sexta-feira, 19 de novembro de 2021
S.117.Santa - Ana Paula Pedro
Afundar sobre a quente névoa de tuas ruas
Soprar como vento em constante persistência das horas
Lambuzar-me em tuas densas águas agridoces
Escalar as falésias de tua incoerente geografia
Renascer como oásis de teus secretos redutos
Esquecer de vez o deserto que há em mim
Cobrir a memória com o tênue lençol de algodão
S.116.Saber - Angela Bretas
Saber que ao amanhecer
estarás a meu lado
me faz feliz...
Saber que durante o dia
tem alguém a pensar em mim,
me conforta...
Saber que ao entardecer
estará chegando a hora de ficar junto a você
faz com que meu coração acelere...
Saber que a noite seu corpo
estará unido ao meu,
me faz um bem enorme...
... E é o que me dá força para a vida que temos pela frente...
P.125.Pulchra Ut Luna - Alphonsus de Guimarães
Pulchra Ut Luna
II
Celeste... É assim, divina, que te chamas.
Belo nome tu tens, Dona Celeste...
Que outro terias entre humanas damas,
Tu que embora na terra do céu vieste?
Celeste... E como tu és do céu não amas:
Forma imortal que o espírito reveste
De luz, não temes sol, não temes chamas,
Porque és sol, porque és luar, sendo celeste.
Incoercível como a melancolia,
Andas em tudo: o sol no poente vasto
Pede-te a mágoa do findar do dia.
E a lua, em meio à noite constelada,
Pede-te o luar indefinido e casto
Da tua palidez de hóstia sagrada.
P.124.Primeira chuva no deserto - Ana Paula Pedro
Fecho os olhos e imagino a primeira chuva no deserto. Vejo-te sentado no estreito balcão, mudo, olhos vidrados no trajeto de cada gota. Fico ao teu lado observando esta imprevista chuva e após alguns instantes atiro-me nos úmidos braços celestiais; deixo a chuva lavar minha alma e meu corpo, entrego-me às surpresas do deserto, refaço-me inteira. Quando volto meu olhar para ti, vejo que, assim como o deserto, tu também estás a chover. Lágrimas que parecem não ter fim. Não me apiedo de ti, o tempo por vezes parece demasiadamente curto, a eternidade se encerra em um segundo, a vida por vezes é urgente.
Precipito meus braços em tua direção. Observo teu lento caminhar e quando finalmente estás diante de mim, dançamos ao som dos estalos do encontro da água com a areia... esfoliando nossas almas das dores da vida, vimos um novo dia raiar, dançando juntos a música que nos habita.
P.123.Presentes de natal - Angela Bretas
"Presentes de Natal São pequenas as horas São muitos os minutos São imensos os segundos Horas de esperas Minutos de expectativas Segundos de ansiedades Ansiedades de saber Saber se ganho ou não Expectativas de conhecer Conhecer o que terei nas mãos Vontade de descobrir Descobrir se gosto ou não E assim poder abrir Com carinho Um por um Presentes dados Com amor E recebidos Com emoção No final Mais um Natal se acaba As luzes se apagam Os pacotes espalhados pelo chão Fica apenas a certeza De que a espera não foi em vão E a alegria de ter ... um presente em minhas mãos! "
P.122.Prelúdio - Alda Lara
(para Lídia, minha velha ama negra)
Pela estrada desce a noite
Mãe-Negra desce com ela.
Nem buganvílias vermelhas,
nem vestidinhos de folhos,
nem brincadeiras de guizos
nas suas mãos apertadas...
Só duas lágrimas grossas,
em duas faces cansadas.
Mãe-Negra tem voz de vento,
voz de silêncio batendo
nas folhas do cajueiro...
tem voz de noite descendo
de mansinho pela estrada.
... Que é feito desses meninos
que gostava de embalar?
Que é feito desses meninos
que ela ajudou a criar?
Quem ouve agora as histórias
que costumava contar?...
Mãe-Negra não sabe nada.
Mas ai de quem sabe tudo,
como eu sei tudo,
Mãe-Negra...
É que os meninos cresceram,
e esqueceram
as histórias
que costumavas contar...
Muitos partiram pra longe,
quem sabe se hão de voltar!...
Só tu ficaste esperando,
mãos cruzadas no regaços,
bem quieta, bem calada...
É tua a voz deste vento,
desta saudade descendo
de mansinho pela estrada...
P.121.Preciso de alguem - Andréa Borba Pinheiro
Queria tanto ter alguém do meu lado,
que me abraçasse, me beijasse,
que não me deixasse nesse estado.
Que me protegesse e, se eu caísse, que me levantasse.
Alguém para conversar,
e fugir do silêncio do meu quarto.
Alguém que não me deixasse chorar,
que me amasse de fato...
Que sussurrasse tudo que gosto de ouvir,
bem baixinho, para só a minha alma sentir,
para só os meus olhos fechar,
e só o meu sono embalar.
Alguém que me desse o carinho que tanto anseio encontrar,
que me deixasse no meu cantinho, caso eu não quisesse falar.
Alguém que aquecesse o meu inverno,
e refrescasse o meu verão...
Será que esse alguém, vou achar?
P.120.Prece solitária - Angela Bretas
Venho através desta prece solitária
Pedir do fundo do coração
Que o mundo de forma humanitária
Possa encontrar uma espécie de união
Rogo aos ventos e aos mares
Imploro às matas e às florestas
Peço aos animais e aos ares
Que o mundo amanheça em festa
Escuta esta prece de quem te venera
Oh natureza divina
Ensine aos homens o valor da vida
Oh natureza rainha
Use a força de teus sagrados raios e chuvas
Alegre os céus com teus pássaros e cores
Perfume o mundo com tuas flores
Oh natureza infinita
Mostre aos homens
Que a vida é sublime
Que cada dia é único
Que para ser feliz basta estarmos vivos
E que o tempo passa
Levando com ele
A cada dia
Sonhos, amores e, desarmonia
Oh natureza em cores
Renove nos homens
A esperança de novos sonhos
A fé de um novo amor
Oh natureza
Ensina também
Que a certeza de uma nova vida
Se faz evidente, presente
A cada início de um novo dia
E que o mundo acorde em paz...
Amém !
P.119.Prece de um minuto - Angela Bretas
No primeiro minuto do Novo Ano,
Vou olhar firmamente à primeira estrela do céu
E fazer uma prece...
Vou pedir para que bombas parem de explodir
E que não haja fronteiras entre os povos...
Vou direcionar meu pensamento para um mundo de paz
Sem violência... terrorismo...
Vou implorar para que acabe a discórdia
E que a concordância prevaleça...
Vou clamar aos anjos e santos
E rogar por harmonia... piedade...
Piedade aos famintos...
Piedade às pessoas pobres de espírito...
Piedade aos que acreditam na violência...
Piedade aos perversos...
Piedade à humanidade carente... doente... sofrida...
Vou elevar meus desejos com fé
E acreditar que a fé remove montanhas, aniquila o mau,
acaba com a guerra...
Vou olhar firmamente à primeira estrela do céu
Neste primeiro minuto do Novo Ano
Vou sucumbir a meus apelos pessoais
Não quero querer só para mim
Quero dividir a alegria de saber que o amanhã promete...
Quero acreditar que as futuras gerações
encontrarão um mundo estruturado...
Quero usar o poder de minha mente positivamente... e crer...
Crer serenamente... confiantemente...
Na virada do Novo Ano vou elevar meus desejos
Em uma prece de um minuto
Vou olhar à primeira estrela do céu
e suplicar por um mundo melhor
Para todos nós...!
P.118.Pré-texto para Cassiano Ricardo - Adailton Medeiros
Amanhã o bom dia
na difícil manhã
chão romã
clã reipã
no reVerSo SIGno
EU mEU poemachão
poemapa poemassa
fada fica
riso rico
falo fala
sobre / vivEntes e
ternos amigos do
peito ó Jeremias
sem choro
nem velas
canto RICo ARDOr
sabiá-do-rosa-mente
P.117.Pranto para Comover Jonathan - Adélia Prado
Os diamantes são indestrutíveis?
Mais é meu amor.
O mar é imenso?
Meu amor é maior,
mais belo sem ornamentos
do que um campo de flores.
Mais triste do que a morte,
mais desesperançado
do que a onda batendo no rochedo,
mais tenaz que o rochedo.
Ama e nem sabe mais o que ama.
P.116.Posteridade - Affonso Romano Santana
Eles vão nos achar ridículos, os pósteros.
Nos examinarão
com extrema curiosidade
e um tardio afeto.
Mas vão nos achar ridículos, os pósteros.
Olhado de lá
tudo aqui
será mais claro
para eles
que nos verão
inteiramente diversos
do que somos,
bem mais exóticos
do que somos.
- Como esses primitivos
ousavam se chamar modernos?
Farão simpósios, debaterão
e chegarão a bizzaras conclusões.
Assim entraremos para a história deles
como outros para a nossa entraram:
não como o que somos
mas como reflexo de uma reflexão.
P.115.Porta do colégio - Affonso Romano Santana
Passando pela porta de um colégio, me veio uma sensação nítida de que aquilo era a porta da própria vida. Banal, direis. Mas a sensação era tocante. Por isto, parei, como se precisasse ver melhor o que via e previa.
Primeiro há uma diferença de clima entre aquele bando de adolescentes espalhados pela calçada, sentados sobre carros, em torno de carrocinhas de doces e refrigerantes, e aqueles que transitam pela rua. Não é só o uniforme. Não é só a idade. É toda uma atmosfera, como se estivessem ainda dentro de uma redoma ou aquário, numa bolha, resguardados do mundo. Talvez não estejam. Vários já sofreram a pancada da separação dos pais. Aprenderam que a vida é também um exercício de separação. Um ou outro já transou droga, e com isto deve ter se sentido (equivocadamente) muito adulto. Mas há uma sensação de pureza angelical misturada com palpitação sexual, que se exibe nos gestos sedutores dos adolescentes. Ouvem-se gritos e risos cruzando a rua. Aqui e ali um casal de colegiais, abraçados, completamente dedicados ao beijo. Beijar em público: um dos ritos de quem assume o corpo e a idade. Treino para beijar o namorado na frente dos pais e da vida, como quem diz: também tenho desejos, veja como sei deslizar carícias.
Onde estarão esses meninos e meninas dentro de dez ou vinte anos?
Aquele ali, moreno, de cabelos longos corridos, que parece gostar de esportes, vai se interessar pela informática ou economia; aquela de cabelos loiros e crespos vai ser dona de butique; aquela morena de cabelos lisos quer ser médica; a gorduchinha vai acabar casando com um gerente de multinacional; aquela esguia, meio bailarina, achará um diplomata. Algumas estudarão Letras, se casarão, largarão tudo e passarão parte do dia levando filhos à praia e praça e pegando-os de novo à tardinha no colégio. Sim, aquela quer ser professora de ginástica. Mas nem todos têm certeza sobre o que serão. Na hora do vestibular resolvem. Têm tempo. É isso. Têm tempo. Estão na porta da vida e podem brincar.
Aquela menina morena magrinha, com aparelho nos dentes, ainda vai engordar e ouvir muito elogio às suas pernas. Aquela de rabo-de-cavalo, dentro de dez anos se apaixonará por um homem casado. Não saberá exatamente como tudo começou. De repente, percebeu que o estava esperando no lugar onde passava na praia. E o dia em que foi com ele ao motel pela primeira vez ficará vivo na memória.
É desagradável, mas aquele ali dará um desfalque na empresa em que será gerente. O outro irá fazer doutorado no exterior, se casará com estrangeira, descasará, deixará lá um filho - remorso constante. Às vezes lhe mandará passagens para passar o Natal com a família brasileira.
A turma já perdeu um colega num desastre de carro. É terrível, mas provavelmente um outro ficará pelas rodovias. Aquele que vai tocar rock vários anos até arranjar um emprego em repartição pública. O homossexualismo despontará mais tarde naquele outro, espantosamente, logo nele que é já um don juan. Tão desinibido aquele, acabará líder comunitário e talvez político. Daqui a dez anos os outros dirão: ele sempre teve jeito, não lembra aquela mania de reunião e diretório?
Aquelas duas ali se escolherão madrinhas de seus filhos e morarão no mesmo bairro, uma casada com engenheiro da Petrobrás e outra com um físico nuclear. Um dia, uma dirá à outra no telefone: tenho uma coisa para lhe contar: arranjei um amante. Aconteceu. Assim, de repente. E o mais curioso é que continuo a gostar do meu marido.
Se fosse haver alguma ditadura no futuro, aquele ali seria guerrilheiro. Mas esta hipótese deve ser descartada.
Quem estará naquele avião acidentado? Quem construirá uma linda mansão e um dia convidará a todos da turma para uma grande festa rememorativa? Ah, o primeiro aborto! Aquela ali descobrirá os textos de Clarice Lispector e isto será uma iluminação para toda a vida. Quantos aparecerão na primeira página do jornal? Qual será o tranqüilo comerciante e quem representará o país na ONU?
Estou olhando aquele bando de adolescentes com evidente ternura. Pudesse passava a mão nos seus cabelos e contava-lhes as últimas estórias da carochinha antes que o lobo feroz os assaltasse na esquina. Pudesse lhes diria daqui: aproveitem enquanto estão no aquário e na redoma, enquanto estão na porta da vida e do colégio. O destino também passa por aí. E a gente pode às vezes modificá-lo.
P.114.Por que Mentias? - Alvares de Azevedo
Por que mentias leviana e bela?
Se minha face pálida sentias
Queimada pela febre, e minha vida
Tu vias desmaiar, por que mentias?
Acordei da ilusão, a sós morrendo
Sinto na mocidade as agonias.
Por tua causa desespero e morro...
Leviana sem dó, por que mentias?
Sabe Deus se te amei! Sabem as noites
Essa dor que alentei, que tu nutrias!
Sabe esse pobre coração que treme
Que a esperança perdeu por que mentias!
Vê minha palidez- a febre lenta
Esse fogo das pálpebras sombrias...
Pousa a mão no meu peito! Eu morro! Eu morro!
Leviana sem dó, por que mentias?
P.113.Por amar-te - Angela Bretas
Por amar-te sou mulher.
Quero sorver a veracidade de tuas palavras trôpegas
e a delícia de saber-me tua.
Sentir-me melada como cana caiana.
Deixar-me escorrer como a areia sinuosa,
pincelando rastros vestígios na tua tez avermelhada,
marcada por beijos meus...
Misturar meu fel com teu mel
e obter o tempero exato, raro...
Enroscar meus
desejos com tuas taras,
e viver o ápice do gozo
em um ímpeto de paixão e despudor.
Entregar-me ao riso solto,
ao corpo mole,
mergulhar em tua boca louca,
e renascer fêmea completa...
em teus vãos.
P.112.Poesia se Esfrega nos Seres e nas Cousas - Adalgisa Nery
Nunca sentiste uma força melodiosa
Cercando tudo que teus olhos vêem,
Um misto de tristeza numa paisagem grandiosa
Ou um grito de alegria na morte de um ser que queres bem?
Nunca sentiste nostalgia na essência das cousas perdidas
Deparando com um campo devoluto
Semelhante a uma virgem esquecida?
Num circo, nunca se apoderou de ti, um amargor sutil
Vendo animais amestrados
E logo depois te mostrarem
Seres humanos imitando um reptil?
Nunca reparaste na beleza de uma estrada
Cortando as carnes do solo
Para unir carinhosamente
Todos os homens, de um a outro pólo?
Nunca te empolgastes diante de um avião
Olhando uma locomotiva, a quilha de um navio,
Ou de qualquer outra invenção?
Nunca sentiste esta força que te envolve desde o brilho do dia
Ao mistério da noite,
Na extensão da tua dor
E na delícia da tua alegria?
Pois então, faz de teus olhos o cume da mais alta montanha
Para que vejas com toda a amplitude
A grandeza infindável da poesia que não percebes
E que é tamanha!
P.111.Poesia Entre o Cais e o Hospital - Adalgisa Nery
Geme no cais o navio cargueiro
No hospital ao lado, o homem enfermo.
O vento da noite recolhe gemidos
Une angústias do mundo ermo.
Maresia transborda do mar em cansaço,
Odor de remédios inunda o espaço.
Máquina e homem, ambos exaustos
Um, pela carga que pesa em seu bojo
Outro, na dor tomando o seu corpo.
Cais, hospital: Portos de espera
E começo de fim da longa viagem.
Chaminés de cargueiros gritando no mar,
Garganta do homem em gemidos no ar.
No fundo, o universo,
O mar infinito,
O céu infinito,
O espírito infinito.
Neblinados em tristezas e medos
Surgem silêncios entre os rochedos.
Chaminés de cargueiros gritando no mar
E a garganta do homem em gemidos no ar.
P.110.Poemeto Rural - Abgar Renault
Amplo dia ardente de sertão.
Sol queimante de verão
fuzilando auriluzente,
em setas nos olhos da gente.
Toadas longínquas de trabalhadores no eito.
Gado engordando lentamente no pastinho estreito.
Gente engordando sonolentamente dentro de casa.
Sombras chatas de árvores estendidas no chão... Um ruflo célere de asa
riscando, às vezes, o ar parado. Silêncio longo. Soledade.
Monotonia do sertão... Monotonia da felicidade...
P.109.Poemeto Matinal - Abgar Renault
O ar da manhã beija a minha face.
A minha alma beija o ar leve da manhã
e olha a paisagem longínqua da cidade,
que branqueja alegremente na distância
e sorri humanamente
um sorriso branco no caiado das casas
que montam os flancos das colinas azuis
e espiam pelos olhos escancarados das janelas.
7 horas. Vai começar a função.
O despertador das sirenes fura liricamente
o silêncio doirado da manhã.
Parece que a vida acorda agora pela primeira vez
e esfrega os olhos deslumbradamente...
Meu Ford fordeja dentro da manhã
e sobe a rua velha do meu bairro,
arquejando, bufando, fumando gasolina.
Meu Ford a cabriolar nos buracos da rua descalça
é um cabrito todo preto a cabriolar, prodigioso.
O ar leve beija o radiador
e beija a minha face.
A meninice de todo o meu ser
na doirada névoa desta manhã!
P.108.Poemeto III - Ana Paula Moura Moraes
Beijo doce, beijo molhado, beijo roubado.
Beijo quente, beijo ardente
que me fez tremer
Ah! quantos beijos trocamos.
Minha boca, tua boca... era uma coisa só.
Se o futuro ajudasse e a ti eu encontrasse
ia fazer um único pedido:
um beijo e nada mais.
P.107.Poemeto II - Ana Paula Moura Moraes
Queria um só momento junto a ti
para te dizer o que nunca consigo.
As palavras dizem pouco, menos que um olhar.
Queria tanto, mas tanto mesmo
queria te dizer, somente, o tanto que te quero bem.
P.106.Poemeto I - Ana Paula Moura Moraes
POEMETO I
ANA PAULA MOURA MORAES
Trago pela vida esperanças perdidas e
alegrias vividas de um tempo que não volta mais.
Quem sabe um dia, talvez
o destino traga de volta esta felicidade
que só existe na saudade
de um coração que amou demais.
P.105.Poemas para a amiga - Affonso Romano Santana
"O amor com seus contrários se acrescenta"
Camões
Fragmento 1
Tu sempre foste una
e sempre foste minha,
ainda quando a cor e a forma tua se fundiam
com outra forma e cor que tu não tinhas.
Por isto é que te falo de umas coisas
que não lembras
nem nunca lembrarias
de tais coisas entre mim e ti
ainda quando tu não me sabias
e dividida em outras te mostravas
e assim dispersa me ouvias.
Tu sempre foste uma
ainda quando o corpo teu
com outro corpo a sós se punha,
pois o que me tinhas a dar
a outro nunca o deste
e nunca o doarias.
Por isto é que te sinto
com tanta intimidade
e te possuo com tanta singeleza
desde quando recém vinda
ostentavas nos teus olhos grande espanto
de quem não compreendia
a antiguidade desse amor que em mim fluía.
Fragmento 2
Eu sei quando te amo:
é quando com teu corpo eu me confundo,
não apenas nesta mistura de massa e forma,
mas quando na tua alma eu me introduzo
e sinto que meu sangue corre em ti,
e tudo que é teu corpo
não é que um corpo meu
que se alongou de mim.
Eu sei quando te amo:
é quando eu te apalpo e não te sinto,
e sinto que a mim mesmo então me abraço,
a mim
que amo e sou um duplo,
eu mesmo
e o corpo teu pulsando em mim.
Fragmento 3
É tão natural
que eu te possua
é tão natural que tu me tenhas,
que eu não me compreendo
um tempo houvesse
em que eu não te possuísse
ou possa haver um outro
em que eu não te tomaria.
Venhas como venhas,
é tão natural que a vida
em nossos corpos se conflua,
que eu já não me consinto
que de mim tu te abstenhas
ou que meu corpo te recuse
venhas quando venhas.
E de ser tão natural
que eu me extasie
ao contemplar-te,
e de ser tão natural
que eu te possua,
em mim já não há como extasiar-me
tanto a minha forma
se integrou na forma tua.
Fragmento 4
As vezes em que eu mais te amei
tu o não soubeste
e nunca o saberias.
Sozinho a sós contigo
em mim mesmo eu te criava,
em mim te possuía
De onde vinhas nessas horas
em que inteira eu te envolvia,
nem eu mesmo o sei
e nunca o saberias
Contudo, em paz
eu recebia o carinho,
compungindo o recebia,
tranqüilo em meu silêncio
e tão tranqüilo e tão sozinho
que calmamente eu consentia:
- que ainda que muito me tardasse
mais ainda, um outro tanto, eu sempre esperaria.
Fragmento 5
Tanto mais eu te comtemplo
tanto mais eu me absorvo
e me extasio
Como te explicar
o que em teu corpo eu sinto,
o que em teus olhos vejo,
quando nua nos meus braços
no meus olhos nua,
de novo eu te procuro
e no teu corpo vou-me achar?
Como te explicar
se em teu corpo eu me eternizo
e de onde e como
sendo eu pequeno e frágil
pelo amor me dualizo?
Tanto mais eu te possuo
tanto mais te tornas bela,
tanto mais me torno eu puro.
E à força de tanto contemplar-te
e de querer-te tanto,
já pressinto que em mim mesmo
eu não me tenho,
mas de meu ser, ora vazio,
pouco a pouco fui mudando
para o teu ser de graça cheio.
Fragmento 6
Estás partindo de mim
e eu pressinto que me partes,
e partindo, em ti me vai levando,
como eu que fico
e em mim vou te criando.
Tanto mais tu me despedes
e te alongas,
tanto mais em mim vou te buscando
e me alongando,
tanto mais em mim vou te compondo
e com a lembrança de teu ser
me conformando.
Estás partindo de mim
e eu pressinto
na verdade, há muito que partias,
há muito que eu consinto
que tu partas como um mito.
Mas não és a única que partes
nem eu o único que fico:
sei que juntos e contrários
nos partimos:
-pois tanto mais nos desencontros nos revemos,
tanto mais nas despedidas consentimos.
Fragmento 7
Estranho e duro amor
é o nosso amor, amante-amiga,
que não se farta de partir-se
e não se cansa de querer-se.
Amor
todo feito de distâncias necessárias
que te trazem
e de partidas sucessivas
que me levam.
Que espécie de amor
é esse amor que nos doamos
sem pensar e sem querer com tanto amor
e tão profundo magoar? Estranho e duro amor
que não se basta
e de outros amores se socorre
e se compensa
e neste alheio compensar-se
nunca se alimenta,
mas se avilta e se desgasta.
Estranho amor,
ferino amor,
instável amor feito sem muita paz,
com certo desengano
e um desconsolo prolongado.
Feito de promessas sem futuro
e de um presente de saudades.
Chorar tão dúbio amor
quem há-de? Estranho amor
e duro amor
incerto amor, que não te deu o instante que esperavas
e a mim me sobejou do que faltava.
Fragmento 8
Contemplo agora
o leito que vazio
se contempla.
Contemplo agora
o leito que vazio
em mim se estende
e se me aproximo
existe qualquer coisa
trescalando aroma em mim.
Onde o teu corpo, amante-amiga,
onde o carinho
que compungido em recebia
e aquela forma que tranquila
ainda ontem descobrias?
Agora eu te diria
o quanto te agradeço o corpo teu
se o me dás ou se o me tomas,
e o recolhendo em mim,
em mim me vais colhendo,
como eu que tomo em ti
o que de ti me vais doando.
Eu muito te agradeço este teu corpo
quando nos leitos o estendias e o me davas,
às vezes, temerosa,
e, ofegante, às vezes,
e te agradeço ainda aquele instante (o percebeste)
em que extasiado ao contemplá-lo
em mim me conturbei
- (o percebeste) me aguardaste
e nos olhos te guardei.
Eu muito te agradeço, amante-amiga,
este teu corpo que com fúria eu possuía,
corpo que eu mais amava
quanto mais o via,
pequeno e manso enigma
que eu decifrei como podia.
Agora eu te diria
o que não soubeste
e nunca o saberias:
o que naquele instante eu te ofertava
nunca a mim eu já doara
e nunca o doaria.
Nele eu fui pousar
quando cansado e dúbio,
dele eu fui tomar
quando ofegante e rubro,
dele e nele eu revivia
e foi por ele que eu senti
a solidão, e o amor
que em mim havia.
Teu corpo quando amava
me excedia,
e me excedendo
com o amor foi me envolvendo,
e nesse amor absorvente
de tal forma absorvendo,
que agora que o não tenho
não sei como permaneço nesta ausência
em que tuas formas se envolveram,
tanto o amor
e a forma do teu corpo
no meu corpo se inscreveram.
P.104.Poemas Malditos VI - Alvares de Azevedo
No outro dia, na borda do caminho
Deitado ao pé de um fosso aberto apenas,
Viu-se um mancebo loiro que morria...
Semblante feminil, e formas débeis,
Mas nos palores da espaçosa fronte
Uma sombria dor cavara sulcos.
Corria sobre os lábios alvacentos
Uma leve umidez, um ló d'escuma,
E seus dentes a raiva constringira...
Tinha os punhos cerrados... Sobre o peito
Acharam letras de uma língua estranha...
E um vidro sem licor... fora veneno!...
Ninguém o conheceu; mas conta o povo
Que, ao lançá-lo no túmulo, o coveiro
Quis roubar-lhe o gibão - despiu o moço...
E viu... talvez é falso... níveos seios...
Um corpo de mulher de formas puras...
Na tumba dormem os mistérios de ambos;
Da morte o negro véu não há erguê-lo!
Romance obscuro de paixões ignotas
Poema d'esperança e desventura,
Quando a aurora mais bela os encantava,
Talvez rompeu-se no sepulcro deles!
Não pode o bardo revelar segredos
Que levaram ao céu as ternas sombras;
Desfolha apenas nessas frontes puras
Da extrema inspiração as flores murchas...
P.103.Poemas Malditos V - Alvares de Azevedo
Caiu a noite, do azulado manto,
Como gotas de orvalho, sacudindo
Estrelas cintilantes. - Veio a lua
Banhando de tristeza o céu noturno:
Derrama aos corações melancolia,
Derrama no ar cheiroso molemente
Cerúlea chama, dia incerto e pálido
Que ao lado da floresta ajunta as sombras
E lança pelas águas da campina
Alvacentos clarões que as flores bebem.
A galope, de volta do noivado,
Passa o Conde Solfier, e a noiva Elfrida.
Seguem fidalgos que o sarau reclama.
Elfrida
- Não vês, Solfier, ali da estrada em meio
Um defunto estendido? -
Solfier
- Ó minha Elfrida,
Voltemos desse lado: outro caminho
Se dirige ao castelo. É mau agouro
Por um morto passar em noites destas.
Mas Elfrida aproxima o seu cavalo.
Elfrida
- Tancredo vede! é o trovador Tancredo!
Coitado! assim morrer! um pobre moço!
Sem mãe e sem irmã! E não o enterram?
Neste mundo não teve um só amigo? -
"Ninguém, senhora - respondeu da sombra
Uma dorida voz - Eu vim, há pouco,
Ao saber que do povo no abandono
Jazia como um cão. Eu vim, e eu mesmo
Cavei junto do lago a cova impura."
Elfrida
- Tendes um coração. Tomai, mancebo,
Tomai essa pulseira Em oiro e jóias
Tem bastante p'ra erguer-lhe um monumento,
E para longas missas lhe dizerem
Pelo repouso d'alma...
O moço riu-se.
O Desconhecido
- Obrigado. Guardai as vossas jóias.
Tancredo o trovador morreu de fome;
Passaram-lhe no corpo frio e morto,
Salpicaram de lodo a face dele,
Talvez cuspissem nesta fronte santa
Cheia outrora de eternas fantasias,
De idéias a valer um mundo inteiro!...
Por que lançar esmolas ao cadáver?
Leva-as, fidalga-tuas jóias belas!
O orgulho do plebeu as vê sorrindo.
Missas... bem sabe Deus se neste mundo
Gemeu alma tão pura como a dele!
Foi um anjo, e murchou-se como as flores,
Morreu sorrindo como as virgens morrem!
Alma doce que os homens enjeitaram,
Lírio que profanou a turba imunda,
Oh! não te mancharei nem a lembrança
Com o óbolo dos ricos! Pobre corpo,
És o templo deserto, onde habitava
O Deus que em ti sofreu por um momento!
Dorme, pobre Tancredo! eu tenho braços:
Na cova negra dormirás tranqüilo...
Tu repousas ao menos!... -
No entanto sofreando a custo a raiva,
Mordendo os lábios de soberba e fúria,
Solfier da bainha arranca a espada,
Avança ao moço e brada-lhe:
"Insolente!
Cala-te, doudo! Cala-te, mendigo!
Não vês quem te falou? Curva o joelho,
Tira o gorro, vilão!"
O Desconhecido
- Tu vês: não tremo.
Tu não vales o vento que salpica
Tua fronte de pó. Porque és fidalgo,
Não sabes que um punhal vale uma espada
Dentro do coração?-
Mas logo Elfrida:
"Acalma-te, Solfier! O triste moço
Desespera, blasfema e não me insulta.
Perdoa-me também, mancebo triste;
Não pensei ofender tamanho orgulho.
Tua mágoa respeito. Só te imploro
Que sobre a fronte ao trovador desfolhes
Essas flores, as flores do noivado
De uma triste mulher... E quanto às jóias,
Lança-as no lago... Mas quem és? teu nome?"
O Desconhecido
- Quem sou? um doudo, uma alma de insensato,
Que Deus maldisse e que Satã devora;
Um corpo moribundo em que se nutre
Uma centelha de pungente fogo,
Um raio divinal que dói e mata,
Que doira as nuvens e amortalha a terra!. .
Uma alma como o pó em que se pisa;
Um bastardo de Deus, um vagabundo
A que o gênio gravou na fronte-anátema!
Desses que a turba com o dedo aponta...
Mas não; não hei de sê-lo! eu juro n'alma,
Pela caveira, pelas negras cinzas
De minha mãe o juro... agora há pouco
Junto de um morto reneguei do gênio,
Quebrei a lira à pedra de um sepulcro...
Eu era um trovador, sou um mendigo .
Ergueu do chão a dádiva d'Elfrida;
Roçou as flores aos trementes lábios;
Beijou-as. Sobre o peito de Tancredo
Pousou-as lentamente...
- Em nome dele,
Agradeço estas flores do teu seio,
Anjo que sobre um túmulo desfolhas
Tuas últimas flores de donzela!-
Depois vibrou na lira estranhas mágoas,
Carpiu à longa noite escuras nênias,
Cantou: banhou de lágrimas o morto.
De repente parou-vibrou a lira
Co'as mãos iradas, trêmulas... e as cordas
Uma per uma rebentou cantando...
Tinha fogo no crânio, e sufocava.
Passou a fria mão nas fontes úmidas,
Abriu a medo os lábios convulsivos,
Sorriu de desespero-e sempre rindo
Quebrou as jóias as lançou no abismo.
P.102.Poemas Malditos IV - Alvares de Azevedo
Ia caindo o sol. Bem reclinado
No vagaroso coche madornando,
Depois de bem jantar fazendo a sesta,
Roncava um nédio, um barrigudo frade:
Bochechas e nariz, em cima uns óculos,
Vermelho solidéu... enfim um bispo,
E um bispo, senhor Deus! da idade média,
Em que os bispo s- como hoje e mais ainda -
Sob o peso da cruz bem rubicundos,
Dormindo bem, e a regalar bebendo,
Sabiam engordar na sinecura;
Papudos santarrões, depois Missa
Lançando ao povo a bênção - por dinheiro!
O cocheiro ia bêbado por certo;
Os cavalos tocou p'lo bom caminho
Mesmo em cima das pernas do cadáver.
Refugou a parelha, mas o sota
-Que ao sol da glória episcopal enchia
De orgulho e de insolência o couro inerte,
Cuspindo o poviléu, como um fidalgo-
Que em falta de miolo tinha vinho
Na cabeça devassa, deu de esporas:
Como passara sobre a vil carniça
Reléu de corvos negros-foi por cima...
Mas desgraça! maldito aquele morto!
Desgraça!... não porque pisasse o coche
Aqueles magros ossos, mas a roda
Na humana resistência deu estalo...
E acorda o fradalhão...
"O que se sucede?
- Pergunta bocejando: É algum bêbado?
Em que bicho pisaram?"
"Senhor bispo"
Diz o servo da Igreja, o bom cocheiro
Ao vigário de Cristo, ao santo Apóstolo
Isto é - dessa fidalga raça nova
Que não anda de pé como S. Pedro,
Nem estafa os corcéis de S. Francisco:
"Perdoe Vossa Excelência Eminentíssima;
É um pobre diabo de poeta,
Um homem sem miolo e sem barriga
Que lembrou-se de vir morrer na estrada!"
"Abrenúncio! - rouqueja o Santo Bispo -
Leve o Diabo essa tribo de boêmios!
Não há tanto lugar onde se morra?
Maldita gente! inda persegue os Santos
Depois que o Diabo a leva!..."
E foi caminho.
Leve-te Deus! Apóstolo da crença,
Da esperança e da santa caridade!
Tu, sim, és religioso e nos altares
Vem cada sacristão, e cada monge
Agitar a teus pés o seu turíbulo!
E o sangue do Senhor no cálix d'oiro
Da turba na oração te banha os lábios
Leve-te Deus, Apóstolo da crença!
Sem padres como tu que fora o mundo?
É por ti que o altar apóia o trono!
E teu olhar que fertiliza os vales
Fecunda a vinha santa do Messias!
Leve-te Deus ou leve-te o Demônio!
P.101.Poemas Malditos III - Alvares de Azevedo
Passou El-Rei ali com seus fidalgos.
Iam a degolar uns insolentes
Que ousaram murmurar da infâmia régia,
Das nódoas de uma vida libertina!
Iam em grande gala. O Rei cismava
Na glória de espetar no pelourinho
A cabeça de um pobre degolado.
Era um rei bon-vivant, e rei devoto;
E, como Luís XI, ao lado tinha
O bobo, o capelão e seu carrasco.
O cavalo do Rei, sentindo o morto,
-Trêmulo de terror parou nitrindo.
Deu d'esporas leviano o cavaleiro
E disse ao capelão:
"E não enterram
Esse homem que apodrece, e no caminho
Assusta-me o corcel?"
Depois voltou-se
E disse ao camarista de semana:
"Conheces o defunto? Era inda moço.
Faria certamente um bom soldado.
A figura é esbelta! Forte pena!
Podia bem servir para um lacaio."
Descoberto, o faceiro fidalgote
Responde-lhe fazendo a cortesia:
"Pelas tripas do Papa! eu não me engano,
Leve-me Satanás se este defunto
Ontem não era o trovador Tancredo!"
"Tancredo"! murmurou erguendo os óculos
Um anfíbio, um barbaças truanesco.
Alma de Tribouler, que além de bobo
Era o vate da corte-bem nutrido,
Farto de sangue, mas de veia pobre,
Caídos beiços, volumoso abdômen,
Grisalha cabeleira esparramada,
Tremendo narigão, mas testa curta;
Em suma um glosador de sobremesas.
"Tancredo! - repetiu imaginando-
Um asno! só cantava para o povo!
Uma língua de fel, um insolente!
Orgulho desmedido... e quanto aos versos
Morava como um sapo n'água doce...
Não sabia fazer um trocadilho..."
O rei passou-com ele a companhia.
Só ficou ressupino e macilento
Da estrada em meio o trovador defunto.
P.100.Poemas Malditos II - Alvares de Azevedo
Morreu um trovador - morreu de fome.
Acharam-no deitado no caminho:
Tão doce era o semblante! Sobre os lábios
Flutuava-lhe um riso esperançoso.
E o morto parecia adormecido.
Ninguém ao peito recostou-lhe a fronte
Nas horas da agonia! Nem um beijo
Em boca de mulher! nem mão amiga
Fechou ao trovador os tristes olhos!
Ninguém chorou por ele... No seu peito
Não havia colar nem bolsa d'oiro;
Tinha até seu punhal um férreo punho...
Pobretão! não valia a sepultura!
Todos o viam e passavam todos.
Contudo era bem morto desde a aurora.
Ninguém lançou-lhe junto ao corpo imóvel
Um ceitil para a cova!... nem sudário!
O mundo tem razão, sisudo pensa,
E a turba tem um cérebro sublime!
De que vale um poeta - um pobre louco
Que leva os dias a sonhar - insano
Amante de utopias e virtudes
E, num tempo sem Deus, ainda crente?
A poesia é de cerco uma loucura,
Sêneca o disse, um homem de renome.
É um defeito no cérebro... Que doudos!
É um grande favor, é muita esmola
Dizer-lhes bravo! à inspiração divina,
E, quando tremem de miséria e fome,
Dar-lhes um leito no hospital dos loucos...
Quando é gelada a fronte sonhadora,
Por que há de o vivo que despreza rimas
Cansar os braços arrastando um morto,
Ou pagar os salários do coveiro?
A bolsa esvazia por um misérrimo
Quando a emprega melhor em lodo e vício!
E que venham aí falar-me em Tasso!
Culpar Afonso d'Este - um soberano! -
Por que não lhe dar a mão da irmã fidalga!
Um poeta é um poeta - apenas isso:
Procure para amar as poetisas!
Se na Franca a princesa Margarida,
De Francisco Primeiro irmã formosa,
Ao poeta Alain Chartier adormecido
Deu nos lábios um beijo, é que esta moça,
Apesar de princesa, era uma douda,
E a prova é que também rondós fazia.
Se Riccio o trovador obteve amores
- Novela até bastante duvidosa -
Dessa Maria Stuart formosíssima,
É que ela - sabe-o Deus! - fez tanta asneira,
Que não admira que um poeta amasse!
Por isso adoro o libertino Horácio.
Namorou algum dia uma parenta
Do patrono Mecenas? Parasita,
Só pedia dinheiro - no triclínio
Bebia vinho bom - e não vivia
Fazendo versos às irmãs de Augusto.
E quem era Camões? Por ter perdido
Um olho na batalha e ser valente,
As esmolas valeu. Mas quanto ao resto,
Por fazer umas trovas de vadio,
Deveriam lhe dar, além de glória
- E essa deram-lhe à farta - algum bispado,
Alguma dessas gordas sinecuras
Que se davam a idiotas fidalguias?
Deixem-se de visões, queimem-se os versos.
O mundo não avança por cantigas.
Creiam do poviléu os trovadores
Que um poeta não val meia princesa.
Um poema contudo, bem escrito,
Bem limado e bem cheio de tetéias,
Nas horas do café lido fumando,
Ou no campo, na sombra do arvoredo,
Quando se quer dormir e não há sono,
Tem o mesmo valor que a dormideira.
Mas não passe dali do vate a mente.
Tudo o mais são orgulhos, são loucuras!
Faublas tem mais leitores do que Homero...
Um poeta no mundo tem apenas
O valor de um canário de gaiola...
É prazer de um momento, é mero luxo.
Contente-se em traçar nas folhas brancas
De um Álbum da moda umas quadrinhas.
Nem faça apelações para o futuro.
O homem é sempre o homem. Tem juízo:
Desde que o mundo é mundo assim cogita.
Nem há negá-lo-não há doce lira
Nem sangue de poeta ou alma virgem
Que valha o talismã que no oiro vibra!
Nem músicas nem santas harmonias
Igualam o condão, esse eletrismo,
A ardente vibração do som metálico...
Meu Deus! e assim fizeste a criatura?
Amassaste no lodo o peito humano?
Ó poetas, silêncio! é este o homem?
A feitura de Deus a imagem dele!
O rei da criação!...
Que verme infame!
Não Deus, porém Satã no peito vácuo
Uma corda prendeu-te-o egoísmo!
Oh! miséria, meu Deus! e que miséria!
P.099.Poemas Malditos I - Alvares de Azevedo
De tanta inspiração e tanta vida
Que os nervos convulsivos inflamava
E ardia sem conforto...
O que resta? uma sombra esvaecida,
Um triste que sem mãe agonizava...
Resta um poeta morto!
Morrer! e resvalar na sepultura.
Frias na fronte as ilusões-no peito
Quebrado o coração!
Nem saudades levar da vida impura
Onde arquejou de fome... sem um leito!
Em treva e solidão!
Tu foste como o sol; tu parecias
Ter na aurora da vida a eternidade
Na larga fronte escrita...
Porém não voltarás como surgias!
Apagou-se teu sol da mocidade
Numa treva maldita!
Tua estrela mentiu. E do fadário
De tua vida a página primeira
Na tumba se rasgou...
Pobre gênio de Deus, nem um sudário!
Nem túmulo nem cruz! como a caveira
Que um lobo devorou!...
P.098.Poema pouco original do medo - Alexandre O'Neill
O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém o veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no teto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos
O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
ótimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projetos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com a certeza a deles
Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados
Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)
O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos Sim
a ratos
P.097.Poema da Amante - Adalgisa Nery
Eu te amo
Antes e depois de todos os acontecimentos,
Na profunda imensidade do vazio
E a cada lágrima dos meus pensamentos.
Eu te amo
Em todos os ventos que cantam,
Em todas as sombras que choram,
Na extensão infinita dos tempos
Até a região onde os silêncios moram.
Eu te amo
Em todas as transformações da vida,
Em todos os caminhos do medo,
Na angústia da vontade perdida
E na dor que se veste em segredo.
Eu te amo
Em tudo que estás presente,
No olhar dos astros que te alcançam
E em tudo que ainda estás ausente.
Eu te amo
Desde a criação das águas,
desde a idéia do fogo
E antes do primeiro riso e da primeira mágoa.
Eu te amo perdidamente
Desde a grande nebulosa
Até depois que o universo cair sobre mim
Suavemente.
P.096.Poema Começado do Fim - Adélia Prado
Um corpo quer outro corpo.
Uma alma quer outra alma e seu corpo.
Este excesso de realidade me confunde.
Jonathan falando:
parece que estou num filme.
Se eu lhe dissesse você é estúpido
ele diria sou mesmo.
Se ele dissesse vamos comigo ao inferno passear
eu iria.
As casas baixas, as pessoas pobres,
e o sol da tarde,
imaginai o que era o sol da tarde
sobre a nossa fragilidade.
Vinha com Jonathan
pela rua mais torta da cidade.
O Caminho do Céu.
P.095.Perdoem - Angela Bretas
Perdoem atos insensatos
Que refletem em bocas de fome
De crianças famintas em filas cruéis...
Perdoem a violência gerada
Que afeta orfãos carentes
Mutilados de dignidade...
Perdoem a ambição do poder
Que corroe como um vulcão
Levando consigo vidas inocentes...
Perdoem os que não enxergam
Que a humanidade
Está soterrada em um materialismo aparente...
Perdoem os homens de boa vontade
Que cruzam os braços
E fecham os olhos para a vida...
P.094.Perdoa-me, visão dos meus Amores - Alvares de Azevedo
Perdoa-me, visão dos meus amores,
Se a ti ergui meus olhos suspirando! ...
Se eu pensava num beijo desmaiando
Gozar contigo uma estação de flôres!
De minhas faces os mortais palores,
Minha febre noturna delirando,
Meus ais, meus tristes ais vão revelando
Que peno e morro de amorosas dores...
Morro, morro por ti! na minha aurora
A dor do coração, a dor mais forte,
A dor de um desengano me devora...
Sem que última esperança me conforte,
Eu - que outrora vivia! - eu sinto agora
Morte no coração, nos olhos morte!
P.093.Perdidos - Angela Bretas
Você para mim
Eu sem você
Sozinhos
Perdidos
Buscando respostas
Que são indecisas
Remotas
Constantes
Sem saber se há fim
Sem querer começar
E assim deixar de lado
A paixão
A emoção
Levados somente
Pela razão da vida
Esta vida perdida
Machucada
Confusa
Que nos dá um presente
Mas
Não mostra a saída...
P.092.Penúria - Angela Bretas
A areia escaldante queimava os pés calejados, escaldados...
O suor escorria na face lânguida, faminta, sofrida...
Os últimos raios do sol, deixavam rastros serpentes; labaredas de fogo do calor possante, constante, no horizonte a perder de vista...
As vistas já sem visão, banhadas de ilusão, visionavam miragens, parages, oásis de terras produtivas...
Desatino do destino?
No passado, deixado, a lembrança da fartura, do leito corrente, da água cristalina a encher a tina vazia, da mesa farta... Que falta!
Dura realidade esta de agora. A outrora, negara o fardo da vida. Que ressequida, nada valia...
Só lhe restavam quinquilharias de dias, que escorriam em vaias de fracasso, fiasco... Asco, da terra fértil que deixou-se morrer; da água vertente, que doente, banhou-se de lodo, engodo avarento, nojento, que só trouxe tormento; da tormenta de vento que desabou o teto, assassinando o feto que no ventre, latente, não vingou.
Vingança?
Os credos e as cruzes, sem luzes coroadas de esperanças, sem crianças, encontravam-se ensacoladas, esquecidas na carga pesada, que vergava as costelas, magrelas, daquela que um dia, queria, parir a vida...
No cansaço do momento, a fala, que cala, na boca ressequida, dorida, atiça as escórias da memória...
E, delira, com ira, no impávido desejo de inverter a realidade : - Água, só sede, sem fé, só.. sol vá! Vá sol... só fé, sem sede, só água!
P.091.Palpitando alucinado - Ana Cristina Pozza
Não bateu inspiração...
O que me move
É esta enlouquecida paixão
Que dispara o coração
A cada suspiro de saudade
Quando aumenta a vontade
De encontrar os doces lábios teus...
E todo o meu corpo,
Palpitando alucinado,
Volta-se a esta saudade
Espreguiçando-se num cansaço
Só pra ter o teu abraço
Enlaçando apertado
Todo o desejo meu...
P.090.Pálida inocência - Alvares de Azevedo
Por que, pálida inocência,
Os olhos teus em dormência
A medo lanças em mim?
No aperto de minha mão
Que sonho do coração
Tremeu-te os seios assim?
E tuas falas divinas
Em que amor lânguida afinas
Em que lânguido sonhar?
E dormindo sem receio
Por que geme no teu seio
Ansioso suspirar?
Inocência! Quem dissera
De tua azul primavera
As tuas brisas de amor!
Oh! Quem teus lábios sentira
E que trêmulo te abrira
Dos sonhos a tua flor!
Quem te dera a esperança
De tua alma de criança,
Que perfuma teu dormir!
Quem dos sonhos te acordasse,
Que num beijo t'embalasse
Desmaiada no sentir!
Quem te amasse! E um momento
Respirando o teu alento
Recendesse os lábios seus!
Quem lera, divina e bela,
Teu romance de donzela
Cheio de amor e de Deus!
P.089.Pálida a Luz - Alvares de Azevedo
Pálida à luz da lâmpada sombria,
Sobre o leito de flores reclinada,
Como a lua por noite embalsamada,
Entre as nuvens do amor ela dormia!
Era a virgem do mar, na escuma fria
Pela maré das águas embalada!
Era um anjo entre nuvens d'alvorada
Que em sonhos se banhava e se esquecia!
Era mais bela! o seio palpitando
Negros olhos as pálpebras abrindo
Formas nuas no leito resvalando
Não te rias de mim, meu anjo lindo!
Por ti - as noites eu velei chorando,
Por ti - nos sonhos morrerei sorrindo!
P.088.Paixões - Angela Bretas
"Paixões Ah... Paixão errante Ponta de lança Alvo das emoções razantes... Ah... Paixão ligeira Supresa relâmpago Maldição certeira... Ah... Paixão ardente Dispersa em segredos Fogueira de corações carentes... Ah... Paixão solitária Cega agonia Fumaça temporária... Ah... Paixão vadia Faísca de ilusão Morta como brasa fria... Ah... Paixão criança Cinzas de esperança Cresça e aqueça...! "
P.087.Paixão - Andréa Borba Pinheiro
Aquele fogo...aquele vermelho...
O beijo que acende os sentimentos,
o olhar que queima e arde em chamas,
o abraço que "acalma".
As palavras sussurradas,
a intensidade do envolvimento,
a vontade de te ter aqui...
A frustração desse interminável momento!...
Minha mente está cega,
bem como meus olhos.
Meus sentidos, confusos...
Apenas, você...
Deixaste turvo o meu discernimento,
não sei o que fazer, alguém me ajude!
Fizeste a razão evaporar-se...cansei...és tão lento!
Me deixaste aqui, queimando...
Me deixaste assim, doendo...
quinta-feira, 18 de novembro de 2021
O.096.Ossa Mea - Alphonsus de Guimarães
II
Mãos de finada, aquelas mãos de neve,
De tons marfíneos, de ossatura rica,
Pairando no ar, num gesto brando e leve,
Que parece ordenar mas que suplica.
Erguem-se ao longe como se as eleve
Alguém que ante os altares sacrifica:
Mãos que consagram, mãos que partem breve,
Mas cuja sombra nos meus olhos fica...
Mãos de esperança para as almas loucas,
Brumosas mãos que vêm brancas, distantes,
Fechar ao mesmo tempo tantas bocas...
Sinto-as agora, ao luar, descendo juntas,
Grandes, magoadas, pálidas, tateantes,
Cerrando os olhos das visões defuntas...
O.095.Os sonhos - Abdias Sá
De repente acordo e vejo bem perto
De mim, colado quase ao meu, desnudo,
Também, cansado, inerte no veludo,
O corpo dela, sem censura, aberto
O coração, de sentimento incerto,
Às vezes, mesmo, indiferente a tudo.
De tanto vê-la assim me desiludo
E me entristeço sempre que desperto.
Sem esperança de acordar com ela,
Eu fico preso ao meu amor constante
E paro, e penso e sinto, num instante,
Quando ela dorme, assim, imóvel, bela:
...Eu dos seus sonhos estou tão distante,
Que nem parece que estou junto dela.
O.094.Os poetas não devem ser levados a sério - Affonso Romano Santana
Enquanto escuto o último tiroteio na favela ao lado, recebo de Alberto Dines, que criou na Internet o vigilante "Observatório da Imprensa", um artigo publicado no "The Economist", de Londres, intitulado "Injustiça poética"; um artigo tão instigante que Daniel Piza o republicou na seção de cultura da "Gazeta Mercantil". Vejam só: "The Economist" e a "Gazeta", jornais voltados para a política econômica, falando de economia poética.
O autor anônimo daquele ensaio fala de um paradoxo: ao mesmo tempo em que, de um lado, parece haver um desprestígio editorial e mercadológico dos poetas, por outro lado, "Len Fulton, da Dustbooks, que publica a 'Small Press Review', recebe livros de 300 novas pequenas editoras e outras 300 novas revistas todos os meses. Muitas pequenas editoras não sobrevivem por muito tempo. Mas mais de 1.400 revistas e 800 pequenas editoras duram o tempo suficiente para chegar ao 'Catálogo de Editoras de Poesia' bienal de Fulton.".
Nota-se que quadruplicou o número de cursos de criação literária nos Estados Unidos. Hoje são 285 universidades com 11 mil estudantes nessa área, a metade dedicada à poesia. Há mais de 200 festivais de poesia de cowboys nos Estados Unidos e viraram moda, recentemente, uns torneios poéticos onde dois poetas se desafiam, em nove rounds, lendo um poema cada um, até o confronto de um poema improvisado no final. Quem ganha leva um cinturão de peso-pesado, como nas lutas de boxes. E as pessoas pagam até US$ 20 para assistir a esse pugilato poético.
Vejam que coincidência. E quando as coincidências começam a coincidir muito deixam de ser simples coincidência para serem sintomas. Isto tanto com os tiroteios quanto com a poesia. Nesses dias recebi de Alberto Carvalho - um intelectual finíssimo lá de Aracaju, que tem coleções de revistas raras como a "Senhor" e que adquire qualquer livro bom que surja em qualquer parte - recebi, repito, um CD intitulado "A voz, o poema", com obras de 35 poetas sergipanos. Sim, senhores, de Sergipe. E embora em matéria de Nordeste, como Chirac e Reagan, que trocam o presidente do Brasil pelos do México e da Bolívia, troquemos Aracaju por Maceió ou Natal, eu lhes garanto: a poesia está viva e muito bem, lá em Sergipe.
Estou no meu escritório, diante do crepúsculo. Já escutei o tiroteio das cinco e, antes que comece o tiroteio da sete na favela ao lado, deixo fluir verdades na boca da noite e começo a ouvir vozes desse CD de poesias que me veio de Sergipe. Uma diz: "Um louco colhe amoras amarelas na varanda do hospício antes que um guarda com boca de dragão descerre a cortina da noite".
Quantas mulheres neste disco! Que bom! Uma delas revela que, enquanto preparava a comida da família, "só tia Ester sabia pôr compressas na própria dor". E outra voz de homem acrescenta: "Quando o dia chegou, com suas aves peraltas na lapela, a cidade sorriu acanhada, dois poetas marrons assoaram o nariz". Mas o poema termina com essa frase irônica e problemática: "Os poetas não devem ser levados a sério".
Se não devem ser levados a sério, por que "The Economist" e a "Gazeta Mercantil" estão preocupados com a poesia? E se a poesia é dispensável, porque há milhares de anos milhões de pessoas a praticam, e agora ela chegou airosamente também à Internet?
Alguns de vocês já ouviram falar de Soares Feitosa. Com uma pertinácia rara, alheio às convenções dos grupinhos literários, ele está colocando na Internet não só a poesia de poetas vivos, mas todo Camões, Augusto dos Anjos e outros tantos, e está fazendo sozinho o que entidades governamentais e universidades não fazem.
No artigo do "The Economist", no entanto, faltou analisar isto: a invasão da Internet por parte dos poetas. Estão eles passando por cima das editoras e livrarias, unindo o que há de mais primitivo e tribal ao que há de mais avançado tecnologicamente.
Há um mistério com a poesia, vocês sabem. E quando havia no país não só menos tiroteio, mas menos cronistas e mais crônica, Rubem Braga fez uma intitulada "O mistério da poesia", tentando entender por que o verso do colombiano Aurélio Arturo, "Trabajar era bueno en el sur, cortar los arboles, hacer canoas de los troncos", não lhe saía da cabeça e de onde vinha a sua poesia.
Em 1962 - quando 99% de vocês não haviam nascido, publiquei, como estudante, meu primeiro livrinho, "O desemprego do poeta" - que tinha tudo a ver com o que se disse antes. Lá anotava uma frase de João Cabral, nos anos 40, que dizia que os poetas deveriam se utilizar da tecnologia da época: o rádio. Infelizmente ele não a utilizou. Depois veio a televisão. De minha parte, experimentei o rádio e a TV, sobretudo quando Dilea Frate e Alice Maria ousadamente me aliciaram para tal. Hoje o CD e a Internet são dois instrumentos que caíram nas mãos dos poetas. Acabo de receber uma antologia de poetas de Maui - uma daquelas ilhas perdidas no Pacífico - e, de Juiz de Fora, Iacyr Freitas promete-me um CD. De Brasília, chega-me uma nova e promissora revista dedicada à tradução de poetas estrangeiros e divulgação de brasileiros, "Gargula".
Entrementes, ouço formidáveis tiroteios na favela ao lado. Há uma semana que não nos deixam dormir e saímos à rua com a alma agachada, humilhados. Minha vizinha mostra-me a bala que caiu no seu quarto depois de varar a esquadria de alumínio e ricochetear pelas paredes fazendo buracos e quebrando quadros.
E do disco de poesia saí uma voz que diz: "Um dia adormeci cansado de tudo, quando acordei, Deus e o circo não estavam mais na minha cidade.".
O.093.Os limites do autor - Affonso Romano Santana
Às vezes, ocorre
um autor estar
aquém
- do próprio texto.
De o texto ter-se feito,
além dos dedos,
como gavinha que inventou
a direção de seu verde,
e fonte que minou
o inconsciente segredo.
Um texto ou coisa
que ultrapassa a régua,
a etiqueta e o medo,
copo que se derrama,
corpo que no amor
transborda a cama
e se alucina de gozo
onde havia obrigação.
Enfim, um texto operário
que abandonou o patrão.
Às vezes ocorre
um autor estar aquém
da criação.
O texto-sábio
criando asas
e o autor pastando
grudado ao chão.
- Como pode um peixe vivo
estar aquém do próprio rio?
- Que coisa é esse bicho
que rompe as grades do circo
e se lança na floresta
no descontrole de fera?
- Que coisa é essa
que se enrola?
É fumaça? ou texto?
que se alça do carvão?
Lá vai o poema ou trem
que larga o maquinista
na estação
e se interna no sertão.
Ali o poema
olhado de binóculo
- só de longe tocado -
e o autor, falso piloto
largado na pista ou salas
do aeroporto, atrás do vidro,
enquanto o texto
levanta seu vôo cego
com o radar da emoção.Enfim,
um poema que vira pássaro
onde termina a mão
ou avião desgovernado
que ilude o autor e a pista
e explode na escuridão.
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