terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Z.001.ZEA MAYS - ANTONIO VIRGILIO DE ANDRADE


És estrangeiro no campestre reinado
Padeces no calor do sol e no pranto da chuva
Mas se o tempo faz de ti príncipe bastardo
Tua silhueta garbosa ao vento não se curva.

Dadivoso donzelo dos campos
Na alegria do vôo das borboletas
Tua cabeleira "rastafari" é encanto, que
Aguça o apetite das vespas.
Bissexuado ser de folhas e talo
Transportas arca de tesouros na barriga
Dela colho rebentos espigados
Quando a cintura de milho se engravida.

J.005.José de Alencar - Araripe Júnior


A pátria de tal artista é uma espécie de Arábia encantada, aonde a vara mágica do gênio concede a tudo tintas de felicidade. Esta é a terra do amor. Mas que amor! um amor edênico e ao mesmo tempo caprichoso, como só o oriente sabe produzir. O amor que ele aspira é um "desses amores poéticos, inocentes, que têm o céu por dossel, as lianas verdes por cortinas, a relva do campo por divã, e que a natureza consagra como mãe extremosa". Não é de admirar, pois, que a mulher, atravessando esses sonhos, não se apresente senão como uma nimiedade gentil, cercada de canduras e tiques infantis, e que todas as suas concepções propendam para o que a natureza contém de mais tênue, perfeito e delicado "no frouxo roçar das árvores, nos murmurejos das ondas, nos cicios da brisa, nas folhas de rosa da harmonia". Os tipos que mais lhe entram no coração são Eva, de Milton, Haidéa, de Byron, Atala, de Chateaubriand, Cora, de Cooper. Tudo, naquelas cartas, está denunciando que o grácil, para José de Alencar, tinha se constituído a fórmula da poesia.
E como não assim, se, no estádio de sua vida a que aludo, graças às disposições de seu espírito, ele não podia enxergar senão o vivaz, o interessante, a gentileza!? Os escritos, portanto, referentes a todo o período que foi regido por esse movimento expansivo, ressentem-se deste traço característico, - da luz diáfana, do encantamento caprichoso, grácil e sorridente, que se difundia por sua alma de artista. Veremos, mais tarde, todos estes elementos condensarem-se em verdadeiras obras.
O que é certo, e se torna bem patente pelas cartas aludidas, é que não houve autores que concorressem tão poderosamente para a formação de estro de José de Alencar como os poetas, os escritores de veia oriental, nomeadamente Victor Hugo, e os confidentes do coração, Chateaubriand, Lamartine e Bernardin de Saint-Pierre; os primeiros, como coloristas, os dois seguintes, calcando-lhe profundamente o sentimento da paisagem, e o último, infundindo-lhe no ânimo as gotas mais dulçorosas da vida e do amor. De semelhante fusão nasceu o traço já indicado, e a poesia se lhe afirma por toda parte como a ternura da natureza revelada pelo som, pela cor, pela forma, pela luz, pela sombra e pelo perfume. É insuflado por este sentimento que José de Alencar volve-se para o seu belo Brasil, "filho do sol, cheio do seu brilho e luxo oriental", e, tendo-o estudado através das velhas crônicas de Simão de Vasconcelos, Lery, Gabriel Soares, Rocha Pita e outros, projeta a miragem que ocupava seu espírito sobre a realidade, para convertê-la num éden, onde sua fantasia viverá como em um país conquistado.
"A flor da parasita, o eco profundo das montanhas, a réstia de sol, a folha, o inseto falarão com eloqüência a seus sentidos", e induzi-lo-ão a crer, com os aborígenes, em uma terra toda iluminada pela teogonia que Thevet depurou de entre superstições esparsas. Com os nheengaraçaras tupis, ele enxergará o beija-flor, o guainumbi, conduzindo as almas dos selvagens para além das montanhas azuis, e encontrará por toda parte "esta flor celeste que iria-se de lindas cores aos rigores do sol", adejando como gênio benéfico que se incumbe de suprimir, aos olhos do poeta, as torpezas das regiões tropicais.
Rios esplêndidos deslizarão através de florestas magníficas, cascatas soberbas cintilarão despenhando-se do alcantil das montanhas, lagos, através dos quais singrará a canoa do índio guerreiro amoroso, se mostrarão a seus olhos ávidos de gozo; e, no Brasil de sua imaginação, clareado pela luz mágica e elétrica, entrarão, com ele, milhares de olhos também cobiçosos, que acreditarão viver com os seres fantásticos do passado. E será no oásis, criado por sua fantasia, no meio de um deserto de imaginações áridas, que o autor do Guarani fará habitar um sem-número de entidades, que, uma vez contempladas, nunca mais se esvaecerão da memória.
Outras leituras podiam ter concorrido para o desenvolvimento da individualidade de José de Alencar. Sabe-se, por exemplo, que Walter Scott, Fenimore Cooper, Marryat, George Sand, Dumas foram por ele mui assiduamente lidos; mas a influência destes escritores foi, seguramente, secundária. Porventura constituíram-se seus mestres naquilo que se considera, em obras de arte, o exterior, o molde, a construção; nunca, porém, entraram na composição do espírito de quem um dia deveria escrever os primeiros cantos da Iracema.
("José de Alencar", in Obra crítica de Araripe Júnior, volume I, 1958

J.004.JARDIM N’ALMA - ANTONIO MANUEL ABREU SARDENBERG


Vou plantar um jardim em minha alma
e nele cultivar todas as flores:
rosas, lírios, crisântemos e palmas,
orquídeas, margaridas, dois amores...
Que seja um jardim imaculado,
recanto da mais terna divindade
onde o amor seja livre e cultivado
bem como se cultiva uma amizade!
Que nele se acheguem bem-te-vis,
a curar com seus cantos nossas dores
e bandos de pequenos colibris
a beijar por nós todas as flores.
E que a luz de um sol irradiante
cubra todo o jardim - manto de amantes,
- aconchego confidente de uma cama! -
Então que esse momento seja eterno,
que sejam céus todos os meus infernos.
- paraíso de amante - quando ama

G.016.Guerra - Augusto dos Anjos


Guerra é esforço, é inquietude, é ânsia, é transporte...
E a dramatização sangrenta e dura
Vir Deus num simples grão de argila errante,
Da avidez com que o Espírito procura
É a Subconsciência que se transfigura
Em volição conflagradora... E a coorte
Das raças todas, que se entrega à morte
Para a felicidade da Criatura!
É a obsessão de ver sangue, é o instinto horrendo
De subir, na ordem cósmica, descendo
A irracionalidade primitiva...
É a Natureza que, no seu arcano,
Precisa de encharcar-se em sangue humano
Para mostrar aos homens que está viva!

G.015.Greenpeace - ângela Bretas


Ontem eu sonhei
Com verdes vales
Com montanhas branquinhas de neve
Com flores variadas
Com sol azul radiante
Com mar limpo, plácido
Com ar puro
Com pássaros voando
Com rios, cachoeiras
Com borboletas brilhantes..
.Hoje eu chorei
Ao ver árvores derrubadas
Ao constatar céu nublado
Ao ver esgoto num mar agitado
Ao sentir fumaça no ar
Ao presenciar peixes morrendo
Ao ver aves engaioladas
Ao notar rios desviados
E cachoeiras soterradas...
Agora eu desejo
Que os homens acordem
Que possam remediar
Que sarem esta ferida
Que o mundo respeite
A natureza A vida...

G.014.Gostaria - Andrea Borba Pinheiro


Eu gostaria de poder fazer tudo que gosto...
Fazer-me possível perante o impossível...
Eu gostaria de não ter te conhecido...
Eu gostaria de não ter, ao meu coração, dado ouvidos.
Eu gostaria de ficar com você para sempre,
Eu gostaria de nunca chorar,
E tentaria sempre, todos os dias, incansavelmente,
Convencer-te a me perdoar.
Eu gostaria de ser mais pretensiosa...
Mais esnobe, quando necessário...
Gostaria de ser mais maliciosa...
E de tanto te dar amor, fazer-te milionário.
Eu gostaria de voltar atrás...
Gostaria de acertar meus erros...
Gostaria de não sentir remorso...
Gostaria de ter ouvido todos os conselhos.
Gostaria de estar aí com você!
Será que isso é pedir demais?...
Gostaria de proteger-te de tudo...
Gostaria de não te perder jamais.
Gostaria de ser digna do seu amor.
Gostaria de poder ser a primeira a te beijar.
Gostaria de te dar o meu calor...
Gostaria de teu rosto tocar.
Gostaria, enfim, de que nossa vida fosse perfeita...
Ou que, pelo menos... eu pudesse te adorar do jeito certo...
Mantendo-te perto...
Gostaria de estar no seu coração e na sua mente,
E claro... gostaria de você ser meu novamente.

G.013.Glória moribunda - Alvares de Azevedo


I
É uma visão medonha uma caveira?
Não tremas de pavor, ergue-a do lodo.
Foi a cabeça ardente de um poeta,
Outrora à sombra dos cabelos loiros,
Quando o reflexo do viver fogoso
Ali dentro animava o pensamento,
Esta fronte era bela. Aqui nas faces
Formosa palidez cobria o rosto...
Nessas órbitas-ocas, denegridas! -
Como era puro seu olhar sombrio!
Agora tudo é cinza. Resta apenas
A caveira que a alma em si guardava,
Como a concha no mar encerra a pérola,
Como a caçoula a mirra incandescente.
Tu outrora talvez desses-lhe um beijo;
Por que repugnas levantá-la agora?
Olha-a comigo! Que espaçosa fronte!
Quanta vida ali dentro fermentava,
Como a seiva nos ramos do arvoredo!
E a sede em fogo das idéias vivas
Onde está? onde foi? Essa alma errante
Que um dia no viver passou cantando,
Como canta na treva um vagabundo,
Perdeu-se acaso no sombrio vento,
Como noturna lâmpada, apagou-se?
E a centelha da vida, o eletrismo
Que as fibras tremulantes agitava
Morreu para animar futuras vidas?
Sorris? eu sou um louco. As utopias,
Os sonhos da ciência nada valem,
A vida é um escárnio sem sentido,
Comédia infame que ensangüenta o lodo.
Há talvez um segredo que ela esconde
Mas esse a morte o sabe e o não revela,
Os túmulos são mudos como o vácuo.
Desde a primeira dor sobre um cadáver,
Quando a primeira mãe entre soluços
Do filho morto os membros apertava
Ao ofegante seio, o peito humano
Caiu tremendo interrogando o túmulo
E a terra sepulcral não respondia.
Levanta-me do chão essa caveira!
Vou cantar-te uma página da vida
De uma alma que penou, e já descansa.
II
- Por quem esperas trêmula a desoras,
Mulher da noite, na deserta rua?
A miséria venceu os teus orgulhos,
E vens na treva contratar teu leito?
Vem pois. És bela. Tens no rosto frio
A imagem das Madonas descoradas.
Vagabunda de amor, és bela e pálida.
Será doce em teu seio de morena
Um momento sentir os meus suspiros
Estuantes nos lábios doloridos.
Se inda podes amar, ergue-te ainda,
Une teu peito ao meu, pálida sombra!-
III
Era uma fronte olímpica e sombria,
Nua ao vento da noite que agitava
As loiras ondas do cabelo solto;
Cabeça de poeta e libertino
Que fogo incerto de embriaguez corava.
Na fronte a palidez, no olhar aceso
O lume errante de uma febre insana.
IV
-Mancebo, quem és tu?
Que importa o nome?
Um poeta de santas harmonias
Que a Musa obscena do bordel profana.
Na aparição balsâmica dos anjos
Porventura enlevei a mocidade.
Das virgens no cheiroso travesseiro
Porventura dormi... Meu Deus! que sonhos!
Em seios que a inocência adormecia
Repousei minha fronte embevecida.
Amei, mulher! amei! Que sede intensa!
Secou-se-me a torrente do deserto
Que as folhas de frescura borrifava.
Tudo! tudo passou... Amei... Embora!
Quero agora dormir nos teus joelhos.
Nessa esponja da vida inda uma gota
Talvez reste a meus lábios anelantes
Que me dê um assomo de ventura
E um leito onde morrer amando ainda,
E que vida, mulher! que dor profunda,
Faminta como um verme aqui no peito!
Murcha desfaleceu a flor da vida
E cedo morrerá. . . E vós, meus anjos,
Ó Virgem Santa, que eu amei, na lira
A quem votei meu canto deliroso;
Amantes que eu sonhei, que eu amaria
Com todo o fogo juvenil que ainda
Me abrasa o coração, por que fugistes,
Brancas sombras, do céu das esperanças?
Oh! riamos da vida! tudo mente!
Os meus versos gotejam de ironias!
Esse mundo sem fé merece prantos?
À orgia! na saturnal entre a loucura
Derrama o vinho sono e esquecimento
Vinde, belezas que a volúpia inflama!
Bebamos juntos... Cantarei de novo!
A minha alma nas asas do improviso,
Como as aves do céu, voe cantando. . .
Todos caíram ébrios?.. . só eu resto?
Embora! em minha mão a lira pulsa,
Meu peito bate, a inspiração agora
Cânticos imortais ao lábio inspira.
Voai ao céu-não morrereis, meus cantos!
V
A glória! a glória! meu amor foi ela,
Foi meu Deus, o meu sangue... até meu gênio. . .
E agora!... Além os sonhos dessa vida!
Quando eu morrer, meus versos incendeiem!
Apague-se meu nome-e ao cadáver
Nem lágrimas, nem cruz o mundo vote
Sou um ímpio (disseram-no!) pois deixem-me
Descansar no sepulcro!Por que choras,
Descorada mulher? Sabes acaso
Quem é o triste, o malfadado obscuro
Que delira e desvaira aqui na treva
E tuas mãos aperta convulsivo?
Eu não te posso amar. Meu peito morto
É como a rocha que o oceano bate
E branqueia de escuma-ali não pode
Medrar a flor cheirosa dos enlevos...
Teu amor... Eu descri até dos sonhos....
Demais dentro em tua alma eu vejo trevas,
Uma estrela de Deus não a ilumina.
Quem pudera nas ondas do passado,
Ditoso pescador, erguer no lodo
O ramo de coral de teus amores?
VI
Amei! amei! no sonho, nas vigílias
Esse nome gemi que eu adorava!
Votei amor a tudo quanto é belo!
Escuta A rua é queda. A noite escura
É negra como um túmulo. Durmamos
No leito dos amores do perdido.
Vês? nem lua no céu! tudo é medonho!
Nem estrela de luz . -Silêncio! Embora!
Escuta, anjo da noite! no meu peito
Não ouves palpitar o som da vida?
Deixa encostar meus lábios incendidos
No teu seio que bate. Vem, meu anjo!
A alma da formosura é sempre virgem!
Minha virgem-irmã-meu Deus! Contigo
Oh! deixa-me viver! Eu sinto bela
A tua alma acordando refletir-se
Nesses olhos tão negros d'Espanhola.
Quero amar e viver-sonhar-em fogo
Meus frouxos dias exaurir num beijo,
Derramar a teus pés os meus amores,
Minhas santas canções a ti erguê-las,
A ti, e só a ti!-
VII
-Que tens? desmaias?
Que tens, mancebo?
-Nada. É cedo ainda.
Não é ela ainda não. Chamei por ela. . .
Foi em vão. . . delirei. . .
-Por quem?
-A morte.-Morrer! pobre de ti, ó meu poeta!
-Se a morte é sofrimento, eu sofro tanto,
Que a mudança do mal será consolo;
Se a morte é sono, meu cansado corpo
No descanso eternal deixai que durma.
-Eu também sofro. . . mas a morte assusta.
Eu mísera mulher nas amarguras
Descorei e perdi a formosura.
No amor impuro profanei minha'alma. ..
E nesta vida não amei contudo!
Não sou a virgem melindrosa e casta
Que nos sonhos da infância os anjos beijam
E entre as rosas da noite adormecera
Tão pura como a noite e como as flores;
Mas na minha'alma dorme amor ainda.
Levanta-me, poeta, dos abismos
Até ao puro sol do amor dos anjos!
Ó minha vida, minha vida pura,
Por que foram tão breves da inocência
Das crenças virginais os belos dias?
Chamei por Deus em vão. Sobre meu leito
Em vez do anjo do céu senti gelada
Sombra desconhecida vir sentar-se
Em beijos frios roxear meus lábios,
Em abraços de morte unir-me ao seio.
Douda! chamei por Deus! a meu reclamo
Veio o torvo Satã... Oh! não maldigas
A mísera que os seios inocentes
Entregou sem pudor a mãos impuras:
Eram taças de Deus... eu bem sabia!
Mas todo o pesadelo do passado
Foi uma horrenda sina... tudo aquilo
Escrevera Satã
VIII
-Fatalidade!
É pois a voz unânime dos mundos.
Das longas gerações que se agonizam
Que sobe aos pés do Eterno como incenso?
Serás tu como os bonzos te fingiram?
Sublime Criador, por que enjeitaste
A pobre criação? Por que a fizeste
Da argila mais impura e negro lado,
E a lançaste nas trevas errabunda
Co'a palidez na fronte como anátema,
Qual lança a borboleta a asas d'oiro
No pântano e no sangue? Tudo é sina:
O crime é um destino-o gênio, a glória
São palavras mentidas-a virtude
É a máscara vil que o vício cobre.
O egoísmo! eis a voz da humanidade.
Foste sublime, Criador dos mundos!
IX
Tudo morre, meu Deus! No mundo exausto
Bastardas gerações vagam descridas.
E a arte se vendeu, essa arte santa
Que orava de joelhos e vertia
O seu raio de luz e amor no povo,
E o gênio soluçando e moribundo
Olvidou-se da vida e do futuro
E blasfema lutando na agonia.
Agonia de morte! Só em torno
No leito do morrer as almas gemem.
E o fantasma da morte gela tudo.
Por que um ardente amor não mais suspira
Notas do coração pelo silêncio
Da noite enamorada? A chama pura
Por que das almas se apagou nas cinzas
E a lira do poeta. se murmura
As ilusões de um mundo visionário,
Por que estala tão cedo? Vagabundo
Adormeci das árvores na sombra
E nos campos em flor errei sonhando,
Coroando-me dos lírios da alvorada.
Arvore prateada da esperança.
Sombra das ilusões, ó vida bela
E sempre bela, e no morrer ainda,
Por que pousei a fronte sobre a relva
A sombra vossa, delirante um dia?
Oh! que morro também! na noite d'alma
Sinto-o no peito que um ardor consome,
No meu gênio que apaga nas orgias,
Que foge o mundo, e o sepulcro teme . .
Exilei-me dos homens blasfemando,
Concentrei-me no fundo desespero,
E exausto de esperança e zombarias
Como um corpo no túmulo lancei-me,
Suicida da fé, no vício impuro.
X
E o mundo? não me entende. Para as turbas
Eu sou um doudo que se aponta ao dedo.
A glória é essa. P'ra viver um dia
Troquei o manto de cantor divino
Pelas roupas do insano.-Os sons profundos
Ninguém os aplaudia sobre a terra.
Para um pouco de pão ganhar da turba,
Como teu corpo no bordel profanas.
-Fiz mais ainda! prostituí meu gênio.
Oh! ditoso Filinto! ele sim pôde
Na miséria guardar seu gênio puro!
Nunca infame beijou a mão dos grandes!
Morreu como Camões, morreu sem nódoa!
Mas eu! A voz do vício arrebatou-me,
Fascinou-me da infâmia o revérbero .
Maldições sobre mim! Abre-te, ó campa!
Ali obscuro dormirei na treva
XI
O santa inspiração! fada noturna,
Por que a fronte não beijas do poeta?
Por que não lhe descansas nos cabelos
A coroa dos sonhos, e rebentam-lhe
Entre as lívidas mãos uma por uma
As cordas do alaúde no vibrá-las?
Ó santa inspiração! por que nas sombras
Não escuta o poeta à meia-noite
Os sons perdidos da harmonia santa
Que o pobre coração de amor lhe enchiam?
Eu fui à noite da taverna à mesa
Bater meu copo à taça do bandido.
Na louca saturnal beber com ele,
Ouvir-lhe os cantos da sangrenta vida
E as lendas de punhal e morticínio.
De vinho e febre pálido, deitei-me
Sobre o leito venal de uma perdida. . .
Comprimi-a no meu exausto peito.
Falei-lhe em meu amor, contei-lhe sonhos,
Do meu passado a dor, as glórias murchas
E os longos beijos da primeira amante...
Amor! amor! meu sonho de mancebo!
Minha sede! meu canto de saudade!
Amor! Meu coração, lábios e vida
A ti, sol do viver, erguem-se ainda,
E a ti, sol do viver, erguem-se embalde!
Ouvi, ouvi no leito da miséria
A pálida mulher junto a meu peito
Contar-me seus amores que passaram,
Falar-me de purezas, d'esperanças....
E soluçava a triste, e ardentes longas,
As lágrimas em fio deslizando
Eu vi caindo sobre o seio dela. . .
Oh! suas emoções, úmidos beijos,
Dos seios o tremor, aqueles prantos,
E os ofegantes ais eram mentira! .
XII
Ah! vem, alma sombria que pranteias.
Por quem choras? Por mim?
Em vez de prantos
Deixa-me suspirar a teus joelhos.
Tu sim és pura. Os anjos da inocência
Poderiam amar sobre teu seio.
Aperta minha mão! Senta-te um pouco
Bem unida a minha alma em meus joelhos,
Assim parece que um abraço aperta
Nossas almas que sofrem. Revivamos!
O passado é um sonho-o mundo é largo,
Fugiremos à pátria. Iremos longe
Habitar num deserto. No meu peito
Eu tenho amores para encher de encantos
Uma alma de mulher Por que sorriste?
Sou um louco. Maldita a folha negra
Em que Deus escreveu a minha sina .
Maldita minha mãe, que entre os joelhos
Não soubeste apertar, quando eu nascia,
O meu corpo infantil! Maldita!
XIII

Escuta:
Sinto uma voz no peito que suspira.
É a alma do poeta que desperta
E canta como as aves acordando
Oh! cantemos! até que a morte fria
Gele nos lábios meus o último canto!
Um cântico de amor, ó minha lira!
Anália! Armia! aparições formosas!
Eu amei sobre a terra as vossas sombras,
O ideal que vos anima e eu buscava,
Vive apenas no céu! vou entre os anjos,
Entre os braços da morte amar com eles!-
XIV
O poeta a tremer caiu no lodo.
A perdida tomou-lhe a fronte branca,
Pô-la ao colo-era lívida-inda o fogo
Lá dentro vacilava agonizando,
Como flutua a claridão da lâmpada
Apagando-se ao vento.

E quando a aurora
Nos céus de nácar acordava o dia,
E nas nuvens azuis o sol purpúreo
Se embalava no eflúvio de ventura
Das flores que se abriam, dos perfumes,
Da brisa morna que tremia as folhas,
Macilenta a mulher no chão da rua
Sentada, a fronte curva sobre os seios
Embalava cantando aquele morto.
Na manta o encobriu. Medrosa a furto
A infeliz o beijou-o pobre amante
Que uma só noite pernoitou com ela
Para aos pés lhe morrer-e sem ao menos
Nas faces dela estremecer um beijo.
Alguém que ali passou, vendo-a tão pálida
Sentada sobre a laje, e tão ardente,
Chegou ao pé-ergueu ao malfadado
A manta. Como súbito acordando
Disse a moça a tremer: -Deixa-o agora.
Ele penou de febre toda a noite,
Deitou-se descansando sobre o leito...
Oh! deixa-o dormir. -Mulher no peito
Sabes quem te dormiu?
-"Que importa o nome?"
Assim falava-me… -Ai de ti, misérrima!
Um poeta morreu. Fronte divina,
Alma cheia de sol, fronte sublime
Que de um anjo devera no regaço
Amorosa viver. . . Morreu Bocage!

G.012.Gemidos de Arte - Augusto dos Anjos


I
Esta desilusão que me acabrunha
É mais traidora do que o foi Pilatos!...
Por causa disto, eu vivo pelos matos,
Magro, roendo a substância córnea da unha.
Tenho estremecimentos indecisos
E sinto, haurindo o tépido ar sereno,
O mesmo assombro que sentiu Parfeno
Quando arrancou os olhos de Dionisos!
Em giro e em redemoinho em mim caminham
Ríspidas mágoas estranguladoras,
Tais quais, nos fortes fulcros, as tesouras
Brônzeas, também giram e redemoinham.
Os pães - filhos legítimos dos trigos -
Nutrem a geração do Ódio e da Guerra....
Os cachorros anônimos da terra
São talvez os meus únicos amigos!
Ah! Por que desgraçada contingência
À híspida aresta sáxea áspera e abrupta
Da rocha brava, numa ininterrupta
Adesão, não prendi minha existência?!
Por que Jeová, maior do que Laplace,
Não fez cair o túmulo de Plínio
Por sobre todo o meu raciocínio
Para que eu nunca mais raciocinasse?!
Pois minha Mãe tão cheia assim daqueles
Carinhos, com que guarda meus sapatos,
Por que me deu consciência dos meus atos
Para eu me arrepender de todos eles?!
Quisera, antes, mordendo glabros talos,
Nabucodonosor ser no Pau d'Arco,
Beber a acre e estagnada água do charco,
Dormir na manjedoura com os cavalos!
Mas a carne é que é humana! A alma é divina.
Dorme num leito de feridas, goza
O lodo, apalpa a úlcera cancerosa,
Beija a peçonha, e não se contamina!
Ser homem! Escapar de ser aborto!
Sair de um ventre inchado que se anoja,
Comprar vestidos pretos numa loja
E andar de luto pelo pai que é morto!
E por trezentos e sessenta dias
Trabalhar e comer! Martírios juntos!
Alimentar-se dos irmãos defuntos,
Chupar os ossos das alimarias!
Barulho de mandíbulas e abdomens!
E vem-me com um desprezo por tudo isto
Uma vontade absurda de ser Cristo
Para sacrificar-me pelos homens!
Soberano desejo! Soberana
Ambição de construir para o homem uma
Região, onde não cuspa língua alguma
O óleo rançoso da saliva humana!
Uma região sem nódoas e sem lixos,
Subtraída à hediondez de ínfimo casco,
Onde a forca feroz coma o carrasco
E o olho do estuprador se encha de bichos!
Outras constelações e outros espaços
Em que, no agudo grau da última crise,
O braço do ladrão se paralise
E a mão da meretriz caia aos pedaços!
II
O sol agora é de um fulgor compacto,
E eu vou andando, cheio de chamusco,
Com a flexibilidade de um molusco,
Úmido, pegajoso e untuoso ao tato!
Reúnam-se em rebelião ardente e acesa
Todas as minhas forças emotivas
E armem ciladas como cobras vivas
Para despedaçar minha tristeza!
O sol de cima espiando a flora moça
Arda, fustigue, queime, corte, morda!...
Deleito a vista na verdura gorda
Que nas hastes delgadas se balouça!
Avisto o vulto das sombrias granjas
Perdidas no alto...Nos terrenos baixos,
Das laranjeiras eu admiro os cachos
E a ampla circunferência das laranjas.
Ladra furiosa a tribo dos podengos.
Olhando para as pútridas charnecas
Grita o exército avulso das marrecas
Na úmida copa dos bambus verdoengos.
Um pássaro alvo artífice da teia
De um ninho, salta, no árdego trabalho,
De árvore em árvore e de galho em galho,
Com a rapidez duma semicolcheia.
Em grandes semicírculos aduncos,
Entrançados, pelo ar, largando pelos,
Voam à semelhança de cabelos
Os chicotes finíssimos dos juncos.
Os ventos vagabundos batem, bolem
Nas árvores. O ar cheira. A terra cheira...
E a alma dos vegetais rebenta inteira
De todos os corpúsculos do pólen.
A câmara nupcial de cada ovário
Se abre. No chão coleia a lagartixa.
Por toda a parte a seiva bruta esguicha
Num extravasamento involuntário.
Eu, depois de morrer, depois de tanta
Tristeza, quero, em vez do nome - Augusto,
Possuir aí o nome dum arbusto
Qualquer ou de qualquer obscura planta!
III
Pelo acidentalíssimo caminho
Faísca o sol. Nédios, batendo a cauda,
Urram os bois. O céu lembra uma lauda
Do mais incorruptível pergaminho.
Uma atmosfera má de incômoda hulha
Abafa o ambiente. O aziago ar morto a morte
Fede. O ardente calor da areia forte
Racha-me os pés como se fosse agulha.
Não sei que subterrânea e atra voz rouca,
Por saibros e por cem côncavos vales,
Como pela avenida das Mappales,
Me arrasta à casa do finado Tôca!
Todas as tardes a esta casa venho.
Aqui, outrora, sem conchego nobre,
Viveu, sentiu e amou este homem pobre
Que carregava canas para o engenho!
Nos outros tempos e nas outras eras,
Quantas flores! Agora, em vez de flores,
Os musgos, como exóticos pintores,
Pintam caretas verdes nas taperas.
Na bruta dispersão de vítreos cacos,
À dura luz do sol resplandecente,
Trôpega e antiga, uma parede doente
Mostra a cara medonha dos buracos.
O cupim negro broca o âmago fino
Do teto. E traça trombas de elefantes
Com as circunvoluções extravagantes
Do seu complicadíssimo intestino.
O lodo obscuro trepa-se nas portas.
Amontoadas em grossos feixes rijos,
As lagartixas dos esconderijos
Estão olhando aquelas coisas mortas!
Fico a pensar no Espírito disperso
Que, unindo a pedra ao gneiss e a árvore à criança,
Como um anel enorme de aliança,
Une todas as coisas do Universo!
E assim pensando, com a cabeça em brasas
Ante a fatalidade que me oprime,
Julgo ver este Espírito sublime,
Chamando-me do sol com as suas asas!
Gosto do sol ignívomo e iracundo
Como o reptil gosta quando se molha
E na atra escuridão dos ares, olha
Melancolicamente para o mundo!
Essa alegria imaterializada,
Que por vezes me absorve, é o óbolo obscuro,
É o pedaço já podre de pão duro
Que o miserável recebeu na estrada!
Não são os cinco mil milhões de francos
Que a Alemanha pediu a Jules Favre...
É o dinheiro coberto de azinhavre
Que o escravo ganha, trabalhando aos brancos!
Seja este sol meu último consolo;
E o espírito infeliz que em mim se encarna
Se alegre ao sol, como quem raspa a sarna,
Só, com a misericórdia de um tijolo!...
Tudo enfim a mesma órbita percorre
E as bocas vão beber o mesmo leite...
A lamparina quando falta o azeite
Morre, da mesma forma que o homem morre.
Súbito, arrebentando a horrenda calma,
Grito, e se grito é para que meu grito
Seja a revelação deste Infinito
Que eu trago encarcerado na minh'alma!
Sol brasileiro! Queima-me os destroços!
Quero assistir, aqui, sem pai que me ame,
De pé, à luz da consciência infame,
À carbonização dos próprios ossos!

G.011.Gazetinha - Adelino Fontoura


(No dia do seu primeiro aniversário)
Eu não venho trazer a vossa excelência
Um fantástico mimo "high-lifeano";
Possuo um coração meridiano,
Mas não vivo nas pompas da Regência.
Porém, se eu fosse um príncipe indiano,
De sangue azul e antiga descendência,
Possuindo a Golconda, essa opulência,
E os tesouros do Índico Oceano,
Nessas pequenas mãos, tímido e mudo,
Minha senhora, eu deporia tudo...
Como os brilhantes de um colar, dispersos!
Mas... se sou pobre, o que tão mal me fica,
Consinta que, sem luvas de pelica,
Venha depor-lhe aos pés estes meus versos.
4 de maio de 1882.

G.010.Gaivotas - Angêla Bretas


Cortando nuvens
Plainando ao vento
Asas abertas
Em voos rasantes
Mergulhas no mar
Tua visão é pura magia
Quisera poder
Em tuas asas voar
Descobrir mundos
Dormir ao relento
Beijar o sol
Abraçar a lua
Ter o topo das árvores como abrigo
E o mar como refúgio
Ir sem ter volta
Ser dona de mim
Livre, leve e solta
Como a ti
Gaivota