terça-feira, 14 de setembro de 2021

M.089.Manuscritos de Felipa XIV - Adélia Prado


É como achar na calçada objeto de valor o descobrir sozinho certos porquês. Não se pode mesmo chamar dedo anelar ao dedo de pôr anéis, é anular que se diz, devido à origem da palavra, pois vem de ânus, o anel por excelência, meu caro Uóxinton. Isto me distancia imensamente da Margarida, que jamais o descobriria sozinha. Não por falta de inteligência, mas porque a ocupa com caminhões de areia, fazendo de sua prosa uma grande praia sem mar, sem o encanto e os perigos do deserto: "... está lá, agora, a maior confusão, só missa de sétimo dia ele ganhou quatro, em igrejas bem longe uma da outra, porque as cunhadas não queriam se encontrar. Gente que foi na matriz não pôde abraçar a viúva, nem os filhos, nem ninguém. É o morto mais sem missa que eu já vi. Tudo por causa do lote. A lei não deixa pôr nele a placa de Vende-se. O inquilino que tem oficina nos fundos não paga nem assina acordo". Teodoro quis interferir, colaborar com informações legais, Margarida não deixou, foi até o amargo fim da história cheia de lotes, apartamentos, contas no banco, ódios ávaramente degustados entre missas e novenas. A um pequeno fôlego, já no fim, Teodoro que só prestara atenção na parte jurídica do cipoal, disse, com didática precisão, das medidas necessárias para se colocar a placa no lote. Foi quando Margarida completou: mas agora a placa já está lá. Por que você não falou no começo da história que não podia mas já pode? Olha aqui, Margarida, se você vai me contar que alguém morreu, por favor, não comece pela doença ou perguntando se me lembro dele, essas coisas. Diga logo, o fulano morreu, depois, SE FOR O CASO, dê os detalhes. Ela não ficou com raiva, porque Teodoro falava brincando e ela tinha feito um café muito bom, era domingo e a lengalenga, até que, de certa forma, bem, estávamos ali pra visitá-la, gostamos dela. Mas se Teodoro não a interrompesse, era capaz de eu, muito despistadamente, ficar lendo a Revista da TV, dando palpites só pra marcar presença, expediente de pouca valia, no fundo estava sofrendo por causa do Hermínio que morreu brigado com as irmãs, dos filhos dele que tomaram o partido da mãe contra as tias e, principalmente, principalmente porque não estavam juntos na missa. Isto me desconcertou, morte que não abranda os corações, a missa como uma placa de Vende-se, um cartão de visitas, valendo menos que um telegrama de pêsames. Tudo me serviu para corajosa decisão, corajosa porque zelo muito por minha imagem diante de Deus e da humanidade em geral, estendendo meu zelo aos que amo, vigiando se um irmão se lembrou do aniversário do outro, dando mil disfarçados jeitinhos para que se lembre por amor de deus e telefone, ô canseira. Já posso fazer isto agora, é um prêmio, pois o filho se esqueceu do meu aniversário e fiquei normalíssima. Mais: fiquei feliz! Foi uma coisa nova. Ele não se lembrou e o amor resistiu vigoroso, vitaminado, desembaraçado, caminhando a pé. Mais amei o esquecido. Por isso tudo não vou telefonar à Zuleide pela morte do pai. Não o fiz na hora esperada, fazê-lo agora é pagar tributo à lei que não respeito, é aceitar que, enquanto falsamente me agradece, me chame sem coração, grosseira, índia pegada a laço. Nada disso eu sou. Quando a sabedoria da vida providenciar, perguntarei de todo o coração: Zuleide, você já se acostumou sem o seu pai? A filha dela, a neta do morto, vai me criticar, mas ela própria, a quem pude cumprimentar, não queria falar de óbitos, queria cigarros, recomendar a melhor clínica pra se ter um bebê, enfim, falava sinceramente do que lhe ia no coração, exatamente como desejo fazer. "Que os mortos enterrem seus mortos" não é para os parentes do Hermínio, que acreditam em lotes e etiquetas como em pessoas vivas. É para mim que acredito nos mortos e assim o compreendo: ô Felipa idiota, vá cuidar da vida.

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