segunda-feira, 31 de janeiro de 2022
G.028.Galimatias e discursos verborrágicos - Lucas Menezes Maida
Um amor de rimas fáceis, calafrios
Ininterpretável como “Las Meninas” de Velásquez
Um amor de rios, rios e Rios
Daquelas cantarolagens que espanta os males
(Eu te...)
Você não consegue recitar sem me excitar
Cantar sem me cantar
Rir sem me sorrir
Mirar sem me flechar
(Eu te...)
É Nando e Cássia, no mesmo ritmo, tocando relicário
É antídoto marítimo, no vai e vem que traz curas
É uma tarde em Itapuã sem fuso horário
É Dom Casmurro com o Emplasto Brás Cubas
(Eu te...)
Olhares 43, dias 15, tamanhos 13
Amor ao acaso, 204
Como um encontro inesperado
Em uma impressora de trabalho
(Eu te...)
Amei teus melasmas
Plantei tuas Astromélias
Conheci as imperfeições
Fiz delas perfeições
Transformei meu dicionário em Aurélia
(Eu te...)
Você é um rio de Janeiro
E eu; um rio de Março
Riu de mim quando me queimei no mormaço
O seu rio é mais legal, mas é no meu que faço aniversário
(Eu te...)
Nesta embarcação, eu me encontrava a bombordo
Enquanto tu, a estibordo
Uma tempestade da cor dos seus olhos
Transbordou a caravela de escordo
(Eu te...)
Corri chão e cruzei mar, deixei-me levar pelo ar
Usei de fonemas bilabiais para te deletrear
Essas coincidências semânticas alveolares
São o verdadeiro significado do verbo “amar”
(Eu te...)
Você virou Tu
Tudo ficou íntimo, mas ainda doeu
Queria te conjugar mais uma vez
Para que Tu virasse Eu
(Eu te...)
Todas essas verborreias em desengano
Galimatias inúteis de se ler
Todo esse clichê, démodé e blasé
É para falar que eu amo você
(Eu te amo)
G.027.Grito no Peito - Jeovam A. dos Santos
Meu grito traz o som do silêncio noturno.
É singelo, discreto; é simples, é soturno.
É o bramir pelo último abraço numa despedida.
E o estro poético de uma alma ferida,
Meu grito é literário, tem itinerário, é profuso;
Brinca com as palavras e deixa ouvintes confusos.
Meu grito é para alguém nalgum lugar do mundo;
Nas sombras, nas companhias, meu grito, é agudo.
Meu grito não é cego, é algo que carrego
Como antídoto que a minha alma cura,
Quando nos momentos de loucuras, teima em gritar!
Meu grito é o sufocar da dor, o despetalar da flor!
É o rebento que nascer do prazer da candura;
Meu grito é o áfono da ternura ao sentir morrer o amor...
G.026.Gota de sentimento - Gi Amor
De onde cai uma lágrima,
Desce além da fisiologia,
É o resumo do sentimento,
Seja dor ou alegria,
Ainda que se evite,
Por orgulho ou teimosia...
Ela desce e corre ao seu lado,
Vem pela boca ou nem mesmo cai.
Olhos marejados respondem calados,
Sem palavras, só cílios molhados.
É a confissão do sentimento,
Felicidade, ódio, mágoa...
Expresso de forma primária,
Na simplicidade de uma gota d'água.
G.025.Guerra Santa - Eliane F.C.Lima
Abriu o papel colocado em sua caixinha de correio. Era uma pregação religiosa, escrita em um papel pautado e de mau gosto. “Que abuso!”, pensou. Quem deu autorização para aquilo ser colocado ali? Perguntado, o porteiro disse que não sabia de nada. Não tinham pedido autorização ao síndico. Podia reclamar, proibir a colocação em seu escaninho. Mas preferiu outro caminho. Já em casa, escreveu outra mensagem contestanto todas as palavras. Fechou, assinando-se “um ateu.” Como não sabia de quem se tratava, fez várias cópias e colocou de volta, no espaço do correio de todos os apartamentos. Não sabendo igualmente a origem da resposta, outra mensagem do asceta foi escrita, refutando a segunda e colocada, de novo, coletivamente. Quando chegou, à tarde, ao pegar as cartas rotineiras, novamente um ataque de raiva. Foi direto responder, agora já subindo o tom. No dia seguinte, perscrutou sua caixinha do correio, bastante ansioso. O prédio inteiro já acompanhava a disputa. Sentado no sofá, viu que o outro também recrudescera na resposta. Era digna de um cruzado, de um templário, de um evangélico indignado. Chamava-o de ímpio, dizia-o capazes de coisas atrozes, punha em pessoas iguais a ele a culpa por crimes hediondos, recentemente cometidos – eram citados todos, um a um. Os comentários começaram a grassar. O síndico já estava disposto a descobrir quem eram os dois engraçados e a acabar com aquilo, mas os vizinhos disseram que não. Acompanhavam o caso, como quem acompanha uma novela. Como ouviu, por acaso, no elevador, uma conversa em que um dos moradores falava da intenção do síndico de descobrir e multar os dois, o primeiro missivista resolveu recolher, pelo menos temporariamente, seu sermão religioso. O outro, como não recebesse mais nenhuma provocação, também ficou silencioso, aguardando a próxima jogada do oponente. Quem não gostou nada daquilo foram os outros moradores, que tinham garantido muita gargalhada no final da tarde. E, estranhamente, as caixinhas do correio começaram a ser inundadas por uma coleção variadíssima de provocações de ateus e pregadores, dos mais variados estilos.
Fonte: http://conto-gotas.blogspot.com
G.024.Gata - Eliane F.. Lima
Para a amiga Aldina Maria Valente
Desde menina ouvia comentários, bons e maus, sobre os gatos. Por isso, foi de pé atrás que recolheu a gatinha imunda, pelos e lama, só olhos e miado. Na loja de animais, comprou remédio contra pulga.
Em casa, algodão nas orelhinhas, lavou-a pacientemente. Surpresa: era branca.
Seca com o secador de cabelos, enrolada em uns paninhos, colocou um pires de leite com farinha de aveia. A bichinha comeu até não poder mais, barriga redonda.
Dormiu muito, colchãozinho de pedaço de espuma, coberto com panos limpinhos.
Telas foram colocadas por fora das janelas. E o tempo foi passando. Se a dona chegava – “gato não tem dono” –, a bichana vinha, agora lindamente esguia, e se retorcia entre as suas pernas, para lá e para cá, carinhosíssima.
Mas o carinho dependia sempre da gata. Deixava-se ou não alisar. Muitas vezes, simplesmente, se levantava e ia para outro lugar, andar elegante, sem pressa. Novamente deitada, olhar de longe para a amiga. Bobagem insistir. Metia-se não se sabia onde. Lembrava as palavras de Maurício sobre ela mesma: “A gente nunca sabe como vai encontrar você. É de veneta.” Logo terminou com ele.
A amizade foi crescendo, mas sempre dentro de limites, sempre uma grande cerimônia entre ambas, nunca ultrapassada. Mariana achava bom, não gostava de gente que tenta estreitar amizade não pedida. Afastava-se também. Convidava pouca gente para sua casa. Não chegassem sem avisar, sem permissão.
Um dia, resolveu, finalmente, se mudar para um apartamento maior. Queria um escritório. Vinha pensando nisso há muito tempo. Mas olhava as paredes, cada buraquinho conhecido delas. E olhava as janelas, a tinta rachada, sua história. Até os prédios em volta, vistos de seu quarto, brincando de roda com o seu, eram dela, posse absoluta.
Andava à noite, para ir ao banheiro, de olhos fechados, não acordasse de todo. Sem erro, o chão, velho amigo, é que ia andando por ela, deslizando sob seus pés. A disposição dos cômodos, aqueles móveis naquela cozinha. Mas foi. Levando a gata.
Telas nas janelas, arrumação feita, na primeira porta aberta para levar o lixo, a gata sumiu. Procurou tudo, desesperada.
Então se lembrou das histórias: “Gato ama a casa, não o dono.”
Quase correndo, foi para o prédio antigo, rua próxima. Lá estava ela, sentadinha na calçada. Olhava para cima, pensativa e estratégica. Quando viu Mariana, veio enroscar-se nas pernas, feliz dela ter compreendido. Seus dois amores reunidos. Voltou a olhar para o alto, cheia de significações.
Fonte: http://conto-gotas.blogspot.com
G.023.Gestação - Angélica T. Almstadter
Ando gestando poesias,
Me despindo de palavras,
Coisas miúdas que já não me cabem,
Certezas que me sabem.
Estou parindo versos e prosas,
Regados com minhas primícias;
Quero cultivar jardins de lavras,
Gerados no ventre das minhas carícias.
Estou prenhe de amor,
Não para parir pessoas,
Nem fetos, objetos ou afetos;
Estou em estado de graça,
Acariciando a alma em flor,
Mimando-me com cânticos e loas,
Enfeitando meus pés e meu trajetos.
Estou grávida de um vulcão,
Desde a última chuva, da última lua.
Em berço alvo e discreto,
Vai nascer um furacão secreto,
Pra romper a cara no dia,
Varrer do meu corpo a agonia,
Pacificar minha fisionomia.
Estou gerando o meu mundo,
Nas fissuras do meu peito.
Vou parir sem dor,
Num rasgo lento e profundo,
O cataclisma mais que perfeito,
O abstrato fruto de silêncios,
De aromas; o meu amor,
Atravessado por milênios
G.022.Gota de Sangue - Angélica T. Almstadter
Vermelho é meu avesso fogo Enraizado de chamas ardentes; Luxo fácil para entrar no jogo Onde o que vale são as vertentes.
Mas o azougue se afunila na entrada Espreme e entra pelas frestas, Faz meu coração em disparada Uivar e sair em busca de serestas.
Zombo e rio no fio afiado sem defesa Com o fogo do meu vermelho sangue, Nada pode doer mais do que a acesa
Solidão inocente que me fere e tange Em coágulos de uma inútil certeza, Para eu sinta o gosto do desejo exangue.
C.088.Canção de Ninar - Nickelback
Bem, eu conheço a sensação
De se encontrar na beira do abismo E não há cura De se cortar com uma navalha afiada Eu estou lhe dizendo que Nunca é assim tão ruim Aceite isso de alguém que já esteve onde você está Caído no chão E você não tem certeza Se você pode aguentar mais
Por favor, deixe-me tirá-la
Dessa escuridão e levá-la para a luz Porque eu tenho fé em você Que você irá passar por outra noite Pare de pensar sobre isso É o caminho mais fácil Não há necessidade de apagar a vela Porque você não está pronta Você é muito jovem E o melhor ainda está por vir
Bem, todo mundo já alcançou o fundo do poço
Todo mundo já foi esquecido Quando todo mundo está cansado de estar sozinho E todo mundo já foi abandonado Eu fiquei de mãos vazias Então, se você mal está suportando
Então, só tente mais uma vez
Com uma canção de ninar E aumente o rádio Se você pode me ouvir agora Eu estou chegando Para que você saiba que você não está sozinha E se você não sabe disso Eu estou muito assustado Porque eu não tou conseguindo falar com você pelo telefone Então, basta fechar os olhos Querida, aqui vai uma canção de ninar Sua própria canção de ninar Querida, aqui vai uma canção de ninar Sua própria canção de ninar
C.087. Carta para mamãe - Douglas Farias
Tenho saudade de sentir o calor de suas mãos, lembro-me quando suas canções me acalmava e quando sua voz confortava minha alma, sei que sonhava comigo. No seu imaginar, mexia nos meus dedinhos e acariciava meu rostinho cor de rosa, ouvia você chamando-me pelo nome que escolheu para mim... eu sorria só de ouvir você falar suavemente o meu nome. Sei que sentia prazer em arrumar minhas roupinhas na gaveta do guarda-roupas, cheirava uma a uma antes de guardá-las, e sei também que todos os dias limpava meus brinquedinhos e minha mamadeira para que estivessem sempre limpinhos. Gostava do seu ar de felicidade só de saber que era uma semana a menos que aguardaria minha chegada.
Lembro de todas as noites quando você pedia a papai do céu para me abençoar, depois falava que sempre estaria comigo, falava para eu ser forte, falava para eu aguentar firme e dizia que eu era a sua maior alegria. Você olhava para as próprias fotos quando pequena, como quem imaginasse se eu pareceria com você. Lembro também das historinhas que lia para mim... eu também me emocionava quando você se emocionava. Sentia o vigor de sua caminhada, e gostava muito das comidinhas maravilhosas que preparava especialmente para mim.
Mamãe... de repente, quando estava perto de minha chegada, comecei sentir sua aflição, meu coraçãozinho pulsava muito mais rápido, podia ouvir seu choro, me assustava quando gritava de angústia e dor. Podia ouvir quando suplicava para papai do céu se acontecesse algo de mal, que fosse com você e não comigo. Mas tudo escureceu... sua voz não mais pudi ouvir... eu tive que ir. Sofro quando te vejo chorar, dói muito quando sei que está sentindo minha falta, não posso te ver assim... eu peço a papai do céu para sempre te confortar. Sei que sempre sonha comigo e chama pelo meu nome em seus sonhos.
Sei que um dia, mamãe, nós vamos nos encontrar e poderei abraçar aquela pessoa que sempre esteve comigo, aquela mulher que sempre sonhou comigo, e até esse dia chegar quero que saiba: EU SEMPRE ESTAREI CONTIGO!
C.086.Canção do Sonho Acabado - Helenita Scherma
Já tive a rosa do amor
- rubra rosa, sem pudor.
Cobicei, cheirei, colhi.
Mas ela despetalou
E outra igual, nunca mais vi.
Já vivi mil aventuras,
Me embriaguei de alegria!
Mas os risos da ventura,
No limiar da loucura,
Se tornaram fantasia...
Já almejei felicidade,
Mãos dadas, fraternidade,
Um ideal sem fronteiras
- utopia! Voou ligeira,
Nas asas da liberdade.
Desejei viver. Demais!
Segurar a juventude,
Prender o tempo na mão,
Plantar o lírio da paz!
Mas nem mesmo isto eu pude:
Tentei, porém nada fiz...
Muito, da vida, eu já quis.
Já quis... mas não quero mais...
sexta-feira, 28 de janeiro de 2022
K.001.Kant e a práxis - Eliane F.C. Lima
O médico avisou: ou dá uma freada, diminui as atividades, ou vai ter um enfarto. O estresse já atingiu o máximo. Entra em casa, o relógio em cima do móvel, marcando o atraso: onze horas e dezesseis minutos. Tem de sair correndo. Pensa no médico. Último esforço, em um impulso, levanta a perna e dá um pontapé no coitado, que voa longe e se espatifa na parede. Quando pensa em rir, é surpreendido. Uma enorme vertigem faz o ambiente girar. Assustado vê: não é sua cabeça que gira, são as coisas em volta. Estante, sofá, paredes, o vaso de planta, tudo roda em espiral, feito olho de furacão. Sente muito desequilíbrio, respira fundo, tentando não cair. Tudo roda cada vez mais rápido, mais rápido, até as cores todas se misturarem e ficar tudo branco. Ausência de tudo, é o nada. Silêncio absoluto, só o som de sua respiração, ofegante. A força do branco pleno faz seus olhos arderem, lacrimejarem. Aos poucos, os olhos vão se acostumando, a cor parece suavizar e consegue imaginar os vultos das coisas. Pressente o sofá, a estante, os quadros na parede, a enorme planta na lateral, os cacos do relógio no chão. Muito vagarosamente, braços estendidos, caminha para o quarto. Um enorme relógio de parede ainda marca: onze horas e dezesseis minutos. Aquele estaria atrasado? Nunca, tem relógios por toda a casa, todos minuciosamente acertados, garantia de nunca perder a hora. Vai até a cozinha – seria por ali o caminho? –, parece que esbarra nas coisas, mas vê o relógio em cima da mesa de almoço: onze horas e dezesseis minutos. Pela casa toda, até no banheiro, neuroticamente distribuídos, os relógios, estáticos na mesma hora. Atitude radical, sem querer, tinha anulado o tempo.
Fonte: http://conto-gotas.blogspot.com
J.012.Juntos - Douglas Farias
Erra no querer fazer te entender Saiba na diferença do pensar Como difícil é o nosso conhecer
O que adiantaria sempre discordar E da discordância me esquecer Se juntos temos que continuar?
Queira ouvir para saber o que falar Entre nós há um ser em um aprender E terá em nós no que se espelhar
Como vistes antes em seu caminhar Certas decisões tomadas são no unir Fortes estaremos para desafios enfrentar
J.014.José - Carlos Drummond de Andrade
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?
E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio — e agora?
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?
J.013.Jardim das Acácias - Ceu Elsyane
Já faz tempo que não vejo o teu olhar
Teu beijo nem lembro o paladar
Tuas palavras ecoam na minha alma, faz a saudade chegar
Tenho andado meio assim
Sentindo você em mim
Cresci, não cabe mais você no meu fim
Outros beijos, outros amores
Donos de mim, senhores
Jardim de acácias não existe mais
São flores feias de um mundo fugaz
Mas tenho paz
De mim nada terá mais
Segue teu rumo,já nem se lembra mais
De todos os planos, meros enganos
Sem dor, sem tristeza
Só a certeza: o passado deixamos para trás
J.011.Juízo Final - Um Poeta Vagabundo
descobri meu destino
e caminho pelo ócio da vida
o dia espera a noite
a noite espera o dia
profetas de plantão
e teorias absurdas
questionáveis existências
cegos pela fé
rastejam de joelhos
é a busca do perdão...
salvação.....
evolução........
revolução...........
e o caminho sem volta
das noites e dias.
J.009.Jóia Rara - Eliane F.C.Lima
Era um homem quieto. Uns olhos observadores e miúdos, guardando para si o que viam; os lábios finos, quase dois traços naquele rosto sereno; as orelhas ligeiramente grandes, testemunhas acabadas de um ser sem alarde. Apesar de tudo, não era feio, o todo uma harmonia das partes irregulares. Coisa alguma denunciava o grande respeito que sua mulher e suas três filhas tinham por ele. Muito o amavam, as quatro. Era ourives. Em um quartinho dos fundos da casa, não fabricava joias, criava obras-primas, Miguel Ângelo do subúrbio: era um gênio, coisa de deslumbrar críticos de arte, se a humanidade conhecesse o trabalho e seu autor. Só poucas pessoas avaliavam-lhe o valor: a família e um dono de uma rede de joalherias, sofisticadíssimas, que vendia suas peças. Os clientes milionários não tinham a menor ideia de onde vinham e só a cadeia de lojas recebia as loas das revistas especializadas. Não foram poucos os prêmios que algumas de suas peças receberam. De nada ele soube. E a parte que recebia dava para manter a família, com decência, é verdade, mas sem um excedente para um futuro mais promissor. O que lhe enchia o coração, sorriso muito econômico, eram os louvores das suas mulheres: “Ele não deveria vender aquela, pelo menos aquela não.” E isso sempre dito a cada nova peça. Ele admirava de todos os ângulos e reprimindo a alma a transbordar de felicidade e orgulho, dizia, laconicamente, que precisavam comer. A relação entre o ourives e o, agora, seu único comprador fora bastante ocasional, quando ainda fazia suas peças por encomenda. Tendo ido ao fornecedor de matéria-prima, dono de um pequeno negócio, lá encontrou o rico negociante, amigo do outro de velhos tempos. O dono da lojinha contou que o desconhecido era ourives... e dos bons! O visitante ilustre guardou o endereço escrito a lápis em um pedaço de papel. Um dia, apareceu no distante bairro. Viu as joias, deslumbrado, mas não deixou transparecer sua emoção. Como se fizesse um favor, comprou-as, dizendo tentar “passar adiante”. Encomendou outras e, dali para a frente, o ourives só vendeu para ele. A mulher do ourives, desconfiada, dizia-lhe que devia procurar saber quem era aquele comprador. Embora de táxi e vestido de maneira bem discreta, não escapava aos olhos perscrutadores da observadora senhora a elegância que emanava dele. Com os anos, ele já quase se tornara um velho conhecido, mas ela ainda mantinha uma dúvida na alma. Um dia, saiu antes da rotineira visita e ficou esperando, perto de um ponto de táxi. Quando o veículo do negociante passou, ela mandou segui-lo. Boca aberta, viu, no bairro seguinte, o homem saltar e entrar em um carro particular com motorista e tudo. Sem pensar na despesa, mandou o outro atrás. Pagou com o coração apertado. Com muita timidez, entrou na loja. Uma vendedora se aproximou dela e a mulher desconfiou que era para barrar sua passagem. Agradeceu e disse só pretender olhar um pouco. Um segurança ficou de longe a observá-la e, discretamente, ia seguindo seus passos. Em uma vitrine especial, as joias de seu marido. Sobre o vidro imaculado, várias revistas abertas, em destaque, exibiam as fotos das peças, mas era outro o nome que estava lá. Quis gritar que sabia quem criava aquelas maravilhas, o artista, o ser iluminado por Deus, toda exaltada. E o sofrimento escorreu pelo rosto abaixo. Foi embora, tropeçando pela calçada, soluçando sem pudor pela rua, até conseguir perguntar a alguém por um ponto de ônibus. Ao chegar a casa, encontrou o marido sentado diante da televisão, o pijama tão limpinho quanto aquela alma singela, que não tinha o direito de profanar. E temeu apagar de dentro dele aquele algo que ela não sabia de onde vinha e que criava o divino. Aquelas orelhas tão amadas não tinham sido feitas para ouvir as terríveis coisas humanas. E se calou. Dali para a frente, trancava-se no quarto, quando o joalheiro vinha, chorando muito, revoltada por não poder falar. Até que um dia o marido, discretamente como viveu, se foi. Não fosse pela presença das filhas, o imenso vazio não seria suportável. Trancou a porta da oficina e escondeu a chave. No velório, pensou que agora a fonte estava seca. A quem o outro iria espoliar? E, para surpresa de todos que sabiam o quanto ela amava o marido, ela não chorou. No dia seguinte, com a alma vestida de negro, entrou no mundinho do ourives. Sobre a mesa, a obra em que ele trabalhava justamente no momento do infarto. A seu lado, um caderno de desenho desconhecido. Abriu-o. E descobriu um marido ignorado: em cada página, um desenho, feito a grafite, magnífico, de mulher nua: era seu rosto, seus seios, seu sexo, a se contorcer de amor. E, embaixo de cada nova posição sensual, o esboço de cada obra que ele fizera, até a última, inacabada. Em um delírio de criação quase poética, metamorfose do gênio, do desenho a joia surgia, como um presente a ela. Com o peito a latejar de orgulho dele, saiu do cômodo, trancando tudo que estava lá dentro, inclusive as joias, ritualisticamente, como faziam os súditos aos túmulos dos faraós. E esperou, ansiosa e deliciada, agora que o marido não podia ouvi-la, a próxima visita do joalheiro.
Fonte: http://conto-gotas.blogspot.com
J.008.Jogos Urbanos II - Eliane F.C. Lima
Sempre pensava nisso. Sentado na mesa do atendente – gerente de banco, repartição pública –, via aquele monte de papéis que o funcionário examinava ou catalogava antes de sua chegada. Quando esse se levantava para pegar alguma coisa, imaginava pegar um bolo do meio daqueles, enfiar na maleta que carregava e, ao final do atendimento, levar. Até que fez. E a adrenalina que sentiu disparar-lhe o coração, enquanto o outro ia falando inocentemente ou mandando assinar, sem perceber o que ele tinha feito, era incalculável. Nem rapel, nem Bungee Jumping, nem escalada de montanha, nem jogar na roleta ou nos cavalos, nem saltar de paraquedas era igual. Estava arriscando tudo. E se o interlocutor desse por falta dos documentos andes dele sair e sumir? Pés na rua, se meteu no meio dos passantes, entrou no primeiro ônibus que apareceu, estatelado no banco, ofegante, pálido, no peito uma locomotiva desgovernada, sem maquinista. Muitas ruas depois, saltou, foi pegar o metrô. Mais calmo, começou a rir discretamente. Que aventura! Precisava se lembrar do lugar onde tinha feito aquilo. Cuidado para não repetir. Pensou no gerente, louco, “Onde está, meu Deus? Tenho certeza de que pus aqui!”. Afastou o pensamento ligeiro. Em casa, pensou em olhar o que era, de quem era. Não! Isso não! De repente, podia bater o remorso. E estragaria o prazer do brinquedo. Precisava dar um tempo, não se arriscar, não ficar visado. Embrulhou os papéis, colocou em um saco bem amarrado e, no dia seguinte, na ida para o trabalho, jogou em um lata de lixo no centro da cidade. Peito renovado, ia aguardar, pacientemente, a ocasião de uma nova aventura.
Fonte: http://conto-gotas.blogspot.com
J.010.Jean - Um Poeta Vagabundo
vou chorar
agora que estou sozinho
sem testemunhas
ninguém acreditará
que nesta laje
vi a noite cair
a tempestade vem com a noite
escurecendo o horizonte
te vi partir,
mas você acabou de chegar
estrela cadente, riscou meu céu
bate um vazio,
não vejo nada
e essa chuva salgada
lavou meu rosto inteiro
agora ando escrevendo palavras
sussurradas baixinho em meu ouvido
será pura alucinação
ou será um anjo a me consolar?
Não quero razões,
eu não preciso disso
se amar é sentir pena
não quero amar
e nem quero que ninguém me ame
J.007.Jogos Urbanos - Eliane F.C.Lima
Era muito pacato. Aquele bom amigo com quem todo mundo desabafa. Prestativo, que auxilia o colega na hora do trabalho acumulado. Mas tinha suas brincadeiras secretas. Aproveitava-se da neurose urbana. Punha uma touca de tricô na cabeça, uma calça de brim bem desbotada, uma camiseta preta, uma mochila nas costas. Mochilas estimulam a imaginação: para que aquele homem está com aquela mochila? O que haverá lá dentro? Saía de noite, umas oito horas. Parava em uma rua pouco movimentada, em frente a uma casa. Do outro lado da rua. Perto de uma árvore. E ficava ali, olhando para uma janela. Sempre acontecia de aparecer alguém. E vê-lo. Olhavam um pouco e entravam. Podia apostar: daqui a pouco, olha a tal cara de novo. Agora meio escondida atrás da cortina. Vinha um, vinha outro, às vezes muitas pessoas juntas. Ninguém podia acusá-lo de nada. Nada fazia. Tinha documentos na bolsa, era alto funcionário público, bem colocado na vida funcional. E na bolsa, não havia nada de perigoso. Nem arma, nem máquina fotográfica. Só coisas que um cidadão pacato e dentro da lei tem. Tinha ainda uma boa desculpa. Estava ali esperando um amigo que havia marcado com ele. Iam pegar a mulher dele que estava de plantão em um hospital. Não sabia o que havia acontecido, por que ele ainda não tinha vindo. Tinham combinado de tomar um vinho, até a hora dela sair. Vai ver o carro dele tinha quebrado, o amigo já vinha reclamando de um barulho. Imaginem que ele não tinha trazido o celular para receber o aviso do outro. Ficava até umas duas horas da manhã. Até ter certeza de que os moradores da casa tinham passado boa parte da noite em claro. E estavam com muito medo. Dispostos a chamar a polícia. Na primeira vez em que a janela ficava vazia, ia embora, pegava o carro que tinha deixado em outra rua. Era a pessoa mais pacata do mundo. Qualquer amigo colocava a mão no fogo por ele.
Fonte: http://conto-gotas.blogspot.com
J.006.Julho - Lucelena Maia
Julho é para mim florada de ansiedade,
Ao mesmo tempo, sinônimo de liberdade.
Estou para o mês como ele está pro inverno.
Com a alma reaquecida, nele eu hiberno.
Renasço, ano a ano, em vinte e oito de julho
Às tres da manhã, de um pequeno embrulho,
Com enorme laço vermelho envolvendo-o
Como se a vida estivesse, ali, devolvendo-me;
Dias, de todos os anos, docemente vividos,
Muitas estações em que chorar foi preciso
Também as pegadas esquecidas na estrada
Porque a pressa conduzia-me à chegada.
...Despertar na manhã de um novo presente
é desfazer laços, abraçar a vida e seguir em frente.
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