segunda-feira, 30 de abril de 2018

Crônica.O.007.O prazer da escrita - Antonio Junior de Barcelona


É uma das escritoras mais célebres do mundo, combativa e versátil: Doris Lessing. O baiano Antonio Júnior conta como em 1998 fez faxina durante algumas horas em sua casa lúdica e foi personagem de um diálogo sábio.
A companheira de habitação, Rute M., uma bela jovem do Sul, faz faxinas em velhas casas vitorianas para pagar seus estudos de inglês em Londres. É um trabalho duro, que inclue passar o aspirador em toda a casa, tirar as folhas secas das varandas, esfregar azulejos e vidros de janelas, deixar banheiros brilhantes e inclusive lavar copos e pratos em pias sempre cheias - os senhores do "primeiro mundo" não primam exatamente pela boa educação higiênica. O sub-ofício apenas feito por imigrantes ilegais tem vantagens: é bem remunerado, leva um máximo de três horas a semana por residência e os proprietários raramente estão presentes, deixando delicadamente um sanduíche frio e o pagamento do dia num envelope. Quando Rute gripou fortemente num inverno impiedoso - ou teria ido passar uns dias em Gales com o namorado escocês? -, pediu a amigos que substituise-a na sua humilde faina. Repartindo a clientela, fiquei com uma casa típica de tijolinhos aparentes num bonito subúrbio. Sabia que vivia ali uma idosa senhora solitária, visitada raramente por um filho cinquentão, e que possivelmente seria escritora. Rute trocara poucas palavras com ela e advertiu-me sobre o maior problema do serviço: livros espalhados por todos os lados como insetos vivos, e a "escritora" não permitia tocá-los nem para tirar o pó. Imaginei uma dessas escritoras românticas fracassadas, tipicamente inglesas e neuróticas. Nem ousei pensar que poderia ser Iris Murdoch ou Muriel Spark, seria como estar na intimidade com Raquel de Queiróz ou Zélia Gattai. Ao tocar a campainha às nove da manhã, coberto por uma névoa gélida que atravessava o meu gorro e o casaco de pele e o forro de lã de carneiro, reconheci imediatamente o par de olhos verdes surgidos pela porta semi-aberta. "Miss Lessing? Sou o amigo de Rute M. Ela está enferma e eu vim fazer o seu serviço". "Pobrezinha. O que tem? Não é nada sério, não?". "Uma gripe", respondi possivelmente pálido, disposto a beijar as mãos daquela mulher de olhos profundos e rosto costurado de rugas. "Como sabe que me chamo Miss...Lessing?", desconfiou. "A correspondência...", menti apontando cartas e jornais no chão. Ela sorriu, cortês, e abriu a porta totalmente. Ao voltar-me as costas, aproveitei para observá-la atentamente: o cabelo grisalho quase naturalmente azulado, em coque, o colete azul elegante e um macacão branco masculino. Aos 79 anos, esta mulher versátil e imaginativa que mais parece uma avózinha de contos de fadas, um pouco gorda, é uma das escritoras mais celébres do mundo e seu nome é sempre referencial para Prêmio Nobel.

A sua novela mais famosa, a quase auto-biográfica O Carnê Dourado (1962), é um êxito mundial, inclusive no Brasil. Lembro quando a Stela Simpson de Tonia Carrero em Água Viva brilhava numa cena lendo-o. Nascida na Pérsia, criada na antiga Rodésia, hoje Zimbabue, é conhecida como uma escritora realista, embora seja autora de cinco novelas de ficção-cientifíca (o ciclo Canopus in Argus Archives). Escreve com segurança e talento sobre o desmoronamento familiar moderno, a permanante crise sentimental e a competição entre casais, além de retratar a mulher dos nossos dias com lucidez e ferocidade. Perguntou se eu queria tomar algo. Não respondi hipnotizado com a escada que levava ao primeiro andar cheia de caixas de livros, e ao entrar na cozinha e no salão de baixo, não acreditei no número de livros desordenados. "Gosta de doce de gengibre?", perguntou afetuosa. Disse que sim, mas preferia começar o trabalho, e que ela não se preocupasse, Rute havia me explicado detalhadamente tudo. Ela sorriu, sorria sempre, e desapareceu escada acima. Limpei toda a parte de baixo por quase uma hora e, ao esfregar os vidros, avistei o jardim selvagem, tomado pelas plantas. O silêncio era completo, não ouvia-se música nem ruídos de passos ou mesmo de uma televisão. Subi as escadas de madeira escura e deparei-me com uma sala com poucos móveis: uma grande mesa sobrecarregada de livros e papéis, almofadas orientais espalhadas pelo chão, alguns pufes e um sofá baixíssimo, sem pés - como uma morada de espírito hippie.Um gato grande e velhíssimo saltou de um livro onde dormia - Satyricon de Petrônio - e notei que tinha somente três patas. Doris Lessing, praticamente imóvel, escrevia a mão sentada numa das almofadas. Ela virou-se para mim e disse: "Este é O Magnifíco. Tem 18 anos e teve um pata amputada porque tinha câncer. Está muito velho, pobrezinho". O gato olhou para mim bastante indiferente e aconchegou-se em cima de outro livro. Poderia ser o gato existencialista da atriz de Horas Nuas de Lygia Fagundes Telles. Tudo para mim era novo, não sabia se me surpreendia mais com a vastidão de livros em vários idiomas, o gato de três patas ou a ágil senhora sentada numa almofada como uma adolescente. Ao levantar-se, sussurrou:"Isto é a velhice. Entende? A velhice é a dificuldade para levantar-se". Iniciei o trabalho enquanto ela mexia em papéis, antes perguntando outra vez se eu não queria tomar algo. Quando a cada minuto voltava-me para olhá-la, os seus olhos levantavam telepáticamente e encontravam os meus. Sorriu uns minutos depois e perguntou:"Como se chama?". "Antonio", respondi sem deixar de tirar o pó dos objetos. "Antonio, você gosta de livros, não?". "Muitíssimo". Ela sorriu e depois de uma pausa demorada, continuou a conversa: "Você chora normalmente?". "Somente no cinema". "Eu também nunca choro. É horrível". "Como joga fora os seus medos?", ousei saber. "Através da literatura. Uma vez passei um ano inteiro sem escrever e vivia de mal humor. A escrita é uma espécie de equilíbrio". Olhei os seus pequenos e intensos olhos verdes e vi a infância dura numa antiga colônia britânica sulafricana, num sítio espaçoso nas montanhas, e depois a fuga aos 14 anos e o casamento aos 18; logo abandonou o marido e os dois filhos, enfrentando o regime racista e machista da colônia.

Uma heroína de filmes de aventura. Uma mulher poderosa e lúcida, de prosa perfeita e caráter fortíssimo, que cultiva a literatura como espaço de domínio e liberdade pessoal. Ao terminar o trabalho, que gostaria que fosse interminável, aceitei o chá e o doce de jenjibre. Boa anfitriã, ela sentou-se ao meu lado na mesa da cozinha, colocando a chaleira, as xícaras e o doce entre livros. Ela sorria sempre - lembrarei dela eternamente sorrindo. "Escrevo também. Sou um aprendiz", confessei. "Imaginei". "Não consegui nenhum êxito", afirmei."
Cada livro tem sua própria vida. Todos os livros tem que a lutar a princípio contra a negatividade e a indiferença. A maioria de meus livros recebem violentas reações negativas. Na verdade não é importante que a gente goste deles, o importante é o prazer de escrevê-los". Foi uma conversação delicada, cheio de evidentes e mútuos desejos de nos entendermos. Ao final, Miss Lessing me presenteou com um livro - A Proper Marriage (Um casamento convencional, 1964) - e insistiu que levasse um pedaço de doce de gengibre para Rute M. Não tive coragem de beijá-la, um abismo transparente e sagrado nos separava. "É preciso sobreviver às piores circunstâncias, meu caro amigo", aconselhou, sábia, enquanto me entregava o envelope com o pagamento da faxina. Não o aceitei, ela insistiu, não o quiz de forma nenhuma. Enfrentei a rua insultada pelo inverno rigoroso, em direção a estação de trem. As lágrimas corriam pela face, e na cabeça: o prazer da escrita, as alegrias intensas e a excitação de conhecer uma criatura resistente e indômita.

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