segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

S.162.Suspiro D'alma - Almeida Garret


Suspiro que nasce d'alma,
Que à flor dos lábios morreu...
Coração que o não entende
Não no quero para meu.
Falou-te a voz da minha alma,
A tua não na entendeu:
Coração não tens no peito,
Ou é dif'rente do meu.
Queres que em língua da terra
Se digam coisas do céu?
Coração que tal deseja,
Não no quero para meu

S.161.Súplica - Adelino Fontoura


Por mais que aspire ou queira, anele ou tente
Esquecer-me de ti - jamais me esqueço,
Ó bem amado ser por quem padeço,
Por quem tanto soluço inutilmente!
Bem que eu te peça, foges de repente,
E só me fica a dor que te não peço;
E eis tudo, ó céus! eis tudo o que eu mereço,
Em paga deste amor tão puro e crente.
Se te não move, pois, um desafeto
E se te apraz ao menos consolar
A desventura amarga deste afeto,
Ilumina com teu divino olhar
Esta alma que os teus pés, anjo dileto,
Vem, banhada de lágrimas, beijar.

S.160.Sub Specie Aeternitatis - Abgar Renautl


Vi-te, e vi a expressão essencial
da forma, da graça e da luz.
Vi-te, e vi a tremula fragilidade do efêmero
vestida das roupagens do eterno.
Vi-te, e sobre mim baixou, vindo do teu céu,
uma fulguração de raio, que feriu de vertigem
o meu destino de distâncias e negações
e deixou meus olhos sem pálpebras
para outro sol que não seja o teu esplendor.
Vi-te, e abri meu ser emudecido
para elevar à tua altura este canto de exaltação.
Mas a minha voz morreu em silenciosas névoas
e o meu coração, arquejante, parou de pulsar,
porque te vi e, vendo-te, vi em ti
o sem-limite das cousas que só habitam os sonhos sonhados
depois do tempo e além da vida.

S.159.Sou um dos 999.999 poetas do país - Affonso Romano Santana


Fragmento 1
INTRODUÇÃO SÓCIO-INDIVIDUAL DO TEMA


Sou um dos 999.999 poetas do país
que escrevem
enquanto caminhões descem pesados de cereais
e celulose
ministros acertam o frete dos pinheiros
carreados em navios alimentados com o óleo
que o mais pobre pagará.
(- Estes são dados sociais
de que não quero falar, embora
tenha aprendido em manuais
que o escritor deve tomar o seu lugar na História
e o seu cotidiano alterar.)
Sou um dos 999.999 poetas do país
com mãe de olhos verdes e pai amulatado
ela - a força de áries na azáfama da casa
a decisão do imigrante que veio se plantar
ele - capitão de milícias tocando flauta em meio
às balas
lendo salmos em Esperanto sobre a mesa
domingueira.
(- Estes são sinais particulares
que não quero remarcar, embora
tenha aprendido em manuais
que o que distingüe a escrita do homem
são seus traços pessoais que ninguém pode
imitar.)
Fragmento 2
DESENVOLVIMENTO HÁBIL E CONTÁBIL DO (P)R(O)BL(EMA)
Sendo um dos 999.999 poetas do país
desses sou um dos 888.888
que tiveram Mário, Bandeira, Drummond,
Murilo, Cecília, Jorge e Vinícius como mestres
e pelas noites interioranas abriam suas obras
lendo e reescrevendo os versos deles nos meus versos
com deslumbrada afeição.
Desses sou um dos 777.777 poetas
que se ampliaram ao descobrir Neruda, Pessoa,
Petrarca, Eliot, Rilke, Whitman, Ronsard e Villon
em tradução ou não
e sem qualquer orientação iam curtindo
um bando de poetas menores/piores
que para mim foram maiores
pois me alimentavam com a in-possível poesia
e a derramada emoção.
Desses sou um dos 666.666 poetas
que fundando revistinhas e grupelhos aspiravam
(miudamente)
à glória erótica & literária
e misturando madrugadas, festas, citações, sonhos
de escritor maldito e o mito das gerações
depois da espreita aos suplementos
batem à porta do poeta nacional para entregar
poemas
(com a alma na mão)
esperando louvor e afeição.
Desses sou um dos 555.555
que um dia foram o melhor poeta de sua cidade
o melhor poeta de seu estado
dos melhores poetas jovens do país
e quando já se iam laureando aqui e ali em plena arcádia
surpreenderam-se nauseados
e cobrindo-se de cinza retiraram-se para o deserto
a refazer a letra do silêncio
e o som da solidão
Desses sou um dos 444.444 poetas
que depois da torrente de versos adolescentes e noturnos
se estuporaram per/vertidos nas vanguardas
e por mais de 20 anos não falamos de outra coisa
senão da morte do verso e da palavra e da vida do sinal
acreditando que a poesia tendia para o visual
e que no séc. XXI etc. e etc. e tal.
Desses sou um dos 333.333 poetas
que depois de tanto rigor, ardor, odor, horror
partiram para a impureza (consciente) das formas
podendo ou não rimar em ar e ão
procurando o avesso do aprendido
o contrário do ensinado
interessado não apenas em calar, mas em falar
não apenas em pensar, mas em sentir
não apenas em ver, mas contemplar
fugindo do falso novo como o diabo da cruz
porque nada há de mais pobre que o novo ovo de ouro
gerado por falsas galinhas prata.
Desses sou um dos 222.222 poetas
que penosamente descobriram que uma coisa
é fazer um verso, um poema ou mais
e receber os elogios médio-medianos dos amigos
e outra, bem outra, é ser poeta
e construir o projeto de uma obra
em que vida & texto se articulem
letra & sangue se misturem
espaço & tempo se revelem
e que nesta matéria revém o dito bíblico
- muitos os chamados, poucos os escolhidos.
Desses sou um dos 111.111 professores
universitários ou não
que antes de tudo eram poetas-patetas-estetas-profetas
e que depois de ver e viver da obra alheia
estupefactos
descobrem que só poderiam/deveriam
sobreviver
com a própria
que escondem e renegam
por pudor
recalque
e medo.
Sou um dos 999 poetas do país
que
sub/traídos dos 999.999
serão sempre 999 (anônimos) poetas
expulsos sistematicamente da República por Platão
que um dia pensaram em mudar a História com
dois versos pena & espada
(o que deu certo ao tempo de Camões)
e que escrevendo páginas e páginas não mudaram nada
senão de tinta e de endereço
Mas foi dessa inspeção ao nada que aprenderam
que na poesia o nada se perde
o nada se cria
e o nada se transforma.

S.158.Sonho acordado - Ângela Bretas


Sem saber do amanhã
Sonho acordada
Piso em terrenos desconhecidos
Brinco com fogo
Sem medo de me queimar
Sem medo de errar
Sem medo de amar...
Corro perigo
Finjo não ver
Acredito em destino
E sonhando acordada
Eu aprendo a viver...
Procuro esperança
Me torno criança
Entro na dança
E obtenho prazer...
Sonho acordada
Me sinto amada
Sem medo de nada
Sem medo de ter...
Sonho acordada
Sonhos tão belos
Sonhos de paixão
Cumplicidade
Ternura que sempre quiz
Percorre meu corpo
Minh'alma
Me tráz felicidade
Me acalma ...
E me faz ser feliz!

S.157.Sonhei ser um peixe - Angela Bretas


Sonhei ser um peixe,
Livre, colorido, bonito
Eu não falava de mortes, de fome ou guerra
No silêncio da natureza, no fundo do mar eu vivia.
Por entre algas marinhas, pedras e milhares de peixes eu brincava.
Eu era prateado, uns olhos grandes, esbelto e ágil.
Amava meus amigos e Rei Netuno, com quem conversava muito.
Deslizava rápido por entre a água verde das profundezas do oceano.
Um belo dia de sol, nadando por entre as rochas, algas e ervas do mar,
vi uma apetitosa e linda minhoca,
e foi neste momento que toda a minha vida mudou.
Fui pego e colocado dentro de um aquário, um lugar horrível.
Onde apenas podia dar uma ou duas voltas.
Me senti preso sem poder nadar entre as algas.
Sem poder brincar de esconde-esconde entre as pedras.
Passei a enxergar só uma sala a minha frente.
E um gato que ficava rodeando a mesa prestes a me abocanhar.
Assim são as pessoas...
Na infância tudo é maravilhoso, há liberdade e a vida não pode ser melhor.
Já na adolescência, as pessoas são mais preocupadas com tudo.
Quando finalmente são pegas de surpresa pela fase adulta, elas vêm um mundo repleto de problemas.
Quando chega a velhice as pessoas estão sempre com medo, pois a morte está pronta para pegá-las...
Foi quando um ruído estranho me acordou.
E eu vi que eu não era mais um peixe que vivia no fundo mar, e depois foi pego...
Eu vi que era uma criatura estranha chamada ''ser humano''
Ah! como eu queria ser novamente um peixinho, que nadava por entre as algas e tinha longas conversas com o Rei Netuno!

S.156.Sonetos Antigos (1923) - Abgar Renault


I

A que amostraes nos olhos & no rosto
Maga expressão serena de tristeza,
Porque nada he de falso, ou de supposto,
De alto quebranto augmenta essa belleza.

Essa que em vosso todo tendes posto
Tam descuydosa & candida simpleza,
A meu olhar o ser vos tem composto
De outra que não humana natureza.

Respeito disso he que, senhora, o aspeito,
Tanto que a vós vos vi, tive mudado,
E o juyzo a se perder num só sujeito:

Que he o temor de querer o vosso agrado
Quem, de rudo, de mau, & de imperfeito,
Nem sequer vos merece ter fitado.

II

Co a estulticia do Amor desavisado,
Que assi me punge & asi me faz penar,
He força, alfim, por mal de meu pecado,
Não vos deixeis, Senhora, quebrantar.

He que, pezar de mi, o meu cuydado
por de tanta belleza me esquivar
Mal seguro fraqueja incontentado
Ante a brandura desse vosso olhar.

Mostrae a mi o aspeito rudo & forte;
Alheiae-vos, Senhora, á minha dor,
E tomae tento, que, mercê da Sorte,

Entregue a seu talante & desfavor,
Mais facil he vencer a Vida, & a Morte
Que hum'alma & hum coração em seu Amor.

III

Em vam apuro a minha fortitude,
Senhora, por vencer o meu Amor.
Debalde o vosso olhar, que assi me illude,
Ao meu denega o bem de seu fulgor.

Que quanto mais de vós se desilude
Meu tino vam, mais eu chego a suppor
Que tal fereza hum dia se desmude,
E que peneis tambem da mesma dor.

Mas he sem cura o mal que anda a pungir-me:
Que, si agora padece este meu ser,
Porque eu vos vejo contra mi tam firme,

O dano de querer-vos sem vos ter,
Em vos sentindo minha, ha de ferir-me
O mal de ter-vos sem vos merecer.

IV

Essa vossa serena fermosura,
Que as mostras vos empresta de huma santa,
Tanto mais a frieza vossa apura
Quanto mais a minh'alma prende & encanta.

Mostraes vossa esquivança em tal ventura,
Co hum riso feito de belleza tanta,
Que já não sabe alfim minha tristura
Se esse desdém se augmenta ou se aquebranta.

De tal sorte esquivaes, gentil Senhora,
O meu Amor, de guisa tal tecendo,
E destecendo a trama deste engano,

Que, se hei perdido huma esperança agora,
Outra virá bem cedo apparecendo,
Pera asinha volver-se em desengano.

V

Gran segurança eu hei de que a alegria,
Que fulge em vossa linda face mansa,
E em toda essa esvelteza se atavia,
Só nasce do meu mal, que já me cansa.

E bem sabeis, Senhora, que a esquivança
Com que a mi me mataes, dia por dia,
Só serve de avivar minha esperança,
Se a mais leve ilusão me caricia.

Aquebrantae alfim vosso desprezo,
Vós que tam pura sois, & tam benina;
Trazei-me hum bem, Senhora, que me alente.

Que eu não sei de tarefa de mór peso
Que essa de, com o dano da ruina,
Tentar mover huma alma indifferente.

S.155.Soneto X - Alphonsus de Guimarães


Cantem outros a clara cor virente
Do bosque em flor e a luz do dia eterno...
Envoltos nos clarões fulvos do oriente,
Cantem a primavera: eu canto o inverno.
Para muitos o imoto céu clemente
É um manto de carinho suave e terno:
Cantam a vida, e nenhum deles sente
Que decantando vai o próprio inferno.
Cantem esta mansão, onde entre prantos
Cada um espera o sepulcral punhado
De úmido pó que há de abafar-lhe os cantos...
Cada um de nós é a bússola sem norte.
Sempre o presente pior do que o passado.
Cantem outros a vida: eu canto a morte...

S.154.Soneto IX - Alphonsus de Guimarães


Encontrei-te. Era o mês... Que importa o mês? Agosto,
Setembro, outubro, maio, abril, janeiro ou março,
Brilhasse o luar que importa? ou fosse o sol já posto,
No teu olhar todo o meu sonho andava esparso.
Que saudades de amor na aurora do teu rosto!
Que horizonte de fé, no olhar tranqüilo e garço!
Nunca mais me lembrei se era no mês de agosto,
Setembro, outubro, abril, maio, janeiro, ou março.
Encontrei-te. Depois... depois tudo se some
Desfaz-se o teu olhar em nuvens de ouro e poeira.
Era o dia... Que importa o dia, um simples nome?
Ou sábado sem luz, domingo sem conforto,
Segunda, terça ou quarta, ou quinta ou sexta-feira,
Brilhasse o sol que importa? ou fosse o luar já morto?

S.153.Soneto VIII - Alphonsus de Guimarães


Ninguém anda com Deus mais do que eu ando,
Ninguém segue os seus passos como sigo.
Não bendigo a ninguém, e nem maldigo:
Tudo é morto num peito miserando.
Vejo o sol, a lua e todo o bando
Das estrelas no olímpico jazigo.
A misteriosa mão de deus o trigo
Que ela plantou aos poucos vai ceifando.
E vão-se as horas em completa calma.
Um dia (já vem longe ou já vem perto?)
Tudo que sofro e que sofri se acalma.
Ah se chegasse em breve o dia incerto!
Far-se-á luz dentro de mim, pois a minh'alma
Será trigo de Deus no céu aberto...

S.152.Soneto VII - Alphonsus de Guimarães


Cantem outros a clara cor virente
Do bosque em flor e a luz do dia eterno...
Envoltos nos clarões fulvos do oriente,
Cantem a primavera: eu canto o inverno.
Para muitos o imoto céu clemente
É um manto de carinho suave e terno:
Cantam a vida, e nenhum deles sente
Que decantando vai o próprio inferno.
Cantem esta mansão, onde entre prantos
Cada um espera o sepulcral punhado
De úmido pó que há de abafar-lhe os cantos...
Cada um de nós é a bússola sem norte.
Sempre o presente pior do que o passado.
Cantem outros a vida: eu canto a morte...

S.151.Soneto VI - Alphonsus de Guimarães


Hão de chorar por ela os cinamomos,
Murchando as flores ao tombar do dia.
Dos laranjais hão de cair os pomos,
Lembrando-se daquela que os colhia.
As estrelas dirão - "Ai! nada somos,
Pois ela se morreu silente e fria..."
E pondo os olhos nela como pomos,
Hão de chorar a irmã que lhes sorria.
A lua, que lhe foi mãe carinhosa,
Que a viu nascer e amar, há de envolvê-la
Entre lírios e pétalas de rosa.
Os meus sonhos de amor serão defuntos...
E os arcanjos dirão no azul ao vê-la,
Pensando em mim: - "Por que não vieram juntos?"

S.150.Soneto V - Alphonsus de Guimarães


Negro navio que se fez ao largo,
Velas pandas ao vento do nordeste,
Volta de novo este pesar amargo
Que foi todo consolo que me deste.
Pisando espinhos, no letal letargo
De quem segue por uma noite agreste,
Sou o cruzado que vai sobre o mar largo
Morrer de mágua, e fome, e guerra, e peste.
Não mais jasmins neste horto do meu peito.
Ouve-me tu, que ainda és uma criança;
É um sepulcro de vivos todo leito.
Tudo espero de ti, alma querida;
Mas não sabes, Senhora, que a esperança
É o maior desespero desta vida!

S.149.Soneto IV - Alphonsus de Guimarães


Quiseras ser a Laura de Petrarca
E ter o nome engrinaldado em oiro...
Sentir-te a branca, etérea, sublime arca
Adonde poisaria o amor vindoiro...
Beatriz que Dante, o sempiterno, marca
Com o gênio e do céu faz o mor tesoiro...
Natércia que Camões, vencendo a Parca,
Imortaliza pelo Tejo e Doiro...
Quiseras ser qualquer das três, ou ainda
Essa, que tem p'ra nós memória infinda,
Bucólica Marília de Dirceu...
Mas se eles eram tudo e eu não sou nada,
Nenhuma foi como tu foste amada,
Nenhum deles na terra amou como eu!

S.148.Soneto III - Alphonsus de Guimarães


Desesperanças! réquiem tumultuário
Na abandonada igreja sem altares...
A noite é branca, o esquife é solitário,
E a cova, ao longe, espreita os meus pesares.
Sinos que dobram, dobras de sudário!
No silêncio das noites tumulares
Há de surgir o espectro funerário,
Cujos olhos sem luz não tem olhares.
Santo alívio de paz, consolo pio,
Fonte clara no meio do deserto,
Manto que cobre aqueles que têm frio!
Eis-me esperando o derradeiro trono:
Que a morte vem de manso, em dia incerto,
E fecha os olhos dos que têm mais sono...

S.147.Soneto II - Alphonsus de Guimarães


Como se moço e não bem velho eu fosse,
Uma nova ilusão veio animar-me,
Na minh'alma floriu um novo carme,
O meu ser para o céu alcandorou-se.
Ouvi gritos em mim como um alarme.
E o meu olhar, outrora suave e doce,
Nas ânsias de escalar o azul, tornou-se
Todo em raios, que vinham desolar-me.
Vi-me no cimo eterno da montanha
Tentando unir ao peito a luz dos círios
Que brilhavam na paz da noite estranha.
Acordei do áureo sonho em sobressalto;
Do céu tombei ao caos dos meus martírios,
Sem saber para que subi tão alto...

S.146.Soneto I - Alphonsus de Guimarães


Mãos que os lírios invejam, mãos eleitas
Para aliviar de Cristo os sofrimentos,
Cujas veias azuis parecem feitas
Da mesma essência astral dos olhos bentos;
Mãos de sonho e de crença, mãos afeitas
A guiar do moribundo os passos lentos,
E em séculos de fé, rosas desfeitas
Em hinos sobre as torres dos conventos.
Mãos a bordar o santo Escapulário,
Que revelastes, para quem padece,
O inefável consôlo do Rosário;
Mãos ungidas no sangue da Coroa,
Deixai tombar sobre minh'alma em prece
A benção que redime e que perdoa!

S.145.Soneto do Impossível - Abgar Renault


Não ouvirás nem luz, nem sombra inquieta
das sílabas que beijam tuas asas,
nem a curva em que morre a ardente seta,
nem tanta eternidade em horas rasas.

Não medirás a bêbeda corola
que abriste no final do meu sorriso,
nem tocarás o mel que canta e rola
na insônia sem estradas onde piso.

Não saberás o céu construído a fogo,
que tua jovem chave cerra e empana,
nem os braços de espuma em que me afogo.

Não verão os teu olhos quotidiana
a minha morte de homem embebida
no flanco de ouro e luar da tua vida.

S.144.Soneto (Há um mar) - Alexel Bueno


Há um mar que ruge à minha volta, e nesta ilha
Fora das rotas, mas na noite, me encontrei
Envolto em água, envolto em treva, e já nem sei
Qual foi o barco que me trouxe, onde sua quilha.
Unicamente sobre mima lua brilha
E o mar de abismos cospe atrás, onde afundei,
Que nem enxergo nesta luz da qual sou rei
Além da noite a rocha e a lua, sua filha.
Sombra exilada que não lembra de onde veio,
Escuto ondas mais antigas que as do mar...
Que voz me chama no negror que as corta ao meio?
Aqui estou salvo, mas não quero, sonho a fera
Maior que a vida, o mar em fúria, o retornar,
Eu, rei de um povo submerso que me espera.

S.143.Soneto (Damas Antigas) - Alexei Bueno


Damas antigas estão presas nos espelhos
E as faces rotas já não vão mais à procura
Dos sonhos tênues, pois só as tenta a noite escura
Que ninguém viu passando atrás dos panos velhos.
Ela ainda está neste cristal, clarões vermelhos...
Olhando sempre hão de lembrá-la em roda impura,
A não notada àquela hora, certa e dura,
Levando os risos por vingança em seus joelhos.
Ah! moças alvas se mirando e se esquecendo,
Os dentes cessam, queima o quarto, e vai chovendo,
Mas até hoje a noite atrás ri seus infernos...
E tece colchas do que fomos, fios idos,
Desta janela às nossas mãos, lençóis puídos,
Que em seus bordados somos mortos sóis eternos.

S.142.Soneto - Alexandre O'Neill


Sonetos garantidos por dois anos.
E é muito já, leitor que mos compraste
Para encontrar a alma, que trocaste
Por rádios, frigoríficos, enganos ...
Essa tristeza sobre pernas faz-te
Temeroso e cruel e tonto e traste.
Nem pior nem melhor que outros fulanos,
Não vês a Bomba e crês nos marcianos ...
E é para ti que escrevo, é para ti
Que um verso lanço - O mão! - como o destino,
e nele ponho mesura, desatino,
Rasgo, invenção, lugar-comum, protesto?
Antes para soldado ou para resto,
Escroto de velho, ronco de suíno ...

S.141.Soneto IV - Alvares de Azevedo


Ao sol do meio-dia eu vi dormindo
Na calçada da rua um marinheiro,
Roncava a todo o pano o tal brejeiro
Do vinho nos vapores se expandindo!
Além um Espanhol eu vi sorrindo
Saboreando um cigarro feiticeiro,
Enchia de fumaça o quarto inteiro.
Parecia de gosto se esvaindo!
Mais longe estava um pobretão careca
De uma esquina lodosa no retiro
Enlevado tocando uma rabeca!
Venturosa indolência! não deliro
Se morro de preguiça.... o mais é seca!
Desta vida o que mais vale um suspiro?
Toda aquela mulher tem a pureza
Que exala o jasmineiro no perfume,
Lampeja seu olhar nos olhos negros
Como em noite d'escuro um vaga-lume.
Que suave moreno o de seu rosto!
A alma parece que seu corpo inflama
Ilude até que sobre os lábios dela
Na cor vermelha tem errante chama....
E quem dirá, meu Deus! que a lira d'alma
Ali não tem um som-nem de falsete!
E sob a imagem de aparente fogo
É frio o coração como um sorvete!

S.140.Soneto III - Alvares de Azevedo


Um mancebo no jogo se descora,
Outro bêbado passa noite e dia,
Um tolo pela valsa viveria
Um passeia a cavalo, outro namora,
Um outro que uma sina má devora
Faz das vidas alheias zombaria,
Outro toma rapé, um outro espia....
Quantos moços perdidos vejo agora!
Oh! não proíbam pois ao meu retiro
Do pensamento ao merencório luto
A fumaça gentil por que suspiro.
Numa fumaça o canto d'alma escuto. . .
Um aroma balsâmico respiro,
Oh! deixai-me fumar o meu charuto!

S.139.Soneto II - Alvares de Azevedo


Pálida, à luz da lâmpada sombria,
Sobre o leito de flores reclinada,
Como a lua por noite embalsamada,
Entre as nuvens do amor ela dormia!

Era a virgem do mar! Na escuma fria
Pela maré das águas embalada...
- Era um anjo entre nuvens d'alvorada,
Que em sonhos se banhava e se esquecia!

Era mais bela! o seio palpitando...
Negros olhos, as pálpebras abrindo...
Formas nuas no leito resvalando...

Não te rias de mim, meu anjo lindo!
Por ti - as noites eu velei chorando,
Por ti - nos sonhos morrerei sorrindo!

S.138.Soneto I - Alvares de Azevedo


Passei ontem a noite junto dela.
Do camarote a divisão se erguia
Apenas entre nós - e eu vivia
No doce alento dessa virgem bela...

Tanto amor, tanto fogo se revela
Naqueles olhos negros! Só a via!
Música mais do céu, mais harmonia
Aspirando nessa alma de donzela!

Como era doce aquele seio arfando!
Nos lábios que sorriso feiticeiro!
Daquelas horas lembro-me chorando!

Mas o que é triste e dói ao mundo inteiro
É sentir todo o seio palpitando...
Cheio de amores! E dormir solteiro!

S.137.Soneto - Alberto de Oliveira


Agora é tarde para novo rumo
Dar ao sequioso espírito; outra via
Não terei de mostrar-lhe e à fantasia
Além desta em que peno e me consumo.
Aí, de sol nascente a sol a prumo,
Deste ao declínio e ao desmaiar do dia,
Tenho ido empós do ideal que me alumia,
A lidar com o que é vão, é sonho, é fumo.
Aí me hei de ficar até cansado
Cair, inda abençoando o doce e amigo
Instrumento em que canto e a alma me encerra;
Abençoando-o por sempre andar comigo
E bem ou mal, aos versos me haver dado
Um raio do esplendor de minha terra.

S.136.Solidão estrelada - Alberto de Oliveira


Eu sou da plaga infinita
A solidão estrelada.
Homem, cuja alma se agita
Sempre inquieta e atribulada,
Que tens? que dores consomem
O teu coração que, assim,
Estacas os olhos, homem,
Prendendo-os, atento, em mim?
Invejas-me acaso? ouviste
Que posso, alma desditosa,
Tornar-me feliz, eu, triste!
Eu, solidão misteriosa!
Vem até mim! vem comigo
Estupidamente olhar
Este quadro gasto e antigo
De nuvens, de estrelas, de ar...
Vem compartir o cansaço
Que ab aeterno, sem remédio
Me faz no enfadonho espaço
Bocejar todo o meu tédio.
Como enfara o comprimento
Desta extensão que produz
Os astros no firmamento,
Nos astros a mesma luz!
E hei de até quando estender-me,
Triste, monótona e vasta,
Sem que em mim se agite o verme
Do tempo, que tudo gasta?
Solidão, silêncio enorme,
Eis tudo o que sou. Porém,
Se amas a dor que não dorme,
A dor sem limites, - vem!

S.135.Solidão - Alvares de Azevedo


Nas nuvens cor de cinza do horizonte
A lua amarelada a face embuça;
Parece que tem frio, e no seu leito
Deitou, para dormir, a carapuça.
Ergueu-se, vem da noite a vagabunda
Sem xale, sem camisa e sem mantilha,
Vem nua e bela procurar amantes;
É douda por amor da noite a filha.
As nuvens são uns frades de joelhos,
Rezam adormecendo no oratório;
Todos têm o capuz e bons narizes.
E parecem sonhar o refeitório.
As árvores prateiam-se na praia,
Qual de uma fada os mágicos retiros
O lua, as doces brisas que sussurram
Coam dos lábios teus como suspiros!
Falando ao coração que nota aérea
Deste céu, destas águas se desata?
Canta assim algum gênio adormecido
Das ondas mortas no lençol de prata?
Minha alma tenebrosa se entristece,
É muda como sala mortuária
Deito-me só e triste, e sem ter fome
Vejo na mesa a ceia solitária.
Ó lua, ó lua bela dos amores,
Se tu és moça e tens um peito amigo,
Não me deixes assim dormir solteiro,
À meia-noite vem cear comigo!

S.134.Sobre a atual vergonha de ser brasileiro - Affonso Romano Santana


"Projeto de Constituição atribuído a Capistrano de Abreu:
Art. 1º - Todo brasileiro deve ter vergonha na cara.
Parágrafo único:
Revogam-se as disposições em contrário.
"Que vergonha, meu Deus! ser brasileiro
e estar crucificado num cruzeiro
erguido num monte de corrupção.
Antes nos matavam de porrada e choque
nas celas da subversão. Agora
nos matam de vergonha e fome
exibindo estatísticas na mão
Estão zombando de mim. Não acredito.
Debocham a viva voz e por escrito.
É abrir jornal, lá vem desgosto.
Cada notícia
- é um vídeo-tapa no rosto.
Cada vez é mais difícil ser brasileiro.
Cada vez é mais difícil ser cavalo
desse Exu perverso
- nesse desgovernado terreiro.
Nunca te vi tamanho abuso.
Estou confuso, obtuso,
com a razão em parafuso:
a honestidade saiu de moda,
a honra caiu de uso.
De hora em hora
a coisa piora:
arruinado o passado,
comprometido o presente,
vai-se o futuro à penhora.
Me lembra antiga história
daquele índio Atahualpa
ante Pizarro - o invasor,
enchendo de ouro a balança
com a ilusão de o seduzir
e conquistar seu amor.
Este é um país esquisito:
onde o ministro se demite
negando a demissão
e os discursos são inflados
pelos ventos da inflação.
Valei-nos Santo Cabral
nessa avessa calmaria
em forma de recessão
e na tempestade da fome
ensinai-me
- a navegação.
Este é o país do diz e do desdiz,
onde o dito é desmentido
no mesmo instante em que é dito.
Não há lingüistica e erudito
que apure o sentido inscrito
nesse discurso invertido.Aqui
o dito é o não-dito
e já ninguém pergunta
se será o Benedito Aqui
o discurso se trunca:
o sim é não,
o não, talvez,
o talvez,
- nunca.
Eis o sinal dos tempos:
este é o país produtor
que tanto mais produz
tanto mais é devedor.
Um país exportador
que quanto mais exporta
mais importante se torna
como país
- mau pagador.
E, no entanto, há quem julgue
que somos um bloco alegre
do "Comigo Ninguém Pode",
quando somos um país de cornos mansos
cuja história vai ser bode.
Dar bode, já que nunca deu bolo,
tão prometido pros pobres
em meio a festas e alarde,
onde quem partiu, repartiu,
ficou com a maior parte
deixando pobre o Brasil.
Eis uma situação
totalmente pervertida:
- uma nação que é rica
consegue ficar falida,
- o ouro brota em nosso peito,
mas mendigamos com a mão,
- uma nação encarcerada
doa a chave ao carcereiro
para ficar na prisão.
Cada povo tem o governo que merece?
Ou cada povo
tem os ladrões que a enriquece?
Cada povo tem os ricos que o enobrecem?
Ou cada povo tem os pulhas
que o empobrecem?
O fato é que cada vez mais
mais se entristece esse povo
num rosário de contas e promessas,
num sobe e desce
- de pranto e preces
Ce n'est pas un pays sérieux!
já dizia o general.
O que somos afinal?
Um país pererê? folclórico?
tropical? misturando morte
e carnaval?
- Um povo de degradados?
- FIlhos de degredados
largados no litoral?
- Um povo-macunaíma
sem caráter nacional?
Ou somos um conto de fardas
um engano fabuloso
narrado a um menino bobo,
- história de chapeuzinho
já na barriga do lobo?
Por que só nos contos de fada
os pobres fracos vencem os ricos ogres?
Por que os ricos dos países pobres
são pobre perto dos ricos
dos países ricos? Por que
os pobres ricos dos países pobres
não se aliam aos pobres dos países pobres
para enfrentar os ricos dos países ricos,
cada vez mais ricos,
mesmo quando investem nos países pobres?
Espelho, espelho meu!
há um país mais perdido que o meu?
Espelho, espelho meu!
há um governo mais omisso que o meu?
Espelho, espelho meu!
há um povo mais passivo que o meu?
E o espelho respondeu
algo que se perdeu
entre o inferno que padeço
e o desencanto do céu.

S.133.Sinto - Alexandre Bairos de Medeiros


A dor é falta da pele
Que me cobria.

Saudade é o que se sente da dor
Que me cala.

Viveria sem rir da dor
Que me ladra

Mas choro o amor
que não me maltrata.

S.132.Sinos - Alphonsus de Guimarães


Escuto ainda a voz dos campanários
Entre aromas de rosas e açucenas,
Vozes de sinos pelos santuários,
Enchendo as grandes vastidões serenas...
E seguindo outros seres solitários
Retomo velhos quadros, velhas cenas,
Rezando as orações dos Septenários,
Dos Ofícios, dos Terços, das Novenas...
A morte que nos salva não nos priva
De ir ao pé de um sacrário abandonado
Chorar, como inda faz a alma cativa!
Ó sinos dolorosos e plangentes,
Cantai como cantáveis no passado,
Dizendo a mesma fé que salva os crentes!

S.131.Simplesmente Ziraldo - Ângela Bretas


"(...) eu faço um livro cúmplice,
eu não faço um livro adulto
dizendo a criança como ela deve ser.
Eu faço um livro como se eu também fosse um menino - Ziraldo "
Fundador de 'O Pasquim', criador da 'Turma do Pererê' e escritor do best-seller 'O menino Maluquinho' concede entrevista exclusiva aos imigrantes brasileiros nos EUA, dá dicas aos escritores, pais e educadores.
Com aquele jeito calmo e manso de todo bom mineiro, o escritor, jornalista, caricaturista, pintor, desenhista, teatrólogo e cartunista Ziraldo, recebeu crianças e adultos na 15ª Feira Internacional do Livro realizada em Miami, Flórida - Estados Unidos da América.
Ziraldo, em plena ditadura militar (1964-1984], juntamente com Paulo Francis, Millôr e Jaguar, criaram O Pasquim, um jornal irreverente, não-conformista, de cunho político, jocoso e crítico; o que custou aos mesmos exílio, interrogatórios, perseguições e cadeia.
Todavia, Ziraldo é daquelas pessoas que não se deixam abater. Escritor predestinado, idealista ao extremo, sua fama e sucesso era uma questão de tempo, e o tempo como remediador que é, provou que o talento de Ziraldo iria ultrapassar barreiras impostas pela ditadura, e que seu nome iria continuar filgurando entre os grandes da literatura brasileira.
Quem não se lembra ainda da "Turma do Pererê" ? Ziraldo foi o criador desta revista em quadrinhos, que circulou em território nacional nos anos 60. Vale mencionar que esta foi a primeira revista em quadrinhos brasileira a ser feita por um só autor - textos e desenhos.
Ziraldo lançou seu primeiro livro infantil 'FLICTS' em 1969, sucesso mundial. A partir de 1979 direcionou seu talento de escritor e seu dom de desenhista para as crianças, lançando 'O Menino Maluquinho" tendo obtido a casa de 1,8 milhão de exemplares vendidos; o sucesso do Menino Maluquinho deu-se pela imagem de um personagem que se identifica com as crianças. Através de uma estratégia de marketing e da aceitação do público infantil, transformou-se em CD, peça teatral, filme e foi traduzido para cinco diferentes idiomas.
Pessoa simples, com sorriso largo e cordial, Ziraldo concedeu esta entrevista exclusiva, em um clima descontraido e alegre.
AB: Ziraldo este é o seu nome verdadeiro? Onde você nasceu?
Ziraldo: Sim , meu nome de batismo é Ziraldo Alves Pinto, sou de Caratinga, Minas Gerais.
AB: Como é para você,um escritor de renome, não só no Brasil, estar expondo ao público de Miami seu trabalho? Aqui as miscigenações étnicas são diversificadas, sabe-se portanto que não é somente os brasileiros que se encontram nos EUA que terão acesso à seus livros, mas também os latinos e americanos.
Ziraldo: Para qualquer escritor, poder expor seus trabalhos em uma feira internacional como esta é um privilégio. Estou muito feliz com a oportunidade. Mas, para ser sincero a receptividade do público brasileiro não foi como esperava, achei que talvez por estarmos fora do Brasil, os pais brasileiros das muitas crianças que residem aqui, procurassem desenvolver mais a cultura e a língua portuguesa em seus filhos...
Informo ainda para os que não sabem, que agora, através da Brazilian Books, todos os imigrantes podem adquirir não só os meus livros, como todos os livros de autores brasileiros, para que seus filhos não percam o contato com o Brasil.
Eu vim para este evento divulgar esta nova opção, só que acho que pouca gente respondeu aos anúncios. Gostaria de novamente frisar que se é possivel adquirir em casa através da Internet qualquer livro em português,e é muito importante que a leitura esteja sempre presente dentro do lar.
AB: Muitos autores tornam-se famosos atingindo um público adulto. No seu caso, o seu sucesso maior foi conseguido através da literatura infanto juvenil. Como conseguiu esta façanha?
Ziraldo: Eu acho que eu faço um livro cúmplice, eu não faço um livro adulto dizendo a criança como ela deve ser. Eu faço um livro como se eu também fosse um menino, então a criança se identifica com o personagem... E é assim que se deve escrever a crianças, colocando-se no lugar deles.
AB: Um conselho para os imigrantes brasileiros nos EUA?
Ziraldo: O pessoal tem que saber, que se seus filhos são os reis do computadores e os reis do video-game, eles vão ser sempre o rei do computador e do video-game. Todavia, quem vai mandar neles é o cara que estiver bem informado, pois tudo que realmente é importante está escrito, a leitura é fundamental para a sobrevivência da gente; então o nosso trabalho como pais e cidadões é de incubir nas crianças o hábito da leitura.
AB: Para finalizar, qual seria sua mensagem principal?
Ziraldo: Ler é mais importante do que estudar, ler é mais importante que tudo, faça com que livros cheguem às mãos de seus filhos!
Agradeço pela oportunidade de levar minha palavra aos jornais em língua portuguesa, editados e publicados nos Estados Unidos.
O autor, que se disse encantado pela cidade de Miami, após a entrevista, distribuiu autógrafos e posou para fotos, com várias crianças de diversas nacionalidades, que compareceram na ''International Book Fair of Miami" (Feira Internacional do Livro de Miami).

S.130.Silêncio amoroso I - Affonso Romano Santana


Deixa que eu te ame em silêncio
Não pergunte, não se explique, deixe
que nossas línguas se toques, e as bocas
e a pele
falem seus líquidos desejos.
Deixa que eu te ame sem palavras
a não ser aquelas que na lembrança ficarão
pulsando para sempre
como se o amor e a vida
fosse um discurso
de impronunciáveis emoções.

S.129.Sexta-Feira 13 - Ângela Bretas


Como pode ser? É sexta-feira, final de semana e o dia amanhece gripado, espirrando trovões? E os planos para ficar torrando no sol tal qual uma galinha de rodízio?
Com preguiça, espreguiça-se na cama. Com dedos de não me toque, relutante, tenta afastar a cortina cor-de-rosa teimosa, que insiste em querer esconder o dia. Rapidamente, enfia a cabeça debaixo das cobertas e se arrepende da descoberta.
O dia cinzento não combinava com a cortina cor-de-rosa em plena sexta-feira. O dia catarrento não prometia um bronzeado dourado...
Culpa sua insistência, em querer saber se os espirros escutados, eram mesmo um aviso que o dia seria doente. Deveria ter ligado um som bem alto, alegre e despojado, e ter ficado presa entre as paredes brancas com toques cor-de-rosa; sonhando que lá fora o dia estava apenas ensaiando passos, para a contradança com a noite colorida.
Tropeçando na manhã mal acordada, acometida pela desesperança de um dia brilhante, levanta cuspindo raios... Raios!
Percorre o trajeto cama-banheiro imaginando um banho bem quente. Recorre ao chuveiro, e este matreiro, despeja água fria. Que fria!
Tateia em busca da toalha amarela, que ela sempre deixou ao alcance dos dedos cegos, mas não a encontra. Com o corpo pingando em arrepios, dá o primeiro passo e vai de encontro ao chão... sabão! Entre trancos e barrancos, levanta-se. Encontra a toalha amarela e esfrega zangada o corpo molhado e descorado.
Encaminha-se para a cozinha, tenta achar o café, com dó, constata que acabou o pó!
Liga a TV, e o aparelho que tudo vê, anuncia que o mar não está para peixe. "Deixe seus planos para depois" avisa o locutor, com pose de doutor.
Não acredita naquela premonição! Retorna até a cortina cor-de-rosa, e com os dedos em ação, abre a janela.
A visão das nuvens, brincando de esconde-esconde com o sol desmilinguido, não lembra uma sexta-feira. O locutor, com pose de doutor, estava certo: o mar não estava para peixe, nem o dia para torrar no sol como uma galinha de rodízio. Não obteria a cor de canela numa manhã como aquela...
O dia, com um sorriso sarcástico, penetra em rajadas de vento pela ventana da janela, dando-lhe uma bofetada na cara e revira a folhinha do calendário lendário pendurado na parede.
Pasma, descobre que aquela era uma manhã de sexta-feira 13.

S.128.Seus olhos - Almeida Garret


Seus olhos - se eu sei pintar
O que os meus olhos cegou -
Não tinham luz de brilhar.
Era chama de queimar;
E o fogo que a ateou
Vivaz, eterno, divino,
Como facho do Destino.
Divino, eterno! - e suave
Ao mesmo tempo: mas grave
E de tão fatal poder,
Que, num só momento que a vi,
Queimar toda alma senti...
Nem ficou mais de meu ser,
Senão a cinza em que ardi.

S.127.Serpentes voadoras - André Motta


Somos serpentes
quando nos enroscamos
nestes frágeis sustentos
de nosso louco amor
Rastejando por entre covas
covís de nossa covardia
diante deste mundo intolerante
Quando como eguias
bailamos hipnóticas
numa profusão de medo e
fascíneo
Perante esta platéia
de circo que ainda nos vê como feras
feríneas
ofídeas assassinas
E nos matam
pobres criaturas
"mas perdoai-os Pai
eles não sabem o que
fazem..."
(E por mim tudo bem
já que ressuscitaremos
no terceiro dia!)

S.126.Separação - Affonso Romano Santana


Desmontar a casa
e o amor. Despregar
os sentimentos das paredes e lençóis.
Recolher as cortinas
após a tempestade
das conversas.
O amor não resistiu
às balas, pragas, flores
e corpos de intermeio.
Empilhar livros, quadros,
discos e remorsos.
Esperar o infernal
juizo final do desamor.
Vizinhos se assustam de manhã
ante os destroços junto à porta:
-pareciam se amar tanto!
Houve um tempo:
uma casa de campo,
fotos em Veneza,
um tempo em que sorridente
o amor aglutinava festas e jantares.
Amou-se um certo modo de despir-se
de pentear-se.
Amou-se um sorriso e um certo
modo de botar a mesa. Amou-se
um certo modo de amar.
No entanto, o amor bate em retirada
com suas roupas amassadas, tropas de insultos
malas desesperadas, soluços embargados.
Faltou amor no amor?
Gastou-se o amor no amor?
Fartou-se o amor?
No quarto dos filhos
outra derrota à vista:
bonecos e brinquedos pendem
numa colagem de afetos natimortos.
O amor ruiu e tem pressa de ir embora
envergonhado.
Erguerá outra casa, o amor?
Escolherá objetos, morará na praia?
Viajará na neve e na neblina?
Tonto, perplexo, sem rumo
um corpo sai porta afora
com pedaços de passado na cabeça
e um impreciso futuro.
No peito o coração pesa
mais que uma mala de chumbo.

S.125.Sentimentos - Andréa Borba Pinheiro


Se fosse fácil esquecer,
te esqueceria agora!
Talvez não fosse fácil o fazer,
mas de um jeito ou de outro,
te mandaria embora...

Chegamos a tal ponto,
que não suportavas me olhar,
e eu, não muito diferente,
tentava não falar.

Por mais lindo que possa ter sido,
é passado, deixe esquecido.
Não toque mais em mim,
deixe meu peito ferido!

Nada melhor que o tempo...
Não se preocupe, será lento...
Devagar, devagarinho,
momento por momento,
para derramar meu pranto !

E por fim, entender a situação.
E para meu contentamento,
esquecer-te sem nenhuma complicação,
e em vão queimar dentro de nós,
as cinzas dos sentimentos.

S.124.Sem voce - Ana Cristina César


Sem você bem que sou lago, montanha.
Penso num homem chamado Herberto.
Me deito a fumar debaixo da janela.
Respiro com vertigem. Rolo no colchão.
E sem bravata, coração, aumenta o preço.

S.123.Sem limites - Ângela Bretas


Por um momento
meu corpo foi tua morada,
teu pedaço de paraíso,
fonte da juventude, pura de prazer,
sem limites...
Por um momento
teu corpo foi meu refúgio,
meu palmo de inferno,
poço de desejos recebidos
sem limites...
Por um momento
nossos corpos
ultrapassaram conceitos,
navegamos em ondas explícitas
sem limites...
Por um momento
desfeitos de emoções
refeitos de carinhos
satisfeitos
bebemos desta fonte
mergulhamos neste poço
descobrimos néctares
sem limites...

S.122.Sem enfeite nenhum - Adélia Prado


A mãe era desse jeito: só ia em missa das cinco, por causa de os gatos no escuro serem pardos. Cinema, só uma vez, quando passou os Milagres do padre Antônio em Urucânia. Desde aí, falava sempre, excitada nos olhos, apressada no cacoete dela de enrolar um cacho de cabelo: se eu fosse lá, quem sabe?
Sofria palpitação e tonteira, lembro dela caindo na beira do tanque, o vulto dobrado em arco, gente afobada em volta, cheiro de alcanfor.
Quando comecei a empinar as blusas com o estufadinho dos peitos, o pai chegou pra almoçar, estudando terreno, e anunciou com a voz que fazia nessas ocasiões, meio saliente: companheiro meu tá vendendo um relogim que é uma gracinha, pulseirinha de crom', danado de bom pra do Carmo. Ela foi logo emendando: tristeza, relógio de pulso e vestido de bolér. Nem bolero ela falou direito de tanta antipatia. Foi água na fervura minha e do pai.
Vivia repetindo que era graça de Deus se a gente fosse tudo pra um convento e várias vezes por dia era isto: meu Jesus, misericórdia... A senhora tá triste, mãe? eu falava. Não, tou só pedindo a Deus pra ter dó de nós.
Tinha muito medo da morte repentina e pra se livrar dela, fazia as nove primeiras sextas-feiras, emendadas. De defunto não tinha medo, só de gente viva, conforme dizia. Agora, da perdição eterna, tinha horror, pra ela e pros outros.
Quando a Ricardina começou a morrer, no Beco atrás da nossa casa, ela me chamou com a voz alterada: vai lá, a Ricardina tá morrendo, coitada, que Deus perdoe ela, corre lá, quem sabe ainda dá tempo de chamar o padre, falava de arranco, querendo chorar, apavorada: que Deus perdoe ela, ficou falando sem coragem de aluir do lugar.
Mas a Ricardina era de impressionar mesmo, imagina que falou pra mãe, uma vez, que não podia ver nem cueca de homem que ela ficava doida. Foi mais por isso que ela ficou daquele jeito, rezando pra salvação da alma da Ricardina.
Era a mulher mais difícil a mãe. Difícil, assim, de ser agradada. Gostava que eu tirasse só dez e primeiro lugar. Pra essas coisas não poupava, era pasta de primeira, caixa com doze lápis e uniforme mandado plissar. Acho mesmo que meia razão ela teve no caso do relógio, luxo bobo, pra quem só tinha um vestido de sair.
Rodeava a gente estudar e um dia falou abrupto, por causa do esforço de vencer a vergonha: me dá seus lápis de cor. Foi falando e colorindo laranjado, uma rosa geométrica: cê põe muita força no lápis, se eu tivesse seu tempo, ninguém na escola me passava, inteligência não é estudar, por exemplo falar você em vez de cê, é tão mais bonito, é só acostumar. Quando o coração da gente dispara e a gente fala cortado, era desse jeito que tava a voz da mãe.
Achava estudo a coisa mais fina e inteligente era mesmo, demais até, pensava com a maior rapidez. Gostava de ler de noite, em voz alta, com tia Santa, os livros da Pia Biblioteca, e de um não esqueci, pois ela insistia com gosto no titulo dele, em latim: Máguina pecatrís. Falava era antusiasmo e nunca tive coragem de corrigir, porque toda vez que tava muito alegre, feito naquela hora, desenhando, feito no dia de noite, o pai fazendo serão, ela falou: coitado, até essa hora no serviço pesado.
Não estava gostando nem um pouquinho do desenho, mas nem que eu falava. Com tanta satisfação ela passava o lápis, que eu fiquei foi aflita, como sempre que uma coisa boa acontecia.
Bom também era ver ela passando creme Marsílea no rosto e Antissardina n° 3, se sacudindo de rir depois, com a cara toda empolada. Sua mãe é bonita, me falaram na escola. E era mesmo, o olho meio verde.
Tinha um vestido de seda branco e preto e um mantô cinzentado que ela gostava demais.
Dia ruim foi quando o pai entestou de dar um par de sapato pra ela. Foi três vezes na loja e ela botando defeito, achando o modelo jeca, a cor regalada, achando aquilo uma desgraça e que o pai tinha era umas bobagens. Foi até ele enfezar e arrebentar com o trem, de tanta raiva e mágoa.
Mas sapato é sapato, pior foi com o crucifixo. O pai, voltando de cumprir promessa em Congonhas do Campo, trouxe de presente pra ela um crucifixo torneadinho, o cordão de pendurar, com bambolim nas pontas, a maior gracinha. Ela desembrulhou e falou assim: bonito, mas eu preferia mais se fosse uma cruz simples, sem enfeite nenhum.
Morreu sem fazer trinta e cinco anos, da morte mais agoniada, encomendando com a maior coragem: a oração dos agonizantes, reza aí pra mim, gente.
Fiquei hipnotizada, olhando a mãe. Já no caixão, tinha a cara severa de quem sente dor forte, igualzinho no dia que o João Antônio nasceu. Entrei no quarto querendo festejar e falei sem graça: a cara da senhora, parece que tá com raiva, mãe.
O Senhor te abençoe e te guarde,
Volva a ti o Seu Rosto e se compadeça de ti,
O Senhor te dê a Paz.
Esta é a bênção de São Francisco, que foi abrandando o rosto dela, descansando, descansando, até como ficou, quase entusiasmado.
Era raiva não. Era marca de dor.

S.121.Sedução - Adélia Prado


A poesia me pega com sua roda dentada,
me força a escutar imóvel
o seu discurso esdrúxulo.
Me abraça detrás do muro, levanta
a saia pra eu ver, amorosa e doida.
Acontece a má coisa, eu lhe digo,
também sou filho de Deus,
me deixa desesperar.
Ela responde passando
a língua quente em meu pescoço,
fala pau pra me acalmar,
fala pedra, geometria,
se descuida e fica meiga,
aproveito pra me safar.
Eu corro ela corre mais,
eu grito ela grita mais,
sete demônios mais forte.
Me pega a ponta do pé
e vem até na cabeça,
fazendo sulcos profundos.
É de ferro a roda dentada dela.

S.120.Se pelo menos - Andréa Borba Pinheiro


Se pelo menos eu pudesse estar ao teu lado,
se pelo menos eu pudesse te beijar,
se pelo menos meu peito ficasse calado,
e não começasse a, desesperado, chorar...
Se pelo menos eu te abraçasse,
se pelo menos eu pudesse fazê-lo,
se pelo menos você me olhasse,
e não me enchesse desse falso zelo...
Se pelo menos você me beijasse,
se pelo menos fizesse idéia do quanto te amo,
se pelo menos você ouvisse,
quando eu te chamo...
Se pelo menos você fosse menos cabeça-dura...
E soubesse reconhecer meus sentimentos,
Eu seria sua, totalmente pura...
Sem medos, nem anseios, nem constrangimentos.
Se pelo menos eu pudesse te conquistar,
Fazer você me enxergar com os olhos do coração,
Não escreveria essa poesia,
Nem choraria toda noite, deitada no colchão.
Se pelo menos você me amasse.
Se pelo menos me amasse...
Amor...
Eu seria sua... pura, nua e crua...
Toda sua.

S.119.Se me perguntares - Andréa Borba Pinheiro


Se me perguntares se amei,
direi que sim!
Acreditava que pudesse dar certo,
não enxergava o fim.

Se me perguntares se odiei,
direi que não.
Teus lábios beijei, teu sentimento toquei.
Detestaria machucar-te, não sou sem coração.

Se me perguntares se gostei,
direi que sim.
Não foi "eterno, posto que é chama",
mas foi "infinito enquanto durou".

Se me perguntares se ainda quero,
digo que não.
Pois o coração é cego,
mas o meu orgulho não!

S.118.Se eu morresse amanha - Alvares de Azevedo


Se eu morresse amanhã, viria ao menos
Fechar meus olhos minha triste irmã;
Minha mãe de saudades morreria
Se eu morresse amanhã!
Quanta glória pressinto em meu futuro!
Que aurora de porvir e que manhã!
Eu perdera chorando essas coroas
Se eu morresse amanhã!
Que sol! que céu azul! que dove n'alva
Acorda a natureza mais loucã!
Não me batera tanto amor no peito
Se eu morresse amanhã!
Mas essa dor da vida que devora
A ânsia de glória, o dolorido afã...
A dor no peito emudecera ao menos
Se eu morresse amanhã!

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

S.117.Santa - Ana Paula Pedro


Afundar sobre a quente névoa de tuas ruas
Soprar como vento em constante persistência das horas
Lambuzar-me em tuas densas águas agridoces
Escalar as falésias de tua incoerente geografia
Renascer como oásis de teus secretos redutos
Esquecer de vez o deserto que há em mim
Cobrir a memória com o tênue lençol de algodão

S.116.Saber - Angela Bretas


Saber que ao amanhecer
estarás a meu lado
me faz feliz...
Saber que durante o dia
tem alguém a pensar em mim,
me conforta...
Saber que ao entardecer
estará chegando a hora de ficar junto a você
faz com que meu coração acelere...
Saber que a noite seu corpo
estará unido ao meu,
me faz um bem enorme...
... E é o que me dá força para a vida que temos pela frente...

P.125.Pulchra Ut Luna - Alphonsus de Guimarães


Pulchra Ut Luna
II
Celeste... É assim, divina, que te chamas.
Belo nome tu tens, Dona Celeste...
Que outro terias entre humanas damas,
Tu que embora na terra do céu vieste?
Celeste... E como tu és do céu não amas:
Forma imortal que o espírito reveste
De luz, não temes sol, não temes chamas,
Porque és sol, porque és luar, sendo celeste.
Incoercível como a melancolia,
Andas em tudo: o sol no poente vasto
Pede-te a mágoa do findar do dia.
E a lua, em meio à noite constelada,
Pede-te o luar indefinido e casto
Da tua palidez de hóstia sagrada.

P.124.Primeira chuva no deserto - Ana Paula Pedro


Fecho os olhos e imagino a primeira chuva no deserto. Vejo-te sentado no estreito balcão, mudo, olhos vidrados no trajeto de cada gota. Fico ao teu lado observando esta imprevista chuva e após alguns instantes atiro-me nos úmidos braços celestiais; deixo a chuva lavar minha alma e meu corpo, entrego-me às surpresas do deserto, refaço-me inteira. Quando volto meu olhar para ti, vejo que, assim como o deserto, tu também estás a chover. Lágrimas que parecem não ter fim. Não me apiedo de ti, o tempo por vezes parece demasiadamente curto, a eternidade se encerra em um segundo, a vida por vezes é urgente.
Precipito meus braços em tua direção. Observo teu lento caminhar e quando finalmente estás diante de mim, dançamos ao som dos estalos do encontro da água com a areia... esfoliando nossas almas das dores da vida, vimos um novo dia raiar, dançando juntos a música que nos habita.

P.123.Presentes de natal - Angela Bretas


"Presentes de Natal São pequenas as horas São muitos os minutos São imensos os segundos Horas de esperas Minutos de expectativas Segundos de ansiedades Ansiedades de saber Saber se ganho ou não Expectativas de conhecer Conhecer o que terei nas mãos Vontade de descobrir Descobrir se gosto ou não E assim poder abrir Com carinho Um por um Presentes dados Com amor E recebidos Com emoção No final Mais um Natal se acaba As luzes se apagam Os pacotes espalhados pelo chão Fica apenas a certeza De que a espera não foi em vão E a alegria de ter ... um presente em minhas mãos! "

P.122.Prelúdio - Alda Lara


(para Lídia, minha velha ama negra)

Pela estrada desce a noite
Mãe-Negra desce com ela.
Nem buganvílias vermelhas,
nem vestidinhos de folhos,
nem brincadeiras de guizos
nas suas mãos apertadas...
Só duas lágrimas grossas,
em duas faces cansadas.
Mãe-Negra tem voz de vento,
voz de silêncio batendo
nas folhas do cajueiro...
tem voz de noite descendo
de mansinho pela estrada.
... Que é feito desses meninos
que gostava de embalar?
Que é feito desses meninos
que ela ajudou a criar?
Quem ouve agora as histórias
que costumava contar?...
Mãe-Negra não sabe nada.
Mas ai de quem sabe tudo,
como eu sei tudo,
Mãe-Negra...
É que os meninos cresceram,
e esqueceram
as histórias
que costumavas contar...
Muitos partiram pra longe,
quem sabe se hão de voltar!...
Só tu ficaste esperando,
mãos cruzadas no regaços,
bem quieta, bem calada...
É tua a voz deste vento,
desta saudade descendo
de mansinho pela estrada...

P.121.Preciso de alguem - Andréa Borba Pinheiro


Queria tanto ter alguém do meu lado,
que me abraçasse, me beijasse,
que não me deixasse nesse estado.
Que me protegesse e, se eu caísse, que me levantasse.
Alguém para conversar,
e fugir do silêncio do meu quarto.
Alguém que não me deixasse chorar,
que me amasse de fato...
Que sussurrasse tudo que gosto de ouvir,
bem baixinho, para só a minha alma sentir,
para só os meus olhos fechar,
e só o meu sono embalar.
Alguém que me desse o carinho que tanto anseio encontrar,
que me deixasse no meu cantinho, caso eu não quisesse falar.
Alguém que aquecesse o meu inverno,
e refrescasse o meu verão...
Será que esse alguém, vou achar?

P.120.Prece solitária - Angela Bretas


Venho através desta prece solitária
Pedir do fundo do coração
Que o mundo de forma humanitária
Possa encontrar uma espécie de união
Rogo aos ventos e aos mares
Imploro às matas e às florestas
Peço aos animais e aos ares
Que o mundo amanheça em festa
Escuta esta prece de quem te venera
Oh natureza divina
Ensine aos homens o valor da vida
Oh natureza rainha
Use a força de teus sagrados raios e chuvas
Alegre os céus com teus pássaros e cores
Perfume o mundo com tuas flores
Oh natureza infinita
Mostre aos homens
Que a vida é sublime
Que cada dia é único
Que para ser feliz basta estarmos vivos
E que o tempo passa
Levando com ele
A cada dia
Sonhos, amores e, desarmonia
Oh natureza em cores
Renove nos homens
A esperança de novos sonhos
A fé de um novo amor
Oh natureza
Ensina também
Que a certeza de uma nova vida
Se faz evidente, presente
A cada início de um novo dia
E que o mundo acorde em paz...
Amém !

P.119.Prece de um minuto - Angela Bretas


No primeiro minuto do Novo Ano,
Vou olhar firmamente à primeira estrela do céu
E fazer uma prece...
Vou pedir para que bombas parem de explodir
E que não haja fronteiras entre os povos...
Vou direcionar meu pensamento para um mundo de paz
Sem violência... terrorismo...
Vou implorar para que acabe a discórdia
E que a concordância prevaleça...
Vou clamar aos anjos e santos
E rogar por harmonia... piedade...
Piedade aos famintos...
Piedade às pessoas pobres de espírito...
Piedade aos que acreditam na violência...
Piedade aos perversos...
Piedade à humanidade carente... doente... sofrida...
Vou elevar meus desejos com fé
E acreditar que a fé remove montanhas, aniquila o mau,
acaba com a guerra...
Vou olhar firmamente à primeira estrela do céu
Neste primeiro minuto do Novo Ano
Vou sucumbir a meus apelos pessoais
Não quero querer só para mim
Quero dividir a alegria de saber que o amanhã promete...
Quero acreditar que as futuras gerações
encontrarão um mundo estruturado...
Quero usar o poder de minha mente positivamente... e crer...
Crer serenamente... confiantemente...
Na virada do Novo Ano vou elevar meus desejos
Em uma prece de um minuto
Vou olhar à primeira estrela do céu
e suplicar por um mundo melhor
Para todos nós...!

P.118.Pré-texto para Cassiano Ricardo - Adailton Medeiros


Amanhã o bom dia
na difícil manhã
chão romã
clã reipã
no reVerSo SIGno
EU mEU poemachão
poemapa poemassa
fada fica
riso rico
falo fala
sobre / vivEntes e
ternos amigos do
peito ó Jeremias
sem choro
nem velas
canto RICo ARDOr
sabiá-do-rosa-mente

P.117.Pranto para Comover Jonathan - Adélia Prado


Os diamantes são indestrutíveis?
Mais é meu amor.
O mar é imenso?
Meu amor é maior,
mais belo sem ornamentos
do que um campo de flores.
Mais triste do que a morte,
mais desesperançado
do que a onda batendo no rochedo,
mais tenaz que o rochedo.
Ama e nem sabe mais o que ama.

P.116.Posteridade - Affonso Romano Santana


Eles vão nos achar ridículos, os pósteros.
Nos examinarão
com extrema curiosidade
e um tardio afeto.
Mas vão nos achar ridículos, os pósteros.
Olhado de lá
tudo aqui
será mais claro
para eles
que nos verão
inteiramente diversos
do que somos,
bem mais exóticos
do que somos.
- Como esses primitivos
ousavam se chamar modernos?
Farão simpósios, debaterão
e chegarão a bizzaras conclusões.
Assim entraremos para a história deles
como outros para a nossa entraram:
não como o que somos
mas como reflexo de uma reflexão.

P.115.Porta do colégio - Affonso Romano Santana


Passando pela porta de um colégio, me veio uma sensação nítida de que aquilo era a porta da própria vida. Banal, direis. Mas a sensação era tocante. Por isto, parei, como se precisasse ver melhor o que via e previa.
Primeiro há uma diferença de clima entre aquele bando de adolescentes espalhados pela calçada, sentados sobre carros, em torno de carrocinhas de doces e refrigerantes, e aqueles que transitam pela rua. Não é só o uniforme. Não é só a idade. É toda uma atmosfera, como se estivessem ainda dentro de uma redoma ou aquário, numa bolha, resguardados do mundo. Talvez não estejam. Vários já sofreram a pancada da separação dos pais. Aprenderam que a vida é também um exercício de separação. Um ou outro já transou droga, e com isto deve ter se sentido (equivocadamente) muito adulto. Mas há uma sensação de pureza angelical misturada com palpitação sexual, que se exibe nos gestos sedutores dos adolescentes. Ouvem-se gritos e risos cruzando a rua. Aqui e ali um casal de colegiais, abraçados, completamente dedicados ao beijo. Beijar em público: um dos ritos de quem assume o corpo e a idade. Treino para beijar o namorado na frente dos pais e da vida, como quem diz: também tenho desejos, veja como sei deslizar carícias.
Onde estarão esses meninos e meninas dentro de dez ou vinte anos?
Aquele ali, moreno, de cabelos longos corridos, que parece gostar de esportes, vai se interessar pela informática ou economia; aquela de cabelos loiros e crespos vai ser dona de butique; aquela morena de cabelos lisos quer ser médica; a gorduchinha vai acabar casando com um gerente de multinacional; aquela esguia, meio bailarina, achará um diplomata. Algumas estudarão Letras, se casarão, largarão tudo e passarão parte do dia levando filhos à praia e praça e pegando-os de novo à tardinha no colégio. Sim, aquela quer ser professora de ginástica. Mas nem todos têm certeza sobre o que serão. Na hora do vestibular resolvem. Têm tempo. É isso. Têm tempo. Estão na porta da vida e podem brincar.
Aquela menina morena magrinha, com aparelho nos dentes, ainda vai engordar e ouvir muito elogio às suas pernas. Aquela de rabo-de-cavalo, dentro de dez anos se apaixonará por um homem casado. Não saberá exatamente como tudo começou. De repente, percebeu que o estava esperando no lugar onde passava na praia. E o dia em que foi com ele ao motel pela primeira vez ficará vivo na memória.
É desagradável, mas aquele ali dará um desfalque na empresa em que será gerente. O outro irá fazer doutorado no exterior, se casará com estrangeira, descasará, deixará lá um filho - remorso constante. Às vezes lhe mandará passagens para passar o Natal com a família brasileira.
A turma já perdeu um colega num desastre de carro. É terrível, mas provavelmente um outro ficará pelas rodovias. Aquele que vai tocar rock vários anos até arranjar um emprego em repartição pública. O homossexualismo despontará mais tarde naquele outro, espantosamente, logo nele que é já um don juan. Tão desinibido aquele, acabará líder comunitário e talvez político. Daqui a dez anos os outros dirão: ele sempre teve jeito, não lembra aquela mania de reunião e diretório?
Aquelas duas ali se escolherão madrinhas de seus filhos e morarão no mesmo bairro, uma casada com engenheiro da Petrobrás e outra com um físico nuclear. Um dia, uma dirá à outra no telefone: tenho uma coisa para lhe contar: arranjei um amante. Aconteceu. Assim, de repente. E o mais curioso é que continuo a gostar do meu marido.
Se fosse haver alguma ditadura no futuro, aquele ali seria guerrilheiro. Mas esta hipótese deve ser descartada.
Quem estará naquele avião acidentado? Quem construirá uma linda mansão e um dia convidará a todos da turma para uma grande festa rememorativa? Ah, o primeiro aborto! Aquela ali descobrirá os textos de Clarice Lispector e isto será uma iluminação para toda a vida. Quantos aparecerão na primeira página do jornal? Qual será o tranqüilo comerciante e quem representará o país na ONU?
Estou olhando aquele bando de adolescentes com evidente ternura. Pudesse passava a mão nos seus cabelos e contava-lhes as últimas estórias da carochinha antes que o lobo feroz os assaltasse na esquina. Pudesse lhes diria daqui: aproveitem enquanto estão no aquário e na redoma, enquanto estão na porta da vida e do colégio. O destino também passa por aí. E a gente pode às vezes modificá-lo.

P.114.Por que Mentias? - Alvares de Azevedo


Por que mentias leviana e bela?
Se minha face pálida sentias
Queimada pela febre, e minha vida
Tu vias desmaiar, por que mentias?
Acordei da ilusão, a sós morrendo
Sinto na mocidade as agonias.
Por tua causa desespero e morro...
Leviana sem dó, por que mentias?
Sabe Deus se te amei! Sabem as noites
Essa dor que alentei, que tu nutrias!
Sabe esse pobre coração que treme
Que a esperança perdeu por que mentias!
Vê minha palidez- a febre lenta
Esse fogo das pálpebras sombrias...
Pousa a mão no meu peito! Eu morro! Eu morro!
Leviana sem dó, por que mentias?

P.113.Por amar-te - Angela Bretas


Por amar-te sou mulher.
Quero sorver a veracidade de tuas palavras trôpegas
e a delícia de saber-me tua.
Sentir-me melada como cana caiana.
Deixar-me escorrer como a areia sinuosa,
pincelando rastros vestígios na tua tez avermelhada,
marcada por beijos meus...
Misturar meu fel com teu mel
e obter o tempero exato, raro...
Enroscar meus
desejos com tuas taras,
e viver o ápice do gozo
em um ímpeto de paixão e despudor.
Entregar-me ao riso solto,
ao corpo mole,
mergulhar em tua boca louca,
e renascer fêmea completa...
em teus vãos.

P.112.Poesia se Esfrega nos Seres e nas Cousas - Adalgisa Nery


Nunca sentiste uma força melodiosa
Cercando tudo que teus olhos vêem,
Um misto de tristeza numa paisagem grandiosa
Ou um grito de alegria na morte de um ser que queres bem?
Nunca sentiste nostalgia na essência das cousas perdidas
Deparando com um campo devoluto
Semelhante a uma virgem esquecida?
Num circo, nunca se apoderou de ti, um amargor sutil
Vendo animais amestrados
E logo depois te mostrarem
Seres humanos imitando um reptil?
Nunca reparaste na beleza de uma estrada
Cortando as carnes do solo
Para unir carinhosamente
Todos os homens, de um a outro pólo?
Nunca te empolgastes diante de um avião
Olhando uma locomotiva, a quilha de um navio,
Ou de qualquer outra invenção?
Nunca sentiste esta força que te envolve desde o brilho do dia
Ao mistério da noite,
Na extensão da tua dor
E na delícia da tua alegria?
Pois então, faz de teus olhos o cume da mais alta montanha
Para que vejas com toda a amplitude
A grandeza infindável da poesia que não percebes
E que é tamanha!

P.111.Poesia Entre o Cais e o Hospital - Adalgisa Nery


Geme no cais o navio cargueiro
No hospital ao lado, o homem enfermo.
O vento da noite recolhe gemidos
Une angústias do mundo ermo.
Maresia transborda do mar em cansaço,
Odor de remédios inunda o espaço.
Máquina e homem, ambos exaustos
Um, pela carga que pesa em seu bojo
Outro, na dor tomando o seu corpo.
Cais, hospital: Portos de espera
E começo de fim da longa viagem.
Chaminés de cargueiros gritando no mar,
Garganta do homem em gemidos no ar.
No fundo, o universo,
O mar infinito,
O céu infinito,
O espírito infinito.
Neblinados em tristezas e medos
Surgem silêncios entre os rochedos.
Chaminés de cargueiros gritando no mar
E a garganta do homem em gemidos no ar.

P.110.Poemeto Rural - Abgar Renault


Amplo dia ardente de sertão.
Sol queimante de verão
fuzilando auriluzente,
em setas nos olhos da gente.
Toadas longínquas de trabalhadores no eito.
Gado engordando lentamente no pastinho estreito.
Gente engordando sonolentamente dentro de casa.
Sombras chatas de árvores estendidas no chão... Um ruflo célere de asa
riscando, às vezes, o ar parado. Silêncio longo. Soledade.
Monotonia do sertão... Monotonia da felicidade...

P.109.Poemeto Matinal - Abgar Renault


O ar da manhã beija a minha face.
A minha alma beija o ar leve da manhã
e olha a paisagem longínqua da cidade,
que branqueja alegremente na distância

e sorri humanamente
um sorriso branco no caiado das casas
que montam os flancos das colinas azuis
e espiam pelos olhos escancarados das janelas.

7 horas. Vai começar a função.
O despertador das sirenes fura liricamente
o silêncio doirado da manhã.
Parece que a vida acorda agora pela primeira vez

e esfrega os olhos deslumbradamente...
Meu Ford fordeja dentro da manhã
e sobe a rua velha do meu bairro,
arquejando, bufando, fumando gasolina.

Meu Ford a cabriolar nos buracos da rua descalça
é um cabrito todo preto a cabriolar, prodigioso.
O ar leve beija o radiador
e beija a minha face.

A meninice de todo o meu ser
na doirada névoa desta manhã!

P.108.Poemeto III - Ana Paula Moura Moraes


Beijo doce, beijo molhado, beijo roubado.
Beijo quente, beijo ardente
que me fez tremer
Ah! quantos beijos trocamos.
Minha boca, tua boca... era uma coisa só.
Se o futuro ajudasse e a ti eu encontrasse
ia fazer um único pedido:
um beijo e nada mais.

P.107.Poemeto II - Ana Paula Moura Moraes


Queria um só momento junto a ti
para te dizer o que nunca consigo.
As palavras dizem pouco, menos que um olhar.
Queria tanto, mas tanto mesmo
queria te dizer, somente, o tanto que te quero bem.

P.106.Poemeto I - Ana Paula Moura Moraes


POEMETO I
ANA PAULA MOURA MORAES

Trago pela vida esperanças perdidas e
alegrias vividas de um tempo que não volta mais.
Quem sabe um dia, talvez
o destino traga de volta esta felicidade
que só existe na saudade
de um coração que amou demais.

P.105.Poemas para a amiga - Affonso Romano Santana


"O amor com seus contrários se acrescenta"
Camões
Fragmento 1

Tu sempre foste una
e sempre foste minha,
ainda quando a cor e a forma tua se fundiam
com outra forma e cor que tu não tinhas.
Por isto é que te falo de umas coisas
que não lembras
nem nunca lembrarias
de tais coisas entre mim e ti
ainda quando tu não me sabias
e dividida em outras te mostravas
e assim dispersa me ouvias.
Tu sempre foste uma
ainda quando o corpo teu
com outro corpo a sós se punha,
pois o que me tinhas a dar
a outro nunca o deste
e nunca o doarias.
Por isto é que te sinto
com tanta intimidade
e te possuo com tanta singeleza
desde quando recém vinda
ostentavas nos teus olhos grande espanto
de quem não compreendia
a antiguidade desse amor que em mim fluía.
Fragmento 2
Eu sei quando te amo:
é quando com teu corpo eu me confundo,
não apenas nesta mistura de massa e forma,
mas quando na tua alma eu me introduzo
e sinto que meu sangue corre em ti,
e tudo que é teu corpo
não é que um corpo meu
que se alongou de mim.
Eu sei quando te amo:
é quando eu te apalpo e não te sinto,
e sinto que a mim mesmo então me abraço,
a mim
que amo e sou um duplo,
eu mesmo
e o corpo teu pulsando em mim.
Fragmento 3
É tão natural
que eu te possua
é tão natural que tu me tenhas,
que eu não me compreendo
um tempo houvesse
em que eu não te possuísse
ou possa haver um outro
em que eu não te tomaria.
Venhas como venhas,
é tão natural que a vida
em nossos corpos se conflua,
que eu já não me consinto
que de mim tu te abstenhas
ou que meu corpo te recuse
venhas quando venhas.
E de ser tão natural
que eu me extasie
ao contemplar-te,
e de ser tão natural
que eu te possua,
em mim já não há como extasiar-me
tanto a minha forma
se integrou na forma tua.
Fragmento 4
As vezes em que eu mais te amei
tu o não soubeste
e nunca o saberias.
Sozinho a sós contigo
em mim mesmo eu te criava,
em mim te possuía
De onde vinhas nessas horas
em que inteira eu te envolvia,
nem eu mesmo o sei
e nunca o saberias
Contudo, em paz
eu recebia o carinho,
compungindo o recebia,
tranqüilo em meu silêncio
e tão tranqüilo e tão sozinho
que calmamente eu consentia:
- que ainda que muito me tardasse
mais ainda, um outro tanto, eu sempre esperaria.
Fragmento 5
Tanto mais eu te comtemplo
tanto mais eu me absorvo
e me extasio
Como te explicar
o que em teu corpo eu sinto,
o que em teus olhos vejo,
quando nua nos meus braços
no meus olhos nua,
de novo eu te procuro
e no teu corpo vou-me achar?
Como te explicar
se em teu corpo eu me eternizo
e de onde e como
sendo eu pequeno e frágil
pelo amor me dualizo?
Tanto mais eu te possuo
tanto mais te tornas bela,
tanto mais me torno eu puro.
E à força de tanto contemplar-te
e de querer-te tanto,
já pressinto que em mim mesmo
eu não me tenho,
mas de meu ser, ora vazio,
pouco a pouco fui mudando
para o teu ser de graça cheio.
Fragmento 6
Estás partindo de mim
e eu pressinto que me partes,
e partindo, em ti me vai levando,
como eu que fico
e em mim vou te criando.
Tanto mais tu me despedes
e te alongas,
tanto mais em mim vou te buscando
e me alongando,
tanto mais em mim vou te compondo
e com a lembrança de teu ser
me conformando.
Estás partindo de mim
e eu pressinto
na verdade, há muito que partias,
há muito que eu consinto
que tu partas como um mito.
Mas não és a única que partes
nem eu o único que fico:
sei que juntos e contrários
nos partimos:
-pois tanto mais nos desencontros nos revemos,
tanto mais nas despedidas consentimos.
Fragmento 7
Estranho e duro amor
é o nosso amor, amante-amiga,
que não se farta de partir-se
e não se cansa de querer-se.
Amor
todo feito de distâncias necessárias
que te trazem
e de partidas sucessivas
que me levam.
Que espécie de amor
é esse amor que nos doamos
sem pensar e sem querer com tanto amor
e tão profundo magoar? Estranho e duro amor
que não se basta
e de outros amores se socorre
e se compensa
e neste alheio compensar-se
nunca se alimenta,
mas se avilta e se desgasta.
Estranho amor,
ferino amor,
instável amor feito sem muita paz,
com certo desengano
e um desconsolo prolongado.
Feito de promessas sem futuro
e de um presente de saudades.
Chorar tão dúbio amor
quem há-de? Estranho amor
e duro amor
incerto amor, que não te deu o instante que esperavas
e a mim me sobejou do que faltava.
Fragmento 8
Contemplo agora
o leito que vazio
se contempla.
Contemplo agora
o leito que vazio
em mim se estende
e se me aproximo
existe qualquer coisa
trescalando aroma em mim.
Onde o teu corpo, amante-amiga,
onde o carinho
que compungido em recebia
e aquela forma que tranquila
ainda ontem descobrias?
Agora eu te diria
o quanto te agradeço o corpo teu
se o me dás ou se o me tomas,
e o recolhendo em mim,
em mim me vais colhendo,
como eu que tomo em ti
o que de ti me vais doando.
Eu muito te agradeço este teu corpo
quando nos leitos o estendias e o me davas,
às vezes, temerosa,
e, ofegante, às vezes,
e te agradeço ainda aquele instante (o percebeste)
em que extasiado ao contemplá-lo
em mim me conturbei
- (o percebeste) me aguardaste
e nos olhos te guardei.
Eu muito te agradeço, amante-amiga,
este teu corpo que com fúria eu possuía,
corpo que eu mais amava
quanto mais o via,
pequeno e manso enigma
que eu decifrei como podia.
Agora eu te diria
o que não soubeste
e nunca o saberias:
o que naquele instante eu te ofertava
nunca a mim eu já doara
e nunca o doaria.
Nele eu fui pousar
quando cansado e dúbio,
dele eu fui tomar
quando ofegante e rubro,
dele e nele eu revivia
e foi por ele que eu senti
a solidão, e o amor
que em mim havia.
Teu corpo quando amava
me excedia,
e me excedendo
com o amor foi me envolvendo,
e nesse amor absorvente
de tal forma absorvendo,
que agora que o não tenho
não sei como permaneço nesta ausência
em que tuas formas se envolveram,
tanto o amor
e a forma do teu corpo
no meu corpo se inscreveram.

P.104.Poemas Malditos VI - Alvares de Azevedo


No outro dia, na borda do caminho
Deitado ao pé de um fosso aberto apenas,
Viu-se um mancebo loiro que morria...
Semblante feminil, e formas débeis,
Mas nos palores da espaçosa fronte
Uma sombria dor cavara sulcos.
Corria sobre os lábios alvacentos
Uma leve umidez, um ló d'escuma,
E seus dentes a raiva constringira...
Tinha os punhos cerrados... Sobre o peito
Acharam letras de uma língua estranha...
E um vidro sem licor... fora veneno!...
Ninguém o conheceu; mas conta o povo
Que, ao lançá-lo no túmulo, o coveiro
Quis roubar-lhe o gibão - despiu o moço...
E viu... talvez é falso... níveos seios...
Um corpo de mulher de formas puras...
Na tumba dormem os mistérios de ambos;
Da morte o negro véu não há erguê-lo!
Romance obscuro de paixões ignotas
Poema d'esperança e desventura,
Quando a aurora mais bela os encantava,
Talvez rompeu-se no sepulcro deles!
Não pode o bardo revelar segredos
Que levaram ao céu as ternas sombras;
Desfolha apenas nessas frontes puras
Da extrema inspiração as flores murchas...

P.103.Poemas Malditos V - Alvares de Azevedo


Caiu a noite, do azulado manto,
Como gotas de orvalho, sacudindo
Estrelas cintilantes. - Veio a lua
Banhando de tristeza o céu noturno:
Derrama aos corações melancolia,
Derrama no ar cheiroso molemente
Cerúlea chama, dia incerto e pálido
Que ao lado da floresta ajunta as sombras
E lança pelas águas da campina
Alvacentos clarões que as flores bebem.
A galope, de volta do noivado,
Passa o Conde Solfier, e a noiva Elfrida.
Seguem fidalgos que o sarau reclama.
Elfrida
- Não vês, Solfier, ali da estrada em meio
Um defunto estendido? -
Solfier
- Ó minha Elfrida,
Voltemos desse lado: outro caminho
Se dirige ao castelo. É mau agouro
Por um morto passar em noites destas.
Mas Elfrida aproxima o seu cavalo.
Elfrida
- Tancredo vede! é o trovador Tancredo!
Coitado! assim morrer! um pobre moço!
Sem mãe e sem irmã! E não o enterram?
Neste mundo não teve um só amigo? -
"Ninguém, senhora - respondeu da sombra
Uma dorida voz - Eu vim, há pouco,
Ao saber que do povo no abandono
Jazia como um cão. Eu vim, e eu mesmo
Cavei junto do lago a cova impura."
Elfrida
- Tendes um coração. Tomai, mancebo,
Tomai essa pulseira Em oiro e jóias
Tem bastante p'ra erguer-lhe um monumento,
E para longas missas lhe dizerem
Pelo repouso d'alma...
O moço riu-se.
O Desconhecido
- Obrigado. Guardai as vossas jóias.
Tancredo o trovador morreu de fome;
Passaram-lhe no corpo frio e morto,
Salpicaram de lodo a face dele,
Talvez cuspissem nesta fronte santa
Cheia outrora de eternas fantasias,
De idéias a valer um mundo inteiro!...
Por que lançar esmolas ao cadáver?
Leva-as, fidalga-tuas jóias belas!
O orgulho do plebeu as vê sorrindo.
Missas... bem sabe Deus se neste mundo
Gemeu alma tão pura como a dele!
Foi um anjo, e murchou-se como as flores,
Morreu sorrindo como as virgens morrem!
Alma doce que os homens enjeitaram,
Lírio que profanou a turba imunda,
Oh! não te mancharei nem a lembrança
Com o óbolo dos ricos! Pobre corpo,
És o templo deserto, onde habitava
O Deus que em ti sofreu por um momento!
Dorme, pobre Tancredo! eu tenho braços:
Na cova negra dormirás tranqüilo...
Tu repousas ao menos!... -
No entanto sofreando a custo a raiva,
Mordendo os lábios de soberba e fúria,
Solfier da bainha arranca a espada,
Avança ao moço e brada-lhe:
"Insolente!
Cala-te, doudo! Cala-te, mendigo!
Não vês quem te falou? Curva o joelho,
Tira o gorro, vilão!"
O Desconhecido
- Tu vês: não tremo.
Tu não vales o vento que salpica
Tua fronte de pó. Porque és fidalgo,
Não sabes que um punhal vale uma espada
Dentro do coração?-
Mas logo Elfrida:
"Acalma-te, Solfier! O triste moço
Desespera, blasfema e não me insulta.
Perdoa-me também, mancebo triste;
Não pensei ofender tamanho orgulho.
Tua mágoa respeito. Só te imploro
Que sobre a fronte ao trovador desfolhes
Essas flores, as flores do noivado
De uma triste mulher... E quanto às jóias,
Lança-as no lago... Mas quem és? teu nome?"
O Desconhecido
- Quem sou? um doudo, uma alma de insensato,
Que Deus maldisse e que Satã devora;
Um corpo moribundo em que se nutre
Uma centelha de pungente fogo,
Um raio divinal que dói e mata,
Que doira as nuvens e amortalha a terra!. .
Uma alma como o pó em que se pisa;
Um bastardo de Deus, um vagabundo
A que o gênio gravou na fronte-anátema!
Desses que a turba com o dedo aponta...
Mas não; não hei de sê-lo! eu juro n'alma,
Pela caveira, pelas negras cinzas
De minha mãe o juro... agora há pouco
Junto de um morto reneguei do gênio,
Quebrei a lira à pedra de um sepulcro...
Eu era um trovador, sou um mendigo .
Ergueu do chão a dádiva d'Elfrida;
Roçou as flores aos trementes lábios;
Beijou-as. Sobre o peito de Tancredo
Pousou-as lentamente...
- Em nome dele,
Agradeço estas flores do teu seio,
Anjo que sobre um túmulo desfolhas
Tuas últimas flores de donzela!-
Depois vibrou na lira estranhas mágoas,
Carpiu à longa noite escuras nênias,
Cantou: banhou de lágrimas o morto.
De repente parou-vibrou a lira
Co'as mãos iradas, trêmulas... e as cordas
Uma per uma rebentou cantando...
Tinha fogo no crânio, e sufocava.
Passou a fria mão nas fontes úmidas,
Abriu a medo os lábios convulsivos,
Sorriu de desespero-e sempre rindo
Quebrou as jóias as lançou no abismo.

P.102.Poemas Malditos IV - Alvares de Azevedo


Ia caindo o sol. Bem reclinado
No vagaroso coche madornando,
Depois de bem jantar fazendo a sesta,
Roncava um nédio, um barrigudo frade:
Bochechas e nariz, em cima uns óculos,
Vermelho solidéu... enfim um bispo,
E um bispo, senhor Deus! da idade média,
Em que os bispo s- como hoje e mais ainda -
Sob o peso da cruz bem rubicundos,
Dormindo bem, e a regalar bebendo,
Sabiam engordar na sinecura;
Papudos santarrões, depois Missa
Lançando ao povo a bênção - por dinheiro!
O cocheiro ia bêbado por certo;
Os cavalos tocou p'lo bom caminho
Mesmo em cima das pernas do cadáver.
Refugou a parelha, mas o sota
-Que ao sol da glória episcopal enchia
De orgulho e de insolência o couro inerte,
Cuspindo o poviléu, como um fidalgo-
Que em falta de miolo tinha vinho
Na cabeça devassa, deu de esporas:
Como passara sobre a vil carniça
Reléu de corvos negros-foi por cima...
Mas desgraça! maldito aquele morto!
Desgraça!... não porque pisasse o coche
Aqueles magros ossos, mas a roda
Na humana resistência deu estalo...
E acorda o fradalhão...
"O que se sucede?
- Pergunta bocejando: É algum bêbado?
Em que bicho pisaram?"
"Senhor bispo"
Diz o servo da Igreja, o bom cocheiro
Ao vigário de Cristo, ao santo Apóstolo
Isto é - dessa fidalga raça nova
Que não anda de pé como S. Pedro,
Nem estafa os corcéis de S. Francisco:
"Perdoe Vossa Excelência Eminentíssima;
É um pobre diabo de poeta,
Um homem sem miolo e sem barriga
Que lembrou-se de vir morrer na estrada!"
"Abrenúncio! - rouqueja o Santo Bispo -
Leve o Diabo essa tribo de boêmios!
Não há tanto lugar onde se morra?
Maldita gente! inda persegue os Santos
Depois que o Diabo a leva!..."
E foi caminho.
Leve-te Deus! Apóstolo da crença,
Da esperança e da santa caridade!
Tu, sim, és religioso e nos altares
Vem cada sacristão, e cada monge
Agitar a teus pés o seu turíbulo!
E o sangue do Senhor no cálix d'oiro
Da turba na oração te banha os lábios
Leve-te Deus, Apóstolo da crença!
Sem padres como tu que fora o mundo?
É por ti que o altar apóia o trono!
E teu olhar que fertiliza os vales
Fecunda a vinha santa do Messias!
Leve-te Deus ou leve-te o Demônio!

P.101.Poemas Malditos III - Alvares de Azevedo


Passou El-Rei ali com seus fidalgos.
Iam a degolar uns insolentes
Que ousaram murmurar da infâmia régia,
Das nódoas de uma vida libertina!
Iam em grande gala. O Rei cismava
Na glória de espetar no pelourinho
A cabeça de um pobre degolado.
Era um rei bon-vivant, e rei devoto;
E, como Luís XI, ao lado tinha
O bobo, o capelão e seu carrasco.
O cavalo do Rei, sentindo o morto,
-Trêmulo de terror parou nitrindo.
Deu d'esporas leviano o cavaleiro
E disse ao capelão:
"E não enterram
Esse homem que apodrece, e no caminho
Assusta-me o corcel?"
Depois voltou-se
E disse ao camarista de semana:
"Conheces o defunto? Era inda moço.
Faria certamente um bom soldado.
A figura é esbelta! Forte pena!
Podia bem servir para um lacaio."
Descoberto, o faceiro fidalgote
Responde-lhe fazendo a cortesia:
"Pelas tripas do Papa! eu não me engano,
Leve-me Satanás se este defunto
Ontem não era o trovador Tancredo!"
"Tancredo"! murmurou erguendo os óculos
Um anfíbio, um barbaças truanesco.
Alma de Tribouler, que além de bobo
Era o vate da corte-bem nutrido,
Farto de sangue, mas de veia pobre,
Caídos beiços, volumoso abdômen,
Grisalha cabeleira esparramada,
Tremendo narigão, mas testa curta;
Em suma um glosador de sobremesas.
"Tancredo! - repetiu imaginando-
Um asno! só cantava para o povo!
Uma língua de fel, um insolente!
Orgulho desmedido... e quanto aos versos
Morava como um sapo n'água doce...
Não sabia fazer um trocadilho..."
O rei passou-com ele a companhia.
Só ficou ressupino e macilento
Da estrada em meio o trovador defunto.

P.100.Poemas Malditos II - Alvares de Azevedo


Morreu um trovador - morreu de fome.
Acharam-no deitado no caminho:
Tão doce era o semblante! Sobre os lábios
Flutuava-lhe um riso esperançoso.
E o morto parecia adormecido.
Ninguém ao peito recostou-lhe a fronte
Nas horas da agonia! Nem um beijo
Em boca de mulher! nem mão amiga
Fechou ao trovador os tristes olhos!
Ninguém chorou por ele... No seu peito
Não havia colar nem bolsa d'oiro;
Tinha até seu punhal um férreo punho...
Pobretão! não valia a sepultura!
Todos o viam e passavam todos.
Contudo era bem morto desde a aurora.
Ninguém lançou-lhe junto ao corpo imóvel
Um ceitil para a cova!... nem sudário!
O mundo tem razão, sisudo pensa,
E a turba tem um cérebro sublime!
De que vale um poeta - um pobre louco
Que leva os dias a sonhar - insano
Amante de utopias e virtudes
E, num tempo sem Deus, ainda crente?
A poesia é de cerco uma loucura,
Sêneca o disse, um homem de renome.
É um defeito no cérebro... Que doudos!
É um grande favor, é muita esmola
Dizer-lhes bravo! à inspiração divina,
E, quando tremem de miséria e fome,
Dar-lhes um leito no hospital dos loucos...
Quando é gelada a fronte sonhadora,
Por que há de o vivo que despreza rimas
Cansar os braços arrastando um morto,
Ou pagar os salários do coveiro?
A bolsa esvazia por um misérrimo
Quando a emprega melhor em lodo e vício!
E que venham aí falar-me em Tasso!
Culpar Afonso d'Este - um soberano! -
Por que não lhe dar a mão da irmã fidalga!
Um poeta é um poeta - apenas isso:
Procure para amar as poetisas!
Se na Franca a princesa Margarida,
De Francisco Primeiro irmã formosa,
Ao poeta Alain Chartier adormecido
Deu nos lábios um beijo, é que esta moça,
Apesar de princesa, era uma douda,
E a prova é que também rondós fazia.
Se Riccio o trovador obteve amores
- Novela até bastante duvidosa -
Dessa Maria Stuart formosíssima,
É que ela - sabe-o Deus! - fez tanta asneira,
Que não admira que um poeta amasse!
Por isso adoro o libertino Horácio.
Namorou algum dia uma parenta
Do patrono Mecenas? Parasita,
Só pedia dinheiro - no triclínio
Bebia vinho bom - e não vivia
Fazendo versos às irmãs de Augusto.
E quem era Camões? Por ter perdido
Um olho na batalha e ser valente,
As esmolas valeu. Mas quanto ao resto,
Por fazer umas trovas de vadio,
Deveriam lhe dar, além de glória
- E essa deram-lhe à farta - algum bispado,
Alguma dessas gordas sinecuras
Que se davam a idiotas fidalguias?
Deixem-se de visões, queimem-se os versos.
O mundo não avança por cantigas.
Creiam do poviléu os trovadores
Que um poeta não val meia princesa.
Um poema contudo, bem escrito,
Bem limado e bem cheio de tetéias,
Nas horas do café lido fumando,
Ou no campo, na sombra do arvoredo,
Quando se quer dormir e não há sono,
Tem o mesmo valor que a dormideira.
Mas não passe dali do vate a mente.
Tudo o mais são orgulhos, são loucuras!
Faublas tem mais leitores do que Homero...
Um poeta no mundo tem apenas
O valor de um canário de gaiola...
É prazer de um momento, é mero luxo.
Contente-se em traçar nas folhas brancas
De um Álbum da moda umas quadrinhas.
Nem faça apelações para o futuro.
O homem é sempre o homem. Tem juízo:
Desde que o mundo é mundo assim cogita.
Nem há negá-lo-não há doce lira
Nem sangue de poeta ou alma virgem
Que valha o talismã que no oiro vibra!
Nem músicas nem santas harmonias
Igualam o condão, esse eletrismo,
A ardente vibração do som metálico...
Meu Deus! e assim fizeste a criatura?
Amassaste no lodo o peito humano?
Ó poetas, silêncio! é este o homem?
A feitura de Deus a imagem dele!
O rei da criação!...
Que verme infame!
Não Deus, porém Satã no peito vácuo
Uma corda prendeu-te-o egoísmo!
Oh! miséria, meu Deus! e que miséria!

P.099.Poemas Malditos I - Alvares de Azevedo


De tanta inspiração e tanta vida
Que os nervos convulsivos inflamava
E ardia sem conforto...
O que resta? uma sombra esvaecida,
Um triste que sem mãe agonizava...
Resta um poeta morto!
Morrer! e resvalar na sepultura.
Frias na fronte as ilusões-no peito
Quebrado o coração!
Nem saudades levar da vida impura
Onde arquejou de fome... sem um leito!
Em treva e solidão!
Tu foste como o sol; tu parecias
Ter na aurora da vida a eternidade
Na larga fronte escrita...
Porém não voltarás como surgias!
Apagou-se teu sol da mocidade
Numa treva maldita!
Tua estrela mentiu. E do fadário
De tua vida a página primeira
Na tumba se rasgou...
Pobre gênio de Deus, nem um sudário!
Nem túmulo nem cruz! como a caveira
Que um lobo devorou!...

P.098.Poema pouco original do medo - Alexandre O'Neill


O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém o veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no teto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos
O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
ótimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projetos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com a certeza a deles
Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados
Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)
O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos Sim
a ratos

P.097.Poema da Amante - Adalgisa Nery


Eu te amo
Antes e depois de todos os acontecimentos,
Na profunda imensidade do vazio
E a cada lágrima dos meus pensamentos.
Eu te amo
Em todos os ventos que cantam,
Em todas as sombras que choram,
Na extensão infinita dos tempos
Até a região onde os silêncios moram.
Eu te amo
Em todas as transformações da vida,
Em todos os caminhos do medo,
Na angústia da vontade perdida
E na dor que se veste em segredo.
Eu te amo
Em tudo que estás presente,
No olhar dos astros que te alcançam
E em tudo que ainda estás ausente.
Eu te amo
Desde a criação das águas,
desde a idéia do fogo
E antes do primeiro riso e da primeira mágoa.
Eu te amo perdidamente
Desde a grande nebulosa
Até depois que o universo cair sobre mim
Suavemente.

P.096.Poema Começado do Fim - Adélia Prado


Um corpo quer outro corpo.
Uma alma quer outra alma e seu corpo.
Este excesso de realidade me confunde.
Jonathan falando:
parece que estou num filme.
Se eu lhe dissesse você é estúpido
ele diria sou mesmo.
Se ele dissesse vamos comigo ao inferno passear
eu iria.
As casas baixas, as pessoas pobres,
e o sol da tarde,
imaginai o que era o sol da tarde
sobre a nossa fragilidade.
Vinha com Jonathan
pela rua mais torta da cidade.
O Caminho do Céu.

P.095.Perdoem - Angela Bretas


Perdoem atos insensatos
Que refletem em bocas de fome
De crianças famintas em filas cruéis...
Perdoem a violência gerada
Que afeta orfãos carentes
Mutilados de dignidade...
Perdoem a ambição do poder
Que corroe como um vulcão
Levando consigo vidas inocentes...
Perdoem os que não enxergam
Que a humanidade
Está soterrada em um materialismo aparente...
Perdoem os homens de boa vontade
Que cruzam os braços
E fecham os olhos para a vida...

P.094.Perdoa-me, visão dos meus Amores - Alvares de Azevedo


Perdoa-me, visão dos meus amores,
Se a ti ergui meus olhos suspirando! ...
Se eu pensava num beijo desmaiando
Gozar contigo uma estação de flôres!
De minhas faces os mortais palores,
Minha febre noturna delirando,
Meus ais, meus tristes ais vão revelando
Que peno e morro de amorosas dores...
Morro, morro por ti! na minha aurora
A dor do coração, a dor mais forte,
A dor de um desengano me devora...
Sem que última esperança me conforte,
Eu - que outrora vivia! - eu sinto agora
Morte no coração, nos olhos morte!

P.093.Perdidos - Angela Bretas


Você para mim
Eu sem você
Sozinhos
Perdidos
Buscando respostas
Que são indecisas
Remotas
Constantes
Sem saber se há fim
Sem querer começar
E assim deixar de lado
A paixão
A emoção
Levados somente
Pela razão da vida
Esta vida perdida
Machucada
Confusa
Que nos dá um presente
Mas
Não mostra a saída...