... é mesmo lá ao fim do corredor...
A.143.Aspiração - Alberto de Oliveira
Ser palmeira! existir num píncaro azulado,
Vendo as nuvens mais perto e as estrelas em bando;
Dar ao sopro do mar o seio perfumado,
Ora os leques abrindo, ora os leques fechando;
Só de meu cimo, só de meu trono, os rumores
Do dia ouvir, nascendo o primeiro arrebol,
E no azul dialogar com o espírito das flores,
Que invisível ascende e vai falar ao sol;
Sentir romper do vale e a meus pés, rumorosa,
Dilatar-se e cantar a alma sonora e quente
Das árvores, que em flor abre a manhã cheirosa,
Dos rios, onde luz todo o esplendor do Oriente;
E juntando a essa voz o glorioso murmúrio
De minha fronde e abrindo ao largo espaço os véus,
Ir com ela através do horizonte purpúreo
E penetrar nos céus;
Ser palmeira, depois de homem ter sido! est’alma
Que vibra em mim, sentir que novamente vibra,
E eu a espalmo a tremer nas folhas, palma a palma,
E a distendo, a subir num caule, fibra a fibra;
E à noite, enquanto o luar sobre os meus leques treme,
e estranho sentimento, ou pena ou mágoa ou dó,
Tudo tem e, na sombra, ora ou soluça ou geme,
E, como um pavilhão, velo lá em cima eu só
Que bom dizer então bem alto ao firmamento
O que outrora jamais - homem - dizer não pude,
Da menor sensação ao máximo tormento
Quanto passa através minha existência rude!
E, esfolhando-me ao vento, indômita e selvagem,
Quando aos arrancos vem bufando o temporal,
- Poeta - bramir então à noturna bafagem
Meu canto triunfal!
E isto que aqui não digo então dizer: - que te amo,
Mãe natureza! mas de modo tal que o entendas,
Como entendes a voz do pássaro no ramo
E o eco que têm no oceano as borrascas tremedas;
E pedir que, ou no sol, a cuja luz referves,
Ou no verme do chão ou na flor que sorri,
Mais tarde, em qualquer tempo, a minh’alma conserves,
Para que eternamente eu me lembre de ti!
A.142.A janela e o sol - Alberto de Oliveira
"Deixa-me entrar, - dizia o sol - suspende
A cortina, soabre-te! Preciso
O íris trêmulo ver que o sonho acende
Em seu sereno virginal sorriso.
Dá-me uma fresta só do paraíso
Vedado, se o ser nele inteiro ofende...
E eu, como o eunuco, estúpido, indeciso,
Ver-lhe-ei o rosto que na sombra esplende."
E, fechando mais, zelosa e firme,
Respondia a janela: "Tem-te, ousado!
Não te deixo passar! Eu, néscia, abri-me!
E esta que dorme, sol, que não diria
Ao ver-te o olhar por trás do cortinado,
E ao ver-se a um tempo desnudada e fria?!"
A.141.A casa da rua Abílio - Alberto de Oliveira
A casa que foi minha, hoje é casa de Deus.
Traz no topo uma cruz. Ali vivi com os meus,
Ali nasceu meu filho; ali, só, na orfandade
Fiquei de um grande amor. Às vezes a cidade
Deixo e vou vê-la em meio aos altos muros seus.
Sai de lá uma prece, elevando-se aos céus;
São as freiras rezando. Entre os ferros da grade,
Espreitando o interior, olha a minha saudade.
Um sussurro também, como esse, em sons dispersos,
Ouvia não há muito a casa. Eram meus versos.
De alguns talvez ainda os ecos falaram,
E em seu surto, a buscar o eternamente belo,
Misturados à voz das monjas do Carmelo,
Subirão até Deus nas asas da oração.
A.139.À Minha Esposa - Afonso Celso
Sim! Tornou-se-me leve a cruz que eu vinha
A carregar por íngreme ladeira,
Graças ao teu auxílio, ó companheira,
Cireneu de meu fato - esposa minha.
Sobre a data gentil de nosso enlace
Já dos anos avulta a cinza fria;
Mas, desde então, não se passou um dia,
Sem que eu aquele dia abençoasse.
Me ser sem ti era incompleto. Agora
Deparas-lhe ao viver força e motivo:
- És o porto de paz definitivo,
Onde o batel de meu desejo - ancora.
Nos sorrisos e lágrimas de lacta
Tão gêmeas sempre as almas nos têm sido,
Que não há numa o mínimo vagido
Que noutra logo após não repercuta.
Em derredor do nosso afeto puro,
Que o lar nos enche de calor e brilhos,
Gira a constelação de nossos filhos,
Iluminando os limbos do futuro.
Sim! sou feliz! feliz se num degredo,
Onde o amanhã só de incertezas traja,
Dizer-se possa que venturas haja...
Sim... tão feliz que às vezes tenho medo.
Como a dos corações, em nosso ninho,
Conformidade estreita e harmoniosa,
Nem nas pétalas iguais da mesma rosa,
Nem nas asas irmãs de um passarinho.
Anjo meu tutelar, mimo que abriga
Reta razão, espírito valente,
Sócia fiel, segura confidente,
Ó minha santa, ó minha doce amiga.
Meu talismã, meu dom precioso e raro,
Minha estrela polar, minha riqueza,
Meu sonho, minha flor, minha princesa,
Minha fé, meu orgulho, meu amparo,
Quem me dera que vínculo tão forte
As vidas nos unisse a vida inteira,
Uma noutra a embeber de tal maneira
Que as desatar não conseguisse a morte!
As nossas almas n'amplidão etérea,
Do pesadelo terrenal despertas,
Hão de oscular-se bem melhor, libertas
Das subalternas formas da matéria.
E, na vida de além, que continua
Eternidade afora, sem limite,
Quero-as tão juntas que até Deus hesite
Em dizer qual a minha, qual a tua.
A.138.A Indiferença - Afonso Celso
Ficar a tudo indiferente,
Pensar que, nunca inteligíveis,
Incertas são, e discutíveis,
Todas as coisas, igualmente;
A ser nenhum sentir apego;
Nada ter, nada esperar,
Sem que este humor, este sossego,
Sucesso algum possa alterar;
Nem na razão, nem nos sentidos
Ter fé jamais, mas por estudo
Em duvidar, sempre, de tudo:
- Falas, sorrisos ou gemidos;
Não ter o mínimo conceito
Seja do bem, seja do mal;
Fazer, com ânimo perfeito,
Renúncia eterna e universal;
Nem ver no túmulo um asilo,
Mas bem iguais Morte e Existência
Considerar - sem preferência,
Pouco importando, isto ou aquilo
- Eis como expõe o seu programa
Um grande espírito ... Mas quem,
Representando o humano drama,
Conseguirá tanto desdém?
Indiferença, o nosso nível
Teu reino olímpico ultrapassa,
Divino dom, suprema graça,
Chamo-te, em vão ... És impossível!
Esse que sabe com tal plano
Levar na terra os dias seus,
Melhor que o déspota romano,
Deve sentir tornar-se Deus.
A.140.A alma dos vinte anos - Alberto de Oliveira
A alma dos meus vinte anos noutro dia
Senti volver-me ao peito, e pondo fora
A outra, a enferma, que lá dentro mora,
Ria em meus lábios, em meus olhos ria.
Achava-me ao teu lado então, Luzia,
E da idade que tens na mesma aurora;
A tudo o que já fui, tornava agora,
Tudo o que ora não sou, me renascia.
Ressenti da paixão primeira e ardente
A febre, ressurgiu-me o amor antigo
Com os seus desvarios e com os seus enganos...
Mas ah! quando te foste, novamente
A alma de hoje tornou a ser comigo,
E foi contigo a alma dos meus vinte anos.
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