quinta-feira, 28 de outubro de 2021

O.080.O poeta e a bala - Affonso Romano Santana


(para o poeta Álvaro Alves Faria)
Fragmento 1
Pessoas carregam afrontas, remorsos,
outros, dívidas, projetos.
Conheço um poeta que carrega na cabeça
Uma bala viva.Bala nada metafísica,
não metáfora-espelho,
bala mesmo, explosiva,
no estopim do cerebelo.
Meteu-a lá um ladrão afoito
num de repente furtivo; meteu-a
lá, por nada, por hábito agressivo
num estúpido estampido.
Colocou-a não como se coloca
um livro na estante,
um verso no poema,
na próclise o pronome,
atirou-a como se, no homem, engatilhasse
a bala de um sobrenome.
Atirou-a como a granada
que se recusa a explodir
e fica, não no ar parada,
mas no corpo agasalhada
Fragmento 2
O poeta toma seu carro, viaja,
mas nele a bala anda
estacionada.
O poeta ama, troca de cama
e de mulheres, mas nele
a bala passeia
como se na praça passeasse
enamorada.
Ele vai ao médico, tira radiografias
vive perseguindo-a antes que ela,
como um míssel impaciente,
o alcance internamente.
De dia vigilante, acompanha
da bala a metálica sanha,
mas é de noite que, a cabeça na fronha,
o poeta embalado
- sonha.
Fragmento 3
Desde que me contou sua sina,
que abalado levo na cabeça cativa
a imagem da bala progressiva.
Alojou-se-me no cérebro - a atrevida -,
me persegue e exige que a desfira
num poema como se fosse
uma bala viva.
Nele é fatal a ferida
Em mim, metáfora alusiva.
Nele, é ameaça constante
em mim imagem corrosiva.
Essa bala se parece e é diversa
da bala de Cabral, outro poeta,
passa raspando meu texto,
contudo, é mais real.
Anos muitos se passaram:
penetrei cabeças, assaltei afetos
e atirei a esmo meus poemas
em gavetas e mulheres,
mas a palavra do poeta,
em mim ara inquieta.
Só me resta um recurso:
alojá-la na escritura,
atirá-la no leitor
na espera que essa bala
na leitura que o outro faça
prossiga sua acentura.

Nenhum comentário:

Postar um comentário