sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Q.054.Quintino Bocaiúva - Adelino Fontoura


Uma vez escrito este nome, que é um símbolo, porque é uma síntese, sinto-me fortemente impelido pelo irresistível e poderoso impulso da verdade a adicionar-lhe, como particularidade complementar, esta frase: um homem de bem.
O leitor fluminense deve ter encontrado provavelmente na rua, algumas vezes, um indivíduo magro, franzino, de fisionomia melancólica e triste, rosto aquilino e agudo, fronte alta e escampada, a cabeça resolutamente levantada, passos firmes e compassados, caminhando sempre retilineamente como quem marcha para um destino; concentrado, pensativo, entregue obstinadamente aos profundos encantos da meditação. Pois bem: esse perfil cavalheiresco e leal, essa criatura romântica e silenciosa é Quintino Bocaiúva. Habituei-me, desde muito criança, a admirar e a respeitar este nome. E esse respeito e essa admiração que não eram, a esse tempo, mais do que a expressão convicta do meu entusiasmo pelo talento, são hoje, no meu espírito, a ratificação deste mesmo sentimento, mais largamente desenvolvido e mais solidamente baseado.
Não sou da intimidade de Quintino, e, pessoalmente, apenas o conheço de vista. Quanto ao homem público, porém, debaixo do seu duplo aspecto de jornalista e de político; quanto à personalidade distintamente acentuada do lutador visto aí, no duro e áspero conflito da vida pública, Quintino Bocaiúva é simplesmente o tipo exemplar da retidão, afrontando, cheio de impassível serenidade, todos os trabalhos e todo os obstáculos; tem sentido, como poucos, o contato áspero e inclemente das grandes contrariedades.
Entretanto, no meio desta peleja acerba e desfibrante, ele tem conservado inalteravelmente a atitude calma, a altivez intransigente de um forte, sem ter sucumbido, sem ter resvalado convenientemente, como tantos outros, para a serenidade burguesa e pacata, que resulta de um aviltamento cauteloso ou de uma apostasia oportuna. Na sociedade brasileira contemporânea, este fato, por si só, constituiu a mais austera lição e o mais brilhante exemplo. Quintino Bocaiúva, apesar da firmeza catoniana do seu temperamento, não é um homem que impressione pelo seu aspecto severo e duro. Ao contrário: ele impressiona pela singeleza e pela bondade, que derramam na sua fisionomia os tons brandos, docilmente expressivos de um vago misticismo ideal.
Cativam-me extraordinariamente as anedotas biográficas dos grandes homens, as originalidades e os "tiques" dos espíritos superiores. Por isso, quando pela observação e pelo estudo compreendi que Quintino era um original, admirei-o com mais ardor e com mais entusiasmo. E, para dar uma idéia exata e precisa da originalidade de Quintino, já que aludi a isso, eu recordarei que ele nunca foi ministro, nem deputado, nem vereador, nem membro do Instituto Histórico.
Não tem passado de um jornalista, o que, na opinião pitoresca e fútil do sr. Martinho Campos, é uma ocupação reles, indigna, prosaica, chata, de mau gosto. Felizmente - e isso consola - este ministro, eruditamente arrancado pelo Imperador das profundezas da paleontologia pátria, sabe experimentalmente, porque tem sentido que o redator do "Globo" no seu posto de honra é uma força tanto mais respeitável e temida, quanto é robustecida fortemente pelo sentimento de honra, da justiça e do dever.
Quintino é um homem singularmente distraído. Vive constantemente recolhido, como um eremita, dentro do seu "eu". Uma ocasião, - e este episódio é bastante expressivo - em um bonde de Botafogo, iam sentados no mesmo banco, na frente, juntos, em honesta camaradagem: Gusmão Lobo, Joaquim Serra e Quintino Bocaiúva. Em um dos bancos posteriores do veículo ia igualmente sentado um rapaz, cuja descrição fisionômica, os raros que porventura me conhecem dispensam, perfeitamente: era eu.
Levava os olhos sofregamente cravados naquela trípode de titãs, contemplando, cheio de interesse e de curiosidade, todos os movimentos particulares de cada um. A conversa tinha por objeto, cuido, um fato político da atualidade. Gusmão Lobo, conceituoso e grave, visivelmente interessado pelo assunto, argumentava com aquela fluência corretamente acadêmica que todos lhe reconhecem.
Joaquim Serra, o ridente e espirituoso folhetinista, com as cintilações pirotécnicas da sua "verve", ponteava a questão de pequenas alfinetadas incisivas e hilariantes. Quintino, entretanto, sentado entre os dois, não dizia palavra. Ia mudo, calado, numa profunda abstração mental, afagando maquinalmente a barba, com o olhar esquecido no espaço. O seu cacoete particular, aquele movimento rápido do queixo, fazia pensar que ele estava ruminando silenciosamente alguma idéia.
Quintino costuma ir às vezes ao bilhar, dar desenvolvimento aos músculos. Por muito que ele carambole, estou convictamente persuadido que Faure Nocolay podia dar-lhe, em uma partida de cem - noventa e nove de partido. No jornalismo, porém, ele joga taco a taco com os mais notáveis colegas. E nunca perde.

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