sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

J.007.Jogos Urbanos - Eliane F.C.Lima


Era muito pacato. Aquele bom amigo com quem todo mundo desabafa. Prestativo, que auxilia o colega na hora do trabalho acumulado. Mas tinha suas brincadeiras secretas. Aproveitava-se da neurose urbana. Punha uma touca de tricô na cabeça, uma calça de brim bem desbotada, uma camiseta preta, uma mochila nas costas. Mochilas estimulam a imaginação: para que aquele homem está com aquela mochila? O que haverá lá dentro? Saía de noite, umas oito horas. Parava em uma rua pouco movimentada, em frente a uma casa. Do outro lado da rua. Perto de uma árvore. E ficava ali, olhando para uma janela. Sempre acontecia de aparecer alguém. E vê-lo. Olhavam um pouco e entravam. Podia apostar: daqui a pouco, olha a tal cara de novo. Agora meio escondida atrás da cortina. Vinha um, vinha outro, às vezes muitas pessoas juntas. Ninguém podia acusá-lo de nada. Nada fazia. Tinha documentos na bolsa, era alto funcionário público, bem colocado na vida funcional. E na bolsa, não havia nada de perigoso. Nem arma, nem máquina fotográfica. Só coisas que um cidadão pacato e dentro da lei tem. Tinha ainda uma boa desculpa. Estava ali esperando um amigo que havia marcado com ele. Iam pegar a mulher dele que estava de plantão em um hospital. Não sabia o que havia acontecido, por que ele ainda não tinha vindo. Tinham combinado de tomar um vinho, até a hora dela sair. Vai ver o carro dele tinha quebrado, o amigo já vinha reclamando de um barulho. Imaginem que ele não tinha trazido o celular para receber o aviso do outro. Ficava até umas duas horas da manhã. Até ter certeza de que os moradores da casa tinham passado boa parte da noite em claro. E estavam com muito medo. Dispostos a chamar a polícia. Na primeira vez em que a janela ficava vazia, ia embora, pegava o carro que tinha deixado em outra rua. Era a pessoa mais pacata do mundo. Qualquer amigo colocava a mão no fogo por ele.
Fonte: http://conto-gotas.blogspot.com

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