terça-feira, 30 de junho de 2020

A.127.A Pesca - Affonso Romano Santana


O anil
o anzol
o azulo silêncio
o tempo
o peixea agulha
vertical
mergulha
a água
a linha
a espumao tempo
o peixe
o silêncioa garganta
a âncora
o peixea boca
o arranco
o rasgãoaberta a água
aberta a chaga
aberto o anzolaquelíneo
agil-claro
estabanadoo peixe
a areia
o sol

A.126.A Implosão da Mentira ou o Episódio do Riocentro - Affonso Romano Santana


Fragmento 1
Mentiram-me.Mentiram-me ontem
e hoje mentem novamente.
Mentem
de corpo e alma, completamente.
E mentem de maneira tão pungente
que acho que mentem sinceramente.
Mentem, sobretudo, impune/mente.
Não mentem tristes.Alegremente
mentem. Mentem tão nacional/mente
que acham que mentindo história afora
vão enganar a morte eterna/mente.
Mentem.
Mentem e calam. Mas suas frases
falam. E desfilam de tal modo nuas
que mesmo um cego pode ver
a verdade em trapos pelas ruas.
Sei que a verdade é difícil
e para alguns é cara e escura.
Mas não se chega à verdade
pela mentira, nem à democracia
pela ditadura.
Fragmento 2
Evidente/mente a crer
nos que me mentem
uma flor nasceu em Hiroshima
e em Auschwitz havia um circo
permanente. Mentem. Mentem caricaturalmente.
Mentem como a careca
mente ao pente,
mentem como a dentadura
mente ao dente,
mentem como a carroça
à besta em frente,
mentem como a doença
ao doente,
mentem clara/mente
como o espelho transparente.
Mentem deslavadamente,
como nenhuma lavadeira mente
ao ver a nódoa sobre o linho.
Mentem
com a cara limpa e nas mãos
o sangue quente.
Mentem
ardente/mente como um doente
em seus instantes de febre.
Mentem
fabulosa/mente como o caçador que quer passar
gato por lebre.
E nessa trilha de mentiras
a caça é que caça o caçador
com a armadilha.
E assim cada qual
mente industrial? mente,
mente partidária? mente,
mente incivil? mente,
mente tropical?mente,
mente incontinente?
mente,
mente hereditária?
mente,
mente, mente, mente.
E de tanto mentir tão brava/mente
constroem um país
de mentira
-diária/mente.
Fragmento 3
Mentem no passado. E no presente
passam a mentira a limpo. E no futuro
mentem novamente.
Mentem fazendo o sol girar
em torno à terra medieval/mente.
Por isto, desta vez, não é Galileu
quem mente.
mas o tribunal que o julga
herege/mente.
Mentem como se Colombo partin-
do do Ocidente para o Oriente
pudesse descobrir de mentira
um continente. Mentem desde cabral, em calmaria,
viajando pelo avesso, iludindo a corrente
em curso, transformando a história do país
num acidente de percurso.
Fragmento 4
Tanta mentira assim industriada
me faz partir para o deserto
penitente/mente, ou me exilar
com Mozart musical/mente em harpas
e oboés, como um solista vegetal
que absorve a vida indiferente.
Penso nos animais que nunca mentem.
mesmo se têm um caçador à sua frente.
Penso nos pássaros
cuja verdade do canto nos toca
matinalmente.
Penso nas florescuja verdade das cores escorre no mel
silvestremente. Penso no sol que morre diariamente
jorrando luz, embora
tenha a noite pela frente.
Fragmento 5
Página branca onde escrevo. Único espaço
de verdade que me resta. Onde transcrevo
o arroubo, a esperança, e onde tarde
ou cedo deposito meu espanto e medo.
Para tanta mentira só mesmo um poema
explosivo-conotativo
onde o advérbio e o adjetivo não mentem
ao substantivo
e a rima rebenta a frase
numa explosão da verdade. E a mentira repulsiva
se não explode pra fora
pra dentro explode
implosiva.

A.125.Atração e Repulsão - Adelino Fontoura


Eu nada mais sonhava nem queria
Que de ti não viesse, ou não falasse;
E como a ti te amei, que alguém te amasse,
Coisa incrível até me parecia.
Uma estrela mais lúcida eu não via
Que nesta vida os passos me guiasse,
E tinha fé, cuidando que encontrasse,
Após tanta amargura, uma alegria.
Mas tão cedo extinguiste este risonho,
Este encantado e deleitoso engano,
Que o bem que achar supus, já não suponho.
Vejo, enfim, que és um peito desumano;
Se fui té junto a ti de sonho em sonho,
Voltei de desengano em desengano.

A.124.Antes de Partir - Adelino Fontoura


"Venho ensopar de lágrimas o lenço No tristíssimo adeus de despedida; Em breve a Pátria vou deixar perdida Além - na curva do horizonte imenso! Em breve sobre o mar profundo e extenso Adejará minh'alma dolorida, Como a gaivota errante, foragida, Sem ter um ninho onde pousar, suspenso! Então, senhora, hei de pensar, tristonho, Revendo a vossa angélica bondade, Neste ninho de amor calmo e risonho; E triste, sobre a triste imensidade, Como quem despertou de um ledo sonho, Hei de chorar o pranto da saudade. "

A.123.Anímico - Adélia Prado


Nasceu no meu jardim um pé de mato
que dá flor amarela.
Toda manhã vou lá pra escutar a zoeira
da insetaria na festa.
Tem zoada de todo jeito:
tem do grosso, do fino, de aprendiz e de mestre.
É pata, é asas, é boca, é bico, é grão de
poeira e pólen na fogueira do sol.
Parece que a arvorinha conversa.

A.122.A Serenata - Adélia Prado

Uma noite de lua pálida e gerânios ele viria com boca e mão incríveis tocar flauta no jardim. Estou no começo do meu desespero e só vejo dois caminhos: ou viro doida ou santa. Eu que rejeito e exprobo o que não for natural como sangue e veias descubro que estou chorando todo dia, os cabelos entristecidos, a pele assaltada de indecisão. Quando ele vier, porque é certo que ele vem, de que modo vou chegar ao balcão sem juventude? A lua, os gerânios e ele serão os mesmos - só a mulher entre as coisas envelhece. De que modo vou abrir a janela, se não for doida? Como a fecharei, se não for santa?

A.121.Auto Retrato - Adailton Medeiros

Diante do espelho grande do tempo sinto asco tenho ódio descubro que não sou mais menino Aos 50 anos (hoje - 16 / 7 / 88 (câncer) sábado - e sempre com medo olhando para trás e para os lados) questiono-me (lagarto sem rabo): - como deve ser bom nascer crescer envelhecer e morrer Diante do espelho grande na porta (o nascido no jirau: meu nobre catre) choro-me: feto asno velhote pétreo ser incomunicável sem qualquer detalhe que eu goste (Um espermatozóide feio e raquítico) Como nas cartas do tarô onde me leio - eis-me aqui espelho grande quebrado ao meio

A.120.Acalanto - Ada Ciocci

Vai amado. Busca por onde quiseres, com quem quiseres, como quiseres, o prazer. Até mesmo, aquele prazer que um dia alguém apelidou de amor. E, se por acaso te cansares e, do compromisso que um dia nos uniu te lembrares, se desejares, volta. Serei a que conforta. Não saberás da dor, da saudade, das lágrimas sentidas que tua ausência causou.

A.118.A Intangível Beleza - Abgar Renaul


Saiu da mão direita de Deus e é contemporânea do Gênesis.
Seus curvos braços, feitos para fecharem-se,
ainda estão imóveis, em golfo abertos,
friamente, diante de todas as águas,

com seus peixes, suas ondas, seu sal cheio de música.
Apenas os estremece, às vezes, um ritmo de fuga ante o esplendor do fogo próximo.
Compõem sua boca as curvas do infinito e a luz,
e habitam seus olhos de maio e de distância

os vocábulos de oculto país, verdes, esveltos e evasivos.
O romper do dia espera o alvorecer dos seus pés no chão,
caem as noites e murcham os coraçõe ao esmorecer de suas pálpebras,
e as tardes refugiam-se em seus cabelos de crepúsculo.

Seu ser interior e corporal é a linfa de uma fonte ausente:
pensá-lo é escalar o vértice, regressar às origens,
ver a poesia nascendo e projetando no mundo o seu mistério.
Que gesto apartará as colunas e separará terras e águas?

Que tacto se delumbrará nos brancos astros?
Que lábio incendiará a ânfora no abismo?
(Do ninho de suas mãos obscuros pássaros cantam:
sua beleza é uma ilha de nenhum mar.)

A.119.Alegoria - Abgar Renault


Em vão busco acender um diálogo contigo:
a alma sem tom da tua boca de água e vento
despede cinza, névoa e tempo no que digo,
devolve ao chão o meu mais longo pensamento,

e entre cactos estira esse deserto ambíguo
que vem da tua altura ao vale onde me ausento,
procurando o teu verbo. O silêncio, investigo-o,
e ouço o naufrágio, o vácuo e o deperecimento.

Sonho: desces a mim de um céu de algas e rosas,
falas às minhas mãos vozes vertiginosas,
e palavras de flor no teu cabelo enastro.

Desperto: pairas ainda em silêncio e infinita:
meu ser horizontal chora treva e medita
tua distância, teu fulgor, teu ritmo de astro.