quinta-feira, 28 de outubro de 2021

O.092.Os desaparecidos - Affonso Romano Santana


De repente, naqueles dias, começaram
a desaparecer pessoas, estranhamente.
Desaparecia-se. Desaparecia-se muito
naqueles dias.
Ia-se colher a flor oferta
e se esvanecia.
Eclipsava-se entre um endereço e outro
ou no táxi que se ia.
Culpado ou não, sumia-se
ao regressar do escritório ou da orgia.
Entre um trago de conhaque
e um aceno de mão, o bebedor sumia.
Evaporava o pai
ao encontro da filha que não via.
Mães segurando filhos e compras,
gestantes com tricots ou grupos de estudantes
desapareciam.
Desapareciam amantes em pleno beijo
e médicos em meio à cirurgia.
Mecânicos se diluiam
- mal ligavam o tôrno do dia.
Desaparecia-se.
Desaparecia-se muito
naqueles dias.
Desaparecia-se a olhos vistos
e não era miopia.
Desaparecia-se
até a primeira vista. Bastava
que alguém visse um desaparecido
e o desaparecido desaparecia.
Desaparecia o mais conspícuo
e o mais obscuro sumia.
Até deputados e presidentes esvaneciam.
Sacerdotes, igualmente, levitando
iam, arefeitos, constatar no além,
como os pescadores partiam.
Desaparecia-se.
Desaparecia-se muito
naqueles dias.
Os atores no palco
entre um gesto e outro, e os da platéia
enquanto riam.
Não, não era fácil ser poeta naqueles dias.
Porque os poetas, sobretudo
- desapareciam.
Se fosse ao tempo da Bíblia, eu diria
que carros de fogo arrebatavam os mais puros
em mística euforia.
Não era. É ironia.
E os que estavam perto, em pânico, fingiam
que não viam. Se abstraíam.
Continuavam seu baralho a conversar demências
com o ausente, como se ele estivesse ali sorrindo
com suas roupas e dentes.
Em toda família à mesa havia
uma cadeira vazia, a qual se dirigiam.
Servia-se comida fria ao extinguido parente
e isto alimentava ficções
- nas salas e mentes
enquanto no palácio, remorsos vivos boiavam
- na sopa do presidente.
As flores olhando a cena, não compreendiam.
Indagavam dos pássaros, que emudeciam.
As janelas das casas, mal podiam crer
- no que viam.
As pedras, no entanto,
gravavam os nomes dos fantasmas
pois sabiam que quando chegasse a hora
por serem pedras, falariam.
O desaparecido é como um rio:
- se tem nascente, tem foz.
Se teve corpo, tem ou terá voz.
Não há verme que em sua fome
roa totalmente um nome. O nome
habita as vísceras da fera
Como a vítima corrói o algoz.
E surgiam sinais precisos
de que os desaparecidos, cansados
de desaparecerem vivos
iam aparecer mesmo mortos
florescendo com seus corpos
a primavera de ossos.
Brotavam troncos de árvores,
rios, insetos e nuvens em cujo porte se viam
vestígios dos que sumiam.
Os desaparecidos, enfim,
amadureciam sua morte.
Desponta um dia uma tíbia
na crosta fria dos dias
e no subsolo da história
- coberto por duras botas,
faz-se amarga arqueologia.
A natureza, como a história,
segrega memória e vida
e cedo ou tarde desova
a verdade sobre a aurora.
Não há cova funda
que sepulte
- a rasa covardia.
Não há túmulo que oculte
os frutos da rebeldia.
Cai um dia em desgraça
a mais torpe ditadura
quando os vivos saem à praça
e os mortos da sepultura.

O.091.Or Maritim - Alexei Bueno


Este é o tempo das barcaças.
O mar sempre resta! O mar
É a massa de modelar
Do vento fazer desgraças.
Ah! que profunda alegria!
Vontade de comer ervas!
Pastar! Nova fantasia!
Erguer as salas das servas!
Sim! Pastar! Grama molhada
Onde brilha verde o sol!
Cuspir ostras de um farol
Numa barba almirantada!
Adeus! Irei pelos campos
Mordendo a grama com ardor
No meio dos pirilampos
Qual Nabucodonosor.
Destroçarei com meus dentes
As ovelhas desgarradas
E os pastores nas estradas
Me caçarão descontentes.
Mas sem me achar. Pois ao mar
já terei saltado então
Soltando gritos pelo ar
Como um pássaro poltrão.
Até que chegue a um navio
E urrando cheio de rum
Mate a todos, um por um,
Até deixá-lo vazio.
Então me dirijo a um porto,
Contrato a ralé da escória
E em capitão meio torto
Me sagro cheio de glória!
Pelos mares e oceanos
Baleia Bêbada é o barco!
O terror prepara o charco
Do pântano dos meus planos!
Mil cascos são abordados!
Embebedam-se os bebês!
Os varões viram varados!
E as damas lutam com seis!
Junto o ouro, o ouro, o ouro!
Os homens andam na prancha
E a minha pele se mancha
Das cores do meu tesouro!
O sol é dourado! O sol
É uma moeda afinal
Que ofusca, e que no arrebol
Tomba em seu cofre de sal!
A luz! A luz é a vida!
Mas a sinistra caterva
Só quer beber, e me enerva
Dançando entenebrecida.
Pulando do alto dos mastros
Como macacos no azul
E vomitando nos astros
Ondas de prata e paul.
Bebem, bebem noite e dia,
Vagalhões de vinho e gim
E só lhes surge no fim
Uma nenhuma alegria.
Enquanto a escutar o baque
De cada grogue que rola
Fazendo as contas do saque
Minha alma se enche de cola.
Imóvel, noites a fio,
Escriturando o tesouro
Enquanto como um besouro
Voa zunindo o navio.
Mas não! Não foi para isto
Que fugi de toda a terra!
Estranha estátua de Cristo
Largada nos chãos da guerra!
Não! Surge o sol. É a aurora!
Com um grito, armado de um pau,
Vou surrando toda a nau
Jogando os homens pra fora!
Pela borda! Urra! É a alegria!
Todos caem! Lá na água
Os tubarões neste dia
Não sentirão qualquer mágoa!
Jogo o resto deles! Lanço
Um lampião no paiol!
Tudo explode! Rumo ao sol
Como um foguete eu avanço!
Vou voando, enquanto chove
Minha gorda arca roubada
Sobre o mar que se comove,
Como uma chuva dourada!
Subo. Subo. O sol se amplia.
Desmaio. Acordo caindo
No continente, e ele rindo
Abre a bocarra sadia.
Vou tombar bem numa igreja!
Os fiéis, sem compreender,
Rezando, temem que eu seja
Um anjo, e choram, por crer!
Surro todos eles. Corro
Para o campo. Atrás de mim
Ferozes, com o seu mastim,
Vêm já os pastores de gorro.
Depois os donos do barco,
E os parentes dos saqueados,
E os outros, de amor bem parco,
Surgem por todos os lados!
Querem todos me pegar!
Vêm correndo! Chegam perto!
Mas como um monstro desperto
Eu paro e grito a babar!
Vôo em cima deles! Chuto
Suas cabeças sem nada!
Quebro, espanco, e como um bruto
Fujo da terra empestada!
Fujo, idiota e feliz,
Para o sol, o sol, o sol,
Que ri como um grande atol
De dentes de ouro e de giz!
Fujo, correndo, a alma fora,
Sorrindo, o eleito do dia,
Até chegar aonde mora
A eterna e interna alegria!
Em busca de algo, o futuro,
Que ri porque vai viver
E já boceja a se erguer
Enquanto me olha do escuro
Chegando lá, e escarrando
No que houve antes, e assim
Gargalhando, e vos rasgando,
Vida e versos. Logo: Fim!

O.090.Ohs! E ais! - Adelino Fontoura


Essa mulher que tantos ohs! provoca,
Essa mulher que tantos ais! arranca,
Essa mulher quem é? Por que abre a boca
O Silvestre quando a vê? - É branca?
É morena? É francesa? É carioca?
As belezas helênicas desbanca?
O seu olhar os cérebros desloca?
O seu sorriso as lágrimas estanca?
Vamos, Raimundo, tu que viste há dias
A mágica visão, o ser terrestre,
Por quem já deste uns ais! e uns ohs! eu sinto,
Tira as garras da dúvida ao Matias,
Faze valsar o Lins, rir o Silvestre
E reler os "Subsídios" o Filinto.

O.089.Oh! Páginas da Vida que Eu Amava - Alvares de Azevedo


Oh! Páginas da vida que eu amava,
Rompei-vos! nunca mais! tão desgraçado! ...
Ardei, lembranças doces do passado!
Quero rir-me de tudo que eu amava!
E que doido que eu fui! como eu pensava
Em mãe, amor de irmã! em sossegado
Adormecer na vida acalentado
Pelos lábios que eu tímido beijava!
Embora - é meu destino. Em treva densa
Dentro do peito a existência finda
Pressinto a morte na fatal doença!
A mim a solidão da noite infinda!
Possa dormir o trovador sem crença
Perdoa minha mãe - eu te amo ainda!

O.088.Oh Céus - Angela Bretas


- Rondel -
Oh céus! Onde estás?- Exclamo aos mares e ventos.
Sem resposta, sem volta, sem entender permaneço...
Esqueci de rasgar do calendário os momentos.
E indagando eu vago, eu rogo. Incerta, padeço.
Onde errei? Não encontro respostas, de ti não esqueço.
Como fui mergulhar nestes rasos tormentos?
Oh céus! Onde estás?- Exclamo aos mares e ventos.
Sem resposta, sem volta, sem entender permaneço...
Será que pequei, que magoei, que feri: Julgamentos?
Quem és tu que me assombra. Ao recordar-te emudeço...
O que faço, o que digo? - Não sei, me perdi em lamentos...
Não temas, não fujas, não negue! - Será que não te mereço?
Oh céus! Onde estás?- Exclamo aos mares e ventos.
O que é um Rondel? É um tipo de poema de forma invariável, pois é composto, necessariamente, com dois quartetos e uma quintilha. Uma característica do Rondel (que é de origem francesa), é que os dois primeiros versos do primeiro quarteto serão os dois últimos versos do segundo quarteto. O último verso da quintilha, e do poema, será sempre o primeiro verso do primeiro quarteto. O Rondel, devido à sua estrutura, trabalha somente com duas rimas: ABAB - BAAB - ABABA, conforme se vê acima.

O.087.Ode IX - Alexei Bueno


Só superando encontramos alguma alegria,
Escravos dialéticos de um delírio de opostos,
Só esmagando, só conquistando, nunca por nós mesmos repletos,
Só penetrando nos muros. E quantas cidades tomadas,
Mesmo portão gargalhando e estirando uma língua de fogo,
Gritam vermelhas e ardem nas nossa íris exaustas.
Só pisando subimos,
Só derrotando vencemos,
Só conformando o outro a nós o amor nos alcança,
E tudo isso com sermos, seguramente sermos o outro
Até que nada nos reste de escapatória ou abrigo.
Não somos, não seremos nunca
Como Dionisos, ébrio conquistando a Índia
Entre tambores e tirsos, aclamado das ninfas, dos sátiros,
Um ramo de vinha é o seu chicote, um nariz vermelho a sua espada,
E os conquistados o aplaudem e beijam e vêm engrossar o triunfo
Que Pã conduz na vanguarda, tocando na flauta.
...Mas onde estará ele agora, em que escarpa, em que umbrosa
Solidão de enluarados galhos, rirá ainda o pai da alegria?
Nenhum devoto liba em suas aras, os ecos somente
Veneram-no ainda. De que rirá, que verá que nós nunca veremos,
O desterrado senhor de um plácido pacto entre os homens,
Enquanto nós por aqui, às seis horas da tarde,
Em meio às latas de lixo, descemos em bando às entranhas da terra?
Fulminante é qualquer nossa glória, pisando os caídos,
Que outra alegria além desta e da arte, da prece e do amor nos foi dada?
( - Ouçam, nenhum navio aparecerá.
Que ficará de nós? E no entanto matamos,
Sem pena, sem pranto, por sermos por último a festa dos peixes.)
Pois vejam como ele caminha,
Vejam como ele avança,
O filho de Filipe, o descendente de Hércules, deiforme e invicto,
Vejam como ele marcha
Sobre Darios vencidos e humilhadíssimas púrpuras,
E abraça as muralhas, e salta os desertos, e aplaina as montanhas,
Novo Aquiles sem flecha de Páris que o acerte, humanismo deus
Musculoso e potente em beleza triunfante.
Se nos fosse dado ser isso,
Um Alexandre cada um, varrendo a Terra,
Plena nos seria a vida. Mas a bonança é a nossa inimiga,
A calmaria, não a tempestade, é que nos espera ao varar o oceano,
Nos desfiladeiros minúsculos, com o único perigo do nada,
é que nós marcharemos,
Ainda que borbulhe em nós o canto do deus, e Amor Vencedor,
Durante ou após nosso olhar, pisoteie a disputa dos vermes.
( - E mesmo que venha o navio
Que seremos além de uma sombra na história dos astros?)
E ele continua
Até a Bactriana, a Índia novamente
Sem tirsos, sem vinha, dançando despido, tomado
Da ígnea plenitude de um deus,
Como nós nunca fomos, até que um mosquito,
Invulnerável, divino, o aferroe e destrua
na corrupta cidade de inúmeras portas.
(O esquecimento é a nossa lepra, e assim, no dia final
Um dos quinze falou, um navio passara sem vê-los:
- Gravemos numa tábua nossos nomes, tudo o que sofremos,
E a preguemos no mastro. Assim talvez os homens conheçam
O que nós passamos, nós, os da Medusa. -
Todos os conheceram. Mas um pintor tosquiado,
Unicamente, o soube.)
Não, não é esta a vitória,
Antes com Roxane na beira do rio
Qual Dionisos sábio consolando Ariadne
Na vermelha Naxos.
Não é essa a vitória. Não escutes, bêbado
Com a miragem cósmica, o conselho de Krishna
Ao indeciso Arjuna,
Pois se tudo é guerra,
E o tempo a guerra é infindável, sejamos o vento
Que sussurra entre as armas, sejamos a terra
Que os sequiosos exércitos sonham e que é de ninguém,
E o silêncio imóvel
Entre dois estampidos, que a ambos devora!
Sejamos
No fragor de estandartes, a ave que os roça,
Na orgia do fogo,
A chuva infantil que inesperada desce,
No borbulhar das almas o sono viscoso
Dos caracóis no lodo,
No estampado em pânico das pegadas fugindo
Do chão que as convida
A relva que o cobre.
Pois nosso é o poder e a glória, e do que lacerarmos
No nosso corpo, o que existe, cairá nosso sangue na terra.

O.086.Ode a Rasunda - Abelardo Romero


Torres coroadas de brasas
correndo atrás de comboios,
a rubra boca rotunda
dois faróis falando às vagas,
e nas balizas celestes
pipilo de estranhas aves.

Na orla da noite ornada
de luzes senta-se o Rio,
e, na escuridão profunda,
em vermelho sobre o negro
datilografa seu augúrio:
chove amanhã em Rasunda.

A manhã já não divulga
o chilreio das gaivotas,
nem o marulho dos cascos
de potros de escamas alvas
se contorcendo feridos
pela chama que os inunda.

O boi deitado no pasto
espanta com a orelha bamba
irisada mosca imunda
que lhe perturba a audição.
Galápagos colam o ouvido
ao planalto ressoante.

Os que falam dentro d’água
anunciam pelo mundo:
crisântemos sobre crisântemos
nas cadeiras numeradas.
Pálidas bocas ansiosas
de baleias moribundas.

Bravo! The kings of soccer.
Sie freunten sich wie die kinder
Ah, c’est un merveilleux ballet.
Es tu hijo, madre España!
Per jovem, il brasile é nato
col vivo pallone al pie.

Os suecos correm loucos,
pateiam como corceis
sobre seu campo de colza.
Enrugam o rosto no esforço.
O Brasil baila em alvoroço.
Brinca com a bola nos pés.

Viena, Londres, Moscou,
Paris, Berlim e Belfast
dilatam as órbitas ôcas
dos vídeos. E em Estocolmo
a língua dos galhardetes
vibra por nós em Rasunda.

Para o céu sobem lianas
pelas sebes de cimento.
Mãos e bocas, olhos soltos
saltando pelas persianas,
e no lagar dos conventos
mistura de pranto e mosto.

Sirenes, sinos, girândolas.
Não se janta. Ninguém ama.
E os rios descem salobros
na larga face fecunda.
Pais e filhos dormem juntos
sobre os louros de Rasunda.

O.083.O Vestibular da Vida - Affonso Romano Santana


Um enduro sem moto, um rali sem carro, uma maratona onde, ao invés de atletas, correm paraplégicos, cegos, presidiários, grávidas e doentes em suas macas, esta é a imagem que nos deixa este vestibular realizado esta semana, mobilizando centenas de milhares de jovens em todo o país.
Várias fotos mostram jovens correndo desabalados dentro de seus jeans justos e camisetas palavrosas em direção ao portão da universidade, como se fossem dar um salto tríplice. Como se fossem dar um salto sem vara. Como se fossem dar um salto na vida. Ao lado, aparecem parentes incentivando o corredor-saltador, aparecem colegas gritando em torcida. Correi, jovens, correi, que estreita é a porta que vos conduzirá à salvação! E ali está, como São Pedro, um porteiro ou guarda, que vai bater a porta na cara do retardatário, que chorará, implorará, arrancará os cabelos num ranger de dentes, enquanto, saltitantes, os mais espertos pulam (ocultamente) um muro e penetram o paraíso (ou inferno da múltipla escolha).
A Telerj declarou que teve que acordar mais de 10 mil jovens pelo despertador telefônico. Carlinhos Gordo, o maior ladrão de carros do país, estava entre os 39 presidiários que, no Rio, fizeram, mesmo na cadeia, o exame. Mais de trinta deficientes visuais tiveram que tatear as 51 folhas em braile. Maria Alice Nunes teve um filho e saiu da maternidade com o recém-nascido no colo para enfrentar o unificado. Um índio cego - o guarani José Oado, 24 anos - disputa uma vaga em História (ou na história?). Andréa Paula Machado, 17 anos, teve que interromper o exame escrito várias vezes, para o prazer oral do bebê que, entre uma mamada e outra, voltava ao colo da avó. Dois fiscais que transportavam as provas no caminho de Petrópolis morreram num acidente. Um estudante com rubéola fez, num posto médico, prova ao lado de outro com catapora. Todas as idades ali estavam representadas: Márcia Cristina da Silva, 13 anos, vejam só!, já começou a treinar para o vestibular de Medicina em 88, e neste só achou difícil a prova de literatura. Mas lá estava também Edgar Carvalho, 73 anos, advogado, trocando as delícias da aposentadoria pela idéia de se tornar médico e ainda ser útil aos outros. Por isto, discordo da jovem que o interpelou acusando-o de estar tirando a vaga de outro. Socialmente é melhor um velho de 73 anos que qualquer dos jovens que faltaram à prova porque dormiam, que não foram classificados porque achavam que vestibular era loto e vivem a ociosidade daninha à custa de seus pais.
Mas, de todos os casos, impressiona mais o de Maria Regina Gonçalves, uma enfermeira de 38 anos. Vejam que estória mirabolante.
Lá vai a nossa Maria Regina. Mas não vai simplesmente. Vai grávida. Vai grávida, mas não é uma grávida amparada pelo seu marido, mas uma grávida solteira, enfrentando o mundo com sua barriga e coragem. No entanto, hora e meia antes do exame, em São Cristóvão, é assaltada por três marmanjos covardes, que tomam dela os documentos, 200 mil cruzeiros, e o pior: lhe dão uma porção de safanões, num exercício de sadismo matinal.
Maria Regina poderia depois disto voltar chorando para casa e ficar lamuriando o resto da vida. Fez o contrário: foi em frente, embora, ao chegar no local, soubesse que uma outra colega, também assaltada, desistira do exame. Maria Regina deu um jeito, arranjou até cópia xerox de sua carteira de identidade, fez a prova, comprometendo-se a mostrar os outros documentos mais tarde.
Mas, de noite, teve uma hemorragia. Pena que os ladrões não pudessem ver a cena, pois ficariam mais felizes. O médico lhe ordena "repouso absoluto". Ela ali "repousando", mas agoniada, porque a burocracia lhe exigia comprovações de documentos para validar os exames. Como desgraça pouca é bobagem, quatro dias depois morre o pai de seu namorado, daí a uns dias ela aborta e teve que ficar mesmo internada.
E vede agora, ó filhinhos e filhinhas do papai, que esbanjais vossos corpinhos sem destino nas praias da irresponsabilidade! Maria Regina foi a primeira colocada (nota 96) no concurso para Enfermagem e Sanitarismo. Tirou primeiro lugar e seu nome não apareceu na lista. Ainda vai ter que provar que existe. Mas já impetrou mandado de segurança. É claro que vai ganhar.
(12.01.86) Texto extraído do livro "A Mulher Madura", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1986, pág. 111.

O.085.Objeto de amor - Adélia Prado


De tal ordem é e tão precioso
o que devo dizer-lhes
que não posso guardá-lo
sem que me oprima a sensação de um roubo:
cu é lindo!
Fazei o que puderdes com esta dádiva.
Quanto a mim dou graças
pelo que agora sei
e, mais que perdôo, eu amo.

O.084.O Vestido - Adélia Prado


No armário do meu quarto
escondo de tempo e traça meu vestido
estampado em fundo preto.
É de seda macia desenhada em campânulas
vermelhas à ponta de longas hastes delicadas.
Eu o quis com paixão e o vesti como um rito,
meu vestido de amante.
Ficou meu cheiro nele, meu sonho, meu corpo ido.
É só tocá-lo, volatiza-se a memória guardada:
eu estou no cinema e deixo que segurem minha mão.
De tempo e traça meu vestido me guarda.

O.082.O Suícida - Affonso Romano Santana


O suicídio
não é algo pessoal
Todo suicida
nos leva
ao nosso funeral
O suicida
não é só cruel consigo.
É cruel, como cruel
só sabe ser
- o melhor amigo.
O suicida
é aquele que pensa
matar seu corpo a sós
Mas o seu eu se enforca
num cordão de muitos nós.
O suicida
não se mata em nossas costas.
Mata-se em nossa frente
usando seu próprio corpo
dentro de nossa mente.
O suicida
não é o operário
É o próprio industrial, em greve.
É o patrão
que vai aonde
o operário não se atreve.
Todo homem é mortal.
Mas alguns, mais que outros,
fazem da morte
- um ritual
O suicida, por exemplo,
é um vivo acidental.
É o general
que se equivocou de inimigo
e cravou sua espada
na raiz do próprio umbigo.
Mais que o espectador
que saiu no entreato,
o suicida
é um ator
que questionou o teatro.
O suicida
é um retratista
que às claras se revela.
Ao expor seu negativo,
queima o retrato
- e se vela.
O suicida, enfim,
é um poeta perverso
e original
que interrompeu seu poema
antes do ponto final.

O.081.O Poeta Moribundo - Alves de Azevedo


Poetas! amanhã ao meu cadáver
Minha tripa cortai mais sonorosa!
Façam dela uma corda, e cantem nela
Os amores da vida esperançosa!
Cantem esse verso que me alentava...
O aroma dos currais, o bezerrinho,
As aves que na sombra suspiravam,
E os sapos que cantavam no caminho!
Coração, por que tremes? Se esta lira
Nas minhas mãos sem força desafina,
Enquanto ao cemitério não te levam
Casa no marimbau a alma divina!
Eu morro qual nas mãos da cozinheira
O marreco piando na agonia . . .
Como o cisne de outrora... que gemendo
Entre os hinos de amor se enternecia.
Coração, por que tremes? Vejo a morte
Ali vem lazarenta e desdentada. ..
Que noiva!. . . E devo então dormir com ela?. ..
Se ela ao menos dormisse mascarada!
Que ruínas! que amor petrificado!
Tão antediluviano e gigantesco!
Ora, façam idéia que ternuras
Terá essa lagarta posta ao fresco!
Antes mil vezes que dormir com ela,
Que dessa fúria o gozo, amor eterno. . .
Se ali não há também amor de velha,
Dêem-me as caldeiras do terceiro Inferno!
No inferno estão suavíssimas belezas,
Cleópatras, Helenas, Eleonoras;
Lá se namora em boa companhia,
Não pode haver inferno com Senhoras!
Se é verdade que os homens gozadores,
Amigos de no vinho ter consolos,
Foram com Satanás fazer colônia,
Antes lá que no Céu sofrer os tolos!-
Ora! e forcem um'alma qual a minha
Que no altar sacrifica ao Deus-Preguiça
A cantar ladainha eternamente
E por mil anos ajudar a Missa!

O.080.O poeta e a bala - Affonso Romano Santana


(para o poeta Álvaro Alves Faria)
Fragmento 1
Pessoas carregam afrontas, remorsos,
outros, dívidas, projetos.
Conheço um poeta que carrega na cabeça
Uma bala viva.Bala nada metafísica,
não metáfora-espelho,
bala mesmo, explosiva,
no estopim do cerebelo.
Meteu-a lá um ladrão afoito
num de repente furtivo; meteu-a
lá, por nada, por hábito agressivo
num estúpido estampido.
Colocou-a não como se coloca
um livro na estante,
um verso no poema,
na próclise o pronome,
atirou-a como se, no homem, engatilhasse
a bala de um sobrenome.
Atirou-a como a granada
que se recusa a explodir
e fica, não no ar parada,
mas no corpo agasalhada
Fragmento 2
O poeta toma seu carro, viaja,
mas nele a bala anda
estacionada.
O poeta ama, troca de cama
e de mulheres, mas nele
a bala passeia
como se na praça passeasse
enamorada.
Ele vai ao médico, tira radiografias
vive perseguindo-a antes que ela,
como um míssel impaciente,
o alcance internamente.
De dia vigilante, acompanha
da bala a metálica sanha,
mas é de noite que, a cabeça na fronha,
o poeta embalado
- sonha.
Fragmento 3
Desde que me contou sua sina,
que abalado levo na cabeça cativa
a imagem da bala progressiva.
Alojou-se-me no cérebro - a atrevida -,
me persegue e exige que a desfira
num poema como se fosse
uma bala viva.
Nele é fatal a ferida
Em mim, metáfora alusiva.
Nele, é ameaça constante
em mim imagem corrosiva.
Essa bala se parece e é diversa
da bala de Cabral, outro poeta,
passa raspando meu texto,
contudo, é mais real.
Anos muitos se passaram:
penetrei cabeças, assaltei afetos
e atirei a esmo meus poemas
em gavetas e mulheres,
mas a palavra do poeta,
em mim ara inquieta.
Só me resta um recurso:
alojá-la na escritura,
atirá-la no leitor
na espera que essa bala
na leitura que o outro faça
prossiga sua acentura.

O.079.O Poema do frade - Alvares de Azevedo


Meu herói é um moço preguiçoso
Que viveu e bebia porventura
Como vós, meu leitor... se era formoso
Ao certo não o sei. Em mesa impura
Esgotara com lábio fervoroso
Como vós e como eu a taça escura.
Era pálido sim. . . mas não d'estudo:
No mais . . era um devasso e disse tudo!
Dizer que era poeta-é cousa velha!
No século da luz assim é todo
O que herói de novelas assemelha.
Vemos agora a poesia a rodo!
Nem há nos botequins face vermelha,
Amarelo caixeiro, alma de lado,
Nem Bocage d'esquina, vate imundo,
Que não se creia um Dante vagabundo!
O meu não era assim: não se imprimia,
Nem versos no teatro declamava!
Só quando o fogo do licor corria
Da fronte no palor que avermelhava,
Com as convulsas mãos a taça enchia.
Então a inspiração lhe afervorava
E do vinho no! eflúvio e nos ressábios
Vinha o fogo do gênio à flor dos lábios!
Se era nobre ou plebeu, ou rico ou pobre
Não vos direi também: que importa o manto
Se é belo o cavaleiro que ele cobre?
E que importa o passado, um nome santo
De pútridos avós? plebeu ou nobre
Somente a raiva lhe acordava o pranto.
Embuçada no orgulho a fronte erguia
E do povo e dos reis escarnecia!
Não se lançara nas plebéias lutas,
Nem nas falanges do passado herdeiras,
No turbilhão das multidões hirsutas,
Não se enlaivou da pátria nas sangueiras,
Nem da praça no pó das vis disputas!
Sonhava sim em tradições guerreiras,
Nos cânticos de bardo sublimado...
Mas nas épicas sombras do passado.
O presente julgava um mar de lama
Onde vis ambições se debatiam,
Ruína imunda que lambera a chama,
Cadáver que aves fétidas roíam!
Tudo sentiu venal! e ingrata a fama!
Como torrentes trépidas corriam
As glórias, tradições, coroas soltas
De um mar de infâmias às marés revoltas!
Não quisera mirar a face bela
Nesse espelho de lodo ensangüentado!
A embriaguez preferia: em meio dela
Não viriam cuspir-lhe o seu passado!
Como em nevoento mar perdida vela
Nos vapores do vinho assombreado
Preferia das noites na demência
Boiar (como um cadáver!) na existência!
Uma vez o escutei: todos dormiam-
Junto à mesa deserta e quase escura:
Lembranças do passado lhe volviam;
Não podia dormir! Na festa impura
Fora afogar escárnios que doíam. . .
Não o pode: dos lábios na amargura
Ouvi-lhe um murmurar. . Eram sentidas
Agonias das noites consumidas!
Olvidei a canção: só lembro dela
Que d'alma a languidez a estremecia:
Como um anjo num sonho de donzela
Sobre o peito a guitarra lhe gemia!
E quando à frouxa lua, da janela,
Cheia a face de lágrimas erguia,
Como as brisas do amor lhe palpitavam
Os lábios no palor que bafejavam!
Amar, beber, dormir, eis o que amava:
Perfumava de amor a vida inteira,
Como o cantor de Don Juan pensava
Que é da vida o melhor a bebedeira. . .
E a sua filosofia executava. . .
Como Alfred Musset, a tanta asneira
Acrescento porém… juro o que digo!
Não se parece Jônatas comigo.
Prometi um poema, e nesse dia
Em que a tanto obriguei a minha idéia
Não prometi por certo a biografia
Do sublime cantor desta Epopéia.
Consagro a outro fim minha harmonia
Por favor cantarei nesta Odisséia
De Jônatas a glória não sabida
Mas não quero contar a minha vida.
Basta! foi longo o prólogo confesso!
Mas é preciso à casa uma fachada,
A fronte da mulher um adereço,
No muro um lampião à torta escada!
E agora desse canto me despeço
Com a face de lágrimas banhada,
Qual o moço Don Juan no enjôo rola
Chorando sobre a carta da Espanhola
Mas eu sei: que senti o amor ardente
Convulsivo bater num peito exausto!
Sei: que senti a lágrima tremente
Como na insana palidez o Fausto!
Quando o sono fugia às noites minhas
Como às nuvens do inverno as andorinhas.
Bebi-a essa tristeza, essa doença
Que nos escalda lágrimas sombrias,
Que nos revolve sós na vaga imensa
Do Oceano das internas agonias!
Que empalidece a face e morte lenta
Nos estampa na fronte macilenta.
Ah! virgem das canções, entre vapores
És pura e bela sim, porém teus lábios
Me fazem delirar como licores
Que afervoram-nos tépidos ressábios!
Quando em teu colo vou deitar-me agora
Teu palpitar as faces me descora!
E cedo morrerei: sinto-o, nas veias
O meu sangue se escoa vagaroso
Como um rio que seca nas areias,
Como donzela, que desmaia em gozo!
Teus lábios, fada minha, me queimaram,
E as lânguidas artérias me esgotaram!
Mas que importa nas sombras da existência
Se mentiu-me o sonhar quando eu sentia
Um dos pálidos anjos de inocência
Pousar-me a face ao peito que gemia,
Se num sonho de amor, em noite bela
Nos suspiros do mar amei com ela!
Era uma lua pálida e sombria
Que seu leito nas ondas embalava
Na mão de neve a face lhe pendia;
E nos sonhos a virgem se enlevava!
E, que estrelas no céu! e que ardentia!
Que perfume seu véu estremecia!
E que sonhos, meu Deus! e que ventura!
E que vento de amores palpitava
Na escuma do batel a vaga pura
E lascivos suspiros lhe arrulhava!. . .
E em torno mar e céu-a noite bela,
Nos meus braços a inânida donzela!
Ah! virgem das canções, aos brancos lírios
Por que tão cedo me chover na infância
O mágico sereno dos delírios
Que adormece, embalsama na fragrância?
E do amor entre os lânguidos conselhos
Minha fronte embalar nos teus joelhos?
Por que tão cedo o vinho da harmonia
Nos beiços infantis correu-me aos sonhos,
Entornou-me essa nuvem que inebria,
Que gela o riso aos lábios meus risonhos?
Tão quedo o sono meu, por que turvá-lo,
E de ilusões esplêndidas povoá-lo?
E tão cedo! por que encher meu leito
Destas sombras suaves, delirantes?
E na harpa adormecida de meu peito
Suspirarem-me sons tão ofegantes?
E por que não deixar o meu sentir
Da infância d'oiro nos frouxéis dormir?
E assim eu morrerei: co'a sede ainda
Amargosa no lábio ressicado!
Cansando os olhos na extensão infinda,
Perguntando se a crença do passado
Também verei no lodo revolvida. . .
E como tu sufocarei a vida!...
É sombrio, confesso-vos, meu canto:
E obscuro demais, o que é defeito!
Mas é um sonho apenas que recanto,
Que em noite longa me gelou no leito-
Sonho de febre, insano pesadelo
Que à fronte me deixou pálido selo!
Não teve o Dante mágoa mais profunda
Quando na sombra ergueu o condenado,
De um crânio carcomido a boca imunda
E enxugou-a em cabelo ensangüentado:
E contou sua lívida vingança
Na mansão da eternal desesperança!
Nem mais estremeceu quando o passado
Do túmulo na sânie revivia. . .
Quando o velho rugindo sufocado
De fome e raiva ainda se torcia. . .
Como quando as crianças se mordiam,
E ardentes, moribundas, pão! pediam!
Quando contou as noites regeladas
E o ar da podridão. . . e a fome impura
Saciando nas carnes desnervadas
De seus filhos. . . de sua criatura!
Como a pantera emagrecida come
Os filhos mortos p'ra cevar a fome!
Acordei ao tremer de calafrios
Com o peito de mágoas transbordando;
Enxuguei com a mão suores frios
Que sentia na face porejando!
E um dia o pesadelo que eu sentira
Mesclou-se aos moles sons de minha lira.
Mesclou-se como ao vinho um ditirambo,
Ao farfalhar de Pança 3 um velho adágio,
Às alvas flores se mistura o jambo
E um ósculo de amor em um naufrágio.
-Creio que vou dizer alguma asneira. . .
Como o nome de Deus à bebedeira!
Escrevi o meu sonho. Nas estâncias
Há lágrimas e beijos e ironias,
Como de noite muda nas fragrâncias
Perde-se um ai de ignotas agonias!
Tudo é assim-no sonho o pesadelo,
-Em almas de Madona quanto gelo!
É assim o viver. Por noite bela
Não durmas ao relento na janela
Contemplando o luar e o mar dormente.
Poderá apanha-te de repente
Fria constipação, febre amarela,
Ou alguma prosaica dor num dente!
Vai, c'oa mão sobre o peito macilento
Curvado como um velho peregrino,
Vai, tu que sofres, implorar-sedento
Um remédio de amor a teu destino!. . .
Um doutor sanará o teu tormento
Com três xícaras d'óleo de rícino
Eu vi, eu vi um tipo de Madona
Que os ares perfumava de beleza:
Que suave mulher! ah! não ressona
Uma virgem de Deus com tal pureza!
Era um lago a dormir... na flor sereno!
Porém sua água azul tinha veneno!
E agora-boa-noite! eu me despeço
Desta vez para sempre do poema:
Como soberbo sou, perdões não peço.
Mas como sou chorão, deixai que gema,
Que dê largas a est'alma intumescida
Na dor de tão solene despedida!
Que prantos! que suspiros sufocados!
Se eu gostasse dos versos eloqüentes,
Como eu descreveria bem rimados
Do meu peito os anélitos frementes!
Porém nos seios eu sufoco tudo,
Porque da mágoa o serafim é mudo.
Silêncio, coração que a dor inflama!
Além do escárnio, sons! quero o meu leito
Das lágrimas banhar que a dor derrama!
Quero chorar! quero chorar! meu peito!
Dizer adeus ao sonho que eu sentira,
Sem profanar as ilusões na lira!
Eu não as profanei! guardo-as sentidas
Nas longas noites do cismar aéreo,
Guardo-as na esperança, nas doridas
Horas que amor perfuma de mistério!
Sem remorso, nem dor, aos sonhos meus
Eu posso ainda murmurar-adeus!!
Ah! que na lira se arrebente a corda
Quando profana mão os sons lhe acorda!
E o pobre sonhador a fantasia,
O sonho que ama e beija noite e dia
Não saiba traduzir, quando transborda
Seu peito dos alentos da harmonia!
Que não possa gemer a voz saudosa
Como o sopro dos ventos avendiços,
Como a noite que exala-se amorosa!
Como o gemer dos ramos dobradiços!
Para exprimir os pensamentos meus
Nos cantos melancólicos do adeus!
Adeus! . . é renunciar numa agonia
A esperança que ainda nos palpita;
Sentir que os olhos cegam-se, que esfria
O coração na lágrima maldita!
Que inteiriçam as mãos, e a alma aflita
Como Ágar no deserto ora sombria!
Sentir que tudo em nós se gela e chora,
E o coração de lágrimas se vela!
E a natureza além revive agora,
E a existência por viver, mais bela
Novas delícias, novo amor revela
Do luzente porvir na roxa aurora!
Sentir que se era poeta... à brisa errante
Bebendo eflúvio que ninguém respira,
Pressentindo à donzela palpitante
Os enlevos, os ais, e o sonho amante
Que nos beija no berço sussurrante,
E o perfume que a música transpira!
Adeus! é uma gota de mistério
Que Deus nos orvalhou como sereno!
É a dor volutuosa-o bafo aéreo
Que derrama perfumes e veneno!
E a cisma que rola, que resvala,
Que os pensamentos no desejo embala!
Saibo do céu que aviva na lembrança
Que é um filho de Deus o moribundo
A quem se fana a tímida esperança!
Que é dos anjos irmão e que é no fundo
Do Oceano do viver, que o vagabundo
A pérola do amor talvez alcança.
E as crenças sentir uma por uma
Que se adormecem e o batel da vida
No Oceano escuro cobre-se d'escuma
E se afunda no mar e dolorida
A alma do marinheiro empalecida
Ao arrebol da morte se perfuma!
Adeus! tudo que amei! o vento frio
Sobre as ondas revoltas me arrebata,
Além a terra perde-se o navio
Trilha nos mares sobre um chão de prata!
Adeus! tudo que amei, que me retrata
Inda a saudade ao terno desvario!
Meu céu! minhas montanhas verdejantes!
Cetim azul da lânguida baía!
Manhas cheias de brisas sussurrantes,
Noites cheias de estrelas e ardentia!
Oh! noite de luar! oh! melodias
Que nas folhas gemeis,; ventos errantes!
Vales cheirosos onde a infância minha
Virgem peregrinou entre mil sonhos!
Noites, luas, estrelas da noitinha
Que os lábios entrebristes-me risonhos,
E orvalháveis de morno sentimento
A aberta flor do coração sedento!
Silêncio que eu amei, que eu procurava
Na varanda romântica e sombria,
Sorvendo dentro em mim ar que sentia
Na fresca viração que se acordava!
Suspirando a cismar nessa atonia
Que de amor minhas pálpebras banhava!
Sobre as colunas o luar batendo
E nas palmeiras úmidas tremendo
Filtrava-me sossego, e o mole engano
Em que se abisma o pensamento insano,
Que empalece da noite os sons bebendo
E harmonias escuta no Oceano!
E vós, águas do mar, que me embalava
Ao som dos remos da gentil falua!
Onde a fronte de escumas se banhava,
E à morta luz da vagabunda lua
Cismava como a nuvem que flutua
Do escravo à nênia estranha que soava!
Oh! minha terra! oh! tarde recendente
Que embalsamando vens com teus cabelos
Derramados à luz! O sol ardente
Como os lábios do amor! luares belos
Como das flores de laranja o cheiro
Que perfumam da noiva o travesseiro!
E adeus, vós que eu amei, que inda sentidas
As ilusões me acordam na tristeza!
Que inda choro nas minhas despedidas!
Belas dos sonhos! anjos de beleza!
Morenas a quem banha a morbidezza!
Como as rosas da noiva empalecidas
Ai todos vos sonhei cândidos seios
Onde amor pranteara delirante!
Onde gemera em derretido enleio
Como em seios de mãe sedento infante!
Águas místicas aonde estrelas santas
Deixaram trilhos das argênteas plantas!
Como o triste Alcion vagueia errante
Nas frias primaveras do Oceano
E ama as alvas, a noite sussurrante,
Tardes, ondas e sol e leviano
Na leviana afeição embriaga insano
A existência nos seios o inconstante!
Eu todos vos amei! cri no mistério
Que o libertino Don Juan levava,
Nas noites profanadas do adultério,
Quando a alma sedenta evaporava!
E a vida como um alaúde aéreo
A todos os alentos entregava!
Terra do amor! ó minha mãe! na vida
Se o fado me levar em mágoa lenta-
Sempre nesta saudade esmorecida
Que de tristes lembranças se alimenta!-
Na morte a minha fronte macilenta,
Inda a ti volverei qual flor à vida!
Viverei do que foi-dos sonhos meus!-
Da seiva do passado hei de essa flor
Regar das quentes lágrimas do amor!
E quando a luz apague-se nos céus
E o frio coração à dor sucumba
Inda murmurarei-adeus!-da tumba

O.078.O Poema de um louco - Alvares de Azevedo


Foi poeta: cantou, e o estro em fogo
Crestou-lhe o peito, devorou seus dias
E a febre ardente desbotou-lhe a fronte
Em dores sós, em delirar insano.
Foi poeta: cantou, sonhou: a vida
Canto e sonhos lhe foi. Amor e glória
Com asas brancas viu sorrindo em vôos.
Foi-lhe vida sonhar: e ardentes sonhos
A fronte lhe acenderam, lhe estrelaram
Mágico da existência o firmamento.
Cantou, sonhou-amou:: cantos e sonhos
Em amor converteu-os. De joelhos
Em fundo enlevo ele esperou baixasse
Alguma luz do céu, que amor dissesse-
Anjo ou mulher! embora que ele a amara
C'o fogo queimador que o consumia
Com o amor de poeta que o matava!
Anjo ou mulher-embora! e em longas preces
Noite e dia o esperou-Mísero! Embalde!
Sonhou-amou-cantou: em loucos versos
Evaporou a vida absorta em sonhos-
E debalde! ninguém chorou-lhe os prantos
Que sobre as mortas ilusões já findas
Pálido derramara-
Amou! E um peito
Junto ao seu não ouviu bater consoante
C'os amores do seu! Ninguém amou-o
E nem as mágoas lhe afogou num beijo!
-E morreu sem amor.-Bateu-lhe embalde
O pobre coração em loucas ânsias.
Passou ignoto, solitário e triste
Entre os anjos do amor, só viu-lhe risos
Em braços doutros-e invejosa mágoa
Essa alheia ventura só lhe trouxe.
Nunca a mão dele de uma fronte branca
A alva coroa fez cair da virgem-
Jovem, solteiro, sem consórcio d'alma
Entre as rosas da vida-mas nenhuma
Nem deu-lhe um riso-nem do moço pálido
No imo d'alma guardou uma saudade!
Mas se à terra saudades não deixara
Não levou-as também-do peito o orgulho
Que ninguém quis amar, ninguém amou.
-Foi-lhe quimera o amor, não mais lembrou-o,
Tentou-o ao menos. -E que importa um morto?
- Doido é quem geme em lagrimar estéril-
Quando o luto findou e alegre o baile
Corre entre flores no valsar, quem lembra
O defunto que é podre no jazigo?
-Morrera-lhe o sonhar-por que chorá-lo?
E morreu sem amor! E ele contudo
Tinha no peito tanto amor e vida!
Alma de sonhos, tão ardentes, cheia!
E anelante do amor do peito-em outro
Em horas ternas efundir em beijos!
E às vezes quando a fronte pela febre
Pesada e quente sobre as mãos firmava,
Quando esse delirar febril da insônia
Em vertigens travava de sua alma,
Um negro pensamento lhe passava
Como um fuzil no cérebro fervente,
E pensava dos loucos no delírio,
Na escura treva da vertigem tonta!
Temia-a morte não-mas-a loucura.

O.077.O pior dos males - Alberto de Oliveira


Baixando à Terra, o cofre em que guardados
Vinham os Males, indiscreta abria
Pandora. E eis deles desencadeados
À luz, o negro bando aparecia.
O Ódio, a Inveja, a Vingança, a Hipocrisia,
Todos os Vícios, todos os Pecados
Dali voaram. E desde aquele dia
Os homens se fizeram desgraçados.
Mas a Esperança, do maldito cofre
Deixara-se ficar presa no fundo,
Que é última a ficar na angústia humana...
Por que não voou também? Para quem sofre
Ela é o pior dos males que há no mundo,
Pois dentre os males é o que mais engana.

O.076.O outro lado do corpo - Almandrade


O vício da ginástica do saber me enlouquece. Agora meu cérebro quer funcionar, funciona/produz, retém e desperdiça energia. Solta os fantasmas em outra prisão, se lança no exercício compulsivo da idéia ou da agonia. Um choque na exigência e urgência de uma tensão: a perda da referencia e a rejeição ao paraíso do divertimento. Movimento, giro, trabalho, embate, uma repetição quase constante na busca impossível de uma saída, como se houvesse saídas. O conhecimento da geometria é inútil para fugir do labirinto, nem Deus com toda sua sabedoria escapa. Quero desistir, abandonar esta paranóia da analogia, voltar e me integrar ao sucesso mas desconheço a facilidade. Sinto que estou preso.

O.075.O operário da utopia - Affonso Romano Santana


Apanhado em meio à noite,
jogado no chão da cela,
o corpo conhece, nú,
a primeira humilhação.
Outras virão: o soco,
o choque, a ameaça,
o urro na escuridão. - Quantos volts
suporta o corpo
- em coação,
até que dele escorra o fel
da delação? - O que procura o torturador
nas pedras do rim alheio
como vil minera/dor?
-O que ama esse ama/dor
da morte?
esse morcego suga/dor
sob os porões da corte?
esse joga/dor
do jogo bruto?
esse serviçal da morte
e cria/dor
- do luto? O torturador se julga, e acaso o é,
um trabalha/dor diferente:
seu trabalho é destruir
o sonha/dor insistente
como o médico que resolvesse
matar de dor
- o paciente.
Mas sob a tortura
o que há de melhor no homem.
jamais se manifesta. Quando muito
podeis catar pelo chão
o pouco que dele resta.
Mas soltai-o em festa, ao sol
e vereis que a verdade
de seus gestos se irradia.
Livre
vestindo a pele do dia,
o torturado caminha
com seu corpo tatuado
de violência e poesia.
Mas ele não marcha só.
Apenas segue na frente
na direção da utopia.

O.072.O livro de Fra. Gondicário - Alvares de Azevedo


I
Era em Veneza. O sol descaía, no manto rubro do crepúsculo, como um rajá da Índia fulgente de jóias nos estofos de damasco do seu divã-e o mar ao longe cintilava numa esteira de rubis e lantejoulas como o fagulhar da queimada a estorcer-se pelos verdumes crepitantes da montanha.
E o céu sorria vermelho como os lábios de uma rosa aberta, e as nuvens passavam lentas como galeotas desertas nas praias de Stambul a Soberana, e as brisas roçavam pelas águas suspirosas como os beijos a furto dos lábios vermelhos da Odalisca pela fronte escura do Califa adormecido à sombra dos romaes de Granada a Mourisca, e como o correr da pátena d'oiro nos festins Romanos pelos lábios das Bacantes coroadas das eras de saturnal-e as falas da mulher no devassar da orgia, pelos ouvidos indiferentes do ébrio de vinho e volúpias.
E a tarde era louçã como o amanhecer de fadas e um anoitecer de lua quando o corpo de Febe a nua desmaia no lençol azul dos mares.
E a tarde era louçã como esses beijos a furto nos carnavais Italianos no lacre de uns lábios risonhos dentre as rendas bordadas da máscara de veludo-era louçã e bela com seu dossel carmesim e seus lírios roxos, com seu horizonte de fogos furta-cores-e suas nuvens de púrpura e crisólito-de neves e sangue-e seu mar cintilante como o manto de veludos estrelados da rainha do Adria, se alvoroçando ao desflorar das aragens da tarde, que aí se perdia no além azulado das montanhas.
Era numa dessas belas ruas de Veneza, onde por entre as casarias vermelhas espelha-se o ondular das águas, como a lamina de um montante de Damasco . .. Não lhe sei o nome. Entrevia-a apenas no deslumbre de um devaneio, sonhei-a, criei-a pelo meu sonho com suas visões de mulheres, seus suspiros de alaúde e de mandara, seus hálitos embalsamados.
Era numa rua de Veneza.-À porta de um palácio estava sentado um vulto embuçado num manto branco.
Era uma dessas feições soberbas do mar além do Me" diterrâneo desses Almogávares denegridos que nas horas do Combate ao reluzir da folha curva do Iatagã aos raios do meio-dia, aos brados guerreiros pelo Alá dos Bárbaros, se acardumam soberbos em torno dos Adaís do deserto.
Um daqueles bustos altivos que o mancebo poeta talvez entreviu no sonho de Otelo, o negro.
Era uma fronte larga e abassanada avultando sob as pregas do Caftã branco, uns olhos vivos como os dos chacais nas noites sem estrelas, uivando ao redor das tendas da caravana,-o bigode basto e negro-e a barba longa ondando sobre o embuço do albornoz selvagem.
O que aí fazia o Árabe nem o sei talvez-o sonho não m'o preveniu.
Parecia-me apenas que uma nuvem negra lhe corria pela fronte como uma sombra na face cor de aço de um lago em noites pardacentas-e seus olhos inquietos se perdiam nos longes do Canal.
Sonhava? E entrevia nos aléns as paragens do oásis, com seu manto de relvas e seus quiosques de sombrios palmares onde o Bulbul Z da Arábia gorjeia os amores das rosas? e entre os verdumes o branquear das tendas da tribo, o reluzir das lanças dos Spahis Cavaleiros, o relinchar das éguas reluzidas esquias dos Agas valentes
Sonhava? E entrevia no fresco de algum arvoredo, na margem sombria da cisterna do deserto, o roupão branco e o turbante caído, e o manto acetinado de cabelos pelos seios nus,-alguma Gulnare ou Rachyma, Iantha ou Juana a Espanhola-flor de romã aberta mais viva no transplantar do harém, pérola colhida nas praias floridas da Espanha, Grécia ou Itália?
Sonhava? E entrevia nuns olhos úmidos de mulher lágrimas por eles, nos seios torneados e altivos onde um suspiro flutua e morre, algum anseio de volúpia, algum rever lânguido das ebriedades no aperto do seio do amante?
Mas não.-Não era talvez o colo envolto de pérolas da escrava, e os olhares longos da Espanhola, e o cravo dos lábios da Grega na sesta do palmar-Não era talvez o amor da filha das barracas nômadas do Islamita, nem saudades bélicas da terra dos tamareiras.
A noite caía-e o céu faiscava de aljôfares-e a lua se erguia atrás dos desenhos fantásticos, e das cúpulas brancas da catedral de S. Marcos-como a noiva ao través do seu véu de virgem-fitando seus longos olhares sobre a cidade dormida num leito de pedra.
II
A lua se erguera, pálida como a Febe antiga, a ninfa desmaiada de Delos, depois das longas noites em que ao fresco dos arvoredos ela contemplava o sossegado dormir de Céfalo - e seus raios brancos escorriam pela frente dos palácios como a melena das algas gotejantes nos penhais
Um vulto apareceu numa das sacadas do palácio. Dava-lhe o luar em cheio no rosto pálido.
-A fronte alta e descarada sombreavam-lha os longos cabelos negros e reluzentes.
-Um manto de veludo o embucava-Havia aí nessa figura escura um não sei que de belo; havia ai nessa descor desfeita, no desalinho dos cabelos, umas sombras misteriosas, que travavam de vencida o olhar.- Disséreis Childe Harold... a unidade convergente de todos os sonhos do poeta-a sombra de Byron que lhe corria em todas as idéias-como a imagem pensativa e melancólica de Karl Moor em todas as criações de Schiller.

O.074.O negro realismo ornamentado pela reflexão - Almandrade


Reconheço que o pensar é uma tortura, quando o real é um código desagradável, admitindo uma possível entrada e saída, um passado e um futuro. Qualquer coisa de linear. O dilúvio das imaginações enuncia a beleza ausente para se tolerar o terror. O conceito toma o lugar do ser e o tempo assassina a memória. Uma angustia quase infinita como o riso amargo do anjo que anuncia o fim, faz-se presente no festim da razão absurda.
Reconheço a operação de traição à subjetividade, quando volto novamente a confirmar o vazio nesta armadilha de palavras. Limite aceitável quando se agarra um sentido. Afinal estou ou não estou no texto, falo ou falam de mim, assim como o medo encobre a transgressão ou a gramática desvia o sentido e tece um limite. A pulsão de falar e a eternidade do compromisso.
Para me livrar da tentação, retorno ao centro da noite fundamental indiferente ao tempo onde não existe respostas nem justificativas. O escuro tem a vantagem do infinito: nem ponto de partida nem estação de chegada. O pensamento não leva a lugar nenhum, a não ser a si próprio. Uma continuidade.

O.073.Ô Lua - Angela Bretas


Ó lua que reluz
Seu céu repleto de estrelas
Cadentes
Cintilantes
Resplandecentes
Se mostra repleto de luz...
Ó lua que ilumina
Anima
Reflete a grandeza
Gigantesca
Do universo infinito...
Ó bela mágica lua cheia
Repleta
Intensa
Suas formas brotam desejos
Escondem segredos
Claridade incandescente...
Ó lua que brilha distante
Teus reflexos
São poças de esperanças
Contidas na sua clareza...
Ó lua sua imagem
Cantanda em verso e prosa
É refúgio dos amantes
É a inspiração dos poetas
Ó lua...!

O.071.O Jornal - Alcindo Guanabara


O prelo completou a cruz. A moral nova, a cuja influência a humanidade renasce, não se propaga, não se infiltra, não se dissemina, não vence mares e montanhas, senão por efeito da imprensa. É graças a ela que o pensamento se liberta, que o espírito humano se emancipa de preconceitos, que a tradição se escoima e se seleciona, que a prepotência dogmática se atenua e que o livre exame surge, como alicerce e fundamento de uma nova moral social. O cristianismo transformou a humanidade em vista de uma vida futura; a imprensa permitiu que ela usasse dessa transformação, a benefício da vida terrena. A luz que a Alemanha assim acendeu, iluminou todos os desvãos do passado e ilumina todos os arcanos do futuro; suprimiu o tempo e a distância; aproximou as terras e as gentes; e ardendo sem se consumir, estimula a ciência, incita a arte, protege e resguarda as religiões e é o paládium da liberdade! Não foi sem razão que o nosso romântico Castro Alves declamou, um dia, que, quando ela surgiu,
"... os pólos se abraçaram! O norte ouviu, chorando, o soluçar do sul!
É à sua sombra fecunda que os agrupamentos humanos crescem e se desenvolvem, adquirindo a consciência, a dignidade e a liberdade, que os elevam à categoria de nações. Vereis, na história, a força formidável desse instrumento de luta. Ele cria, defende, impõe, preserva a liberdade de consciência. Livro, dissemina idéias, divulga noções, dispersa conhecimentos, dilata os horizontes do espírito, gera a fome de liberdade. Panfleto, destila fel e veneno, fulmina a tirania com o sarcasmo, traspassa, como um florete, o corpo dos déspotas. É, porém, o jornal e a expressão completa do seu triunfo. O panfleto, clandestino e anônimo, é ainda uma arma de rebelião; o jornal só vive numa atmosfera de liberdade. Mesmo nos países ainda flagelados pelo fogo interior, em cujas crostas se não fez a consolidação dos regímens de liberdade, as erupções da tirania se acentuam pela perseguição, pela suspensão, pela eliminação dos jornais livres. Também se velam as faces dos deuses, para se praticarem os suplícios cruentos! Podem, porém, desencadear-se as borrascas políticas; a livre imprensa cede, como os salgueiros, à violência do tufão, mas não se aniquila: entra, nos dias límpidos que se seguem, a lutar por fazer cada vez mais raros os cataclismos. A liberdade é árvore de trato tão difícil, que muitos são chamados a sofrer por seu cultivo, antes que se faça frondosa. Onde, porém, foi possível o aparecimento de um livre jornal, em que alguém escreva por sua própria inspiração pessoal, aí podem os povos solenizar uma vitória de sua força e averbar uma esperança de seu predomínio.
Nem é preciso que esse jornal se faça uma catapulta, ou se afie como uma adaga. A liberdade não se assinala nem se afirma pelo combate ou pela paixão: existe, porque existe. Na serenidade das páginas do jornal que mais alheio se mostre e seja às contendas e disputas de cunho político, a liberdade resplandece, no registro diário dos fatos e das coisas, na divulgação do pensamento humano, na disseminação das idéias de filosofia e dos fatos da ciência, que as gerações que passaram nos têm legado e constituem todo o nosso patrimônio de civilização. Assim, o jornal é um centro de onde irradia a força geradora do progresso social; é um elemento de conservação, rememorando diariamente a síntese da vida humana; é uma fonte de esperança, despertando nos espíritos e nos corações o estímulo para o trabalho e para a luta por um futuro melhor.

O.070.O intenso brilho - Adélia Prado


É impossível no mundo
estarmos juntos
ainda que do meu lado adormecesses.
O véu que protege a vida
nos separa.
O véu que protege a vida
nos protege.
aproveita, pois,
que é tudo branco agora,
à boca do precipício,
neste vórtice
e fala
nesta clareira aberta pela insônia
quero ouvir tua alma
a que mora na garganta
como em túmulos
esperando a hora da ressurreição,
fala meu nome
antes que eu retorne
ao dia pleno,
à semi-escuridão

O.069.O Ídolo - Alberto de Oliveira


Sobre um trono de mármore sombrio,
Em templo escuro, há muito abandonado,
Em seu grande silêncio, austero e frio
Um ídolo de gesso está sentado.
E como à estranha mão, a paz silente
Quebrando em torno às funerárias urnas,
Ressoa um órgão compassadamente
Pelas amplas abóbadas soturnas.
Cai fora a noite - mar que se retrata
Em outro mar - dois pélagos azuis;
Num as ondas - alcíones de prata,
No outro os astros - alcíones de luz.
E de seu negro mármore no trono
O ídolo de gesso está sentado.
Assim um coração repousa em sono...
Assim meu coração vive fechado.

O.068.O homem e a letra - Affonso Romano Santana


Depois de Beranger ter visto seus vizinhos virarem rinocerontes
depois de Clov contemplar a terra arrasada e comunicar-se
em monossílabos com seus pais numa lixeira
depois de Gregory Sansa ter acordado numa manhã
transformado em desprezível inseto aos olhos da família
e Kafka não ter entrado no castelo para ele aberto todavia
depois de Carlito a sós na ceia do ano cavando o inexistente
afeto no ouro dós salões
depois de Se Tsuam perder-se não entre as três virtudes
teologais
mas num maniqueísmo banal entre o bem e o mal
depois dos diálogos estáticos de Vladimir e Estragon
na estrada.de Godot
depois de Alfred Prufrock como um velho numa estação
seca contemplando a devastação e incapaz de perturbar o universo
depois dos labirintos de Teseu, Borges e Robbe-Grillet
depois que o lobo humano se refugiou transido na estepe fria
depois da recherche no tempo perdida e de Ulisses perdido
no périplo de Dublin
depois de Mallarmé se exasperar no jogo inútil de seus dados
e Malevitch descobrir que sobre o branco
só resta o branco por pintar
depois dos falsos moedeiros moendo a escrita exasperante
em suas torres devorando o que das mãos de Cronos
gera e degenera
depois da morte do homem e da morte da alma
depois da morte de Deus na Carolina do Norte
antes e depois do depois
aqui estou
Eu confiante
Eu pressupondo
EU erigindo
Eu cavando
Eu remordendo
Eu renitente
Eu acorrentado
Eu Prometeu Narciso Orfeu
órfano Eu narciso maciço promitente Eu
descosendo a treva barroca desse Yo
sem pejo do passado
reinventando meu secreto
concreto
Weltschmerz
Que ligação estranha então havia entre os nós e os nós
de outros eus
entre Deus e Zeus
que estranha insistência que penitência ardente que estúpido
e tépido humanismo
que fragilidade na memória que vocação de emblemas
e carência em mitografar-se
que projectum árduo e cego que radar tremendo pelas veias
que vocação de camuflar abismos e flutuar no vácuo
que reincidente recolocar do vazio no centro do vazio?
Que aconteça o humano com todos os seus happenings
e dadas?
que para total desespero de mim mesmo e de meus amigos
I have a strong feeling that the sum of the parts does not
equal the whole
e que la connaissance du tout précède celle des parties
e com um irlandês aprendo a dividir 22 por 7 e achar
no resto ZERO
enquanto grito sobre as falésias
when genuine passion moves you say what you have to say
and say it hot
Bêbado de merda e fel egresso da Babel e de onde os sofistas
me lançaram
vate vastíssimo possesso e cego guiado pelo que nele há
de mais cego
tateando abismos em parábolas
açodando a louca parelha que avassala os céus
diante do todo-poderoso Nabucodonosor eu hoje tive um sonho:
OOO: INFERNO - recomeçar
Salute o Satana, "Finnegans reven again!"
agora sei que há a probabilidade da prova e da idade
o descontínuo do tímpano e o contínuo
que de Prometeu se vai a Orfeu e de Ptolomeu se vai
a Galileu
Eurídice e Eu, Eu e Orfeu
o feitiço contra Zebedeu Belzebu e os seusMadness! Madness!"
sim, loucura, mas não é a primeira vez que me expulsam
da República
loucura, sim, loucura, ora direis
enquanto retiro os jovens louros de anteontem
Que encham a casa de espelhos aliciando as terríveis maravilhas
para que vejam quão desfigurado cursava o filho do homem
em seus desertos cheios de gafanhoto e mel silvestre
que venha o longo verso do humano
o desletrado inconsciente
fora os palimpsestos! Mylord é o jardineiro
eis que o touro negro pula seus cercados e cai no povaréu
Ecce Homo
ego e louco
cego e pouco
ébrio e oco
cheio de sound and fury
in-sano in-mundoMadness! Madness! Madness!
Madness
Summerhill
Weltschmerz
- ET TOUT LE RESTE EST LITTÉRATURE

O.067.O Engano - Alfonsina Storni


Sou tua, Deus sabe porque, já que compreendo
Que haverás de abandonar-me, friamente, amanhã,
E que embaixo dos meus olhos, te encanto
Outro encanto o desejo, porém não me defendo.
Espero que isto um dia qualquer se conclua,
Pois intuo, ao instante, o que pensas ou queiras
Com voz indiferente te falo de outras mulheres
E até ensaio o elogio de alguma que foi tua.
Porém tu sabes menos do que eu, e algo orgulhoso
De que te pertence, em teu jogo enganoso
Persistes, com ar de ator dono do papel.
Eu te olho calada com meu doce sorriso,
E quando te entusiasmas, penso: não tenhas pressa
Não es tu o que me engana, quem me engana é meu sonho.

O.066.O Editor - Alvares de Azevedo


-A poesia transcrita é de Torquato,
Desse pobre poeta enamorado
Pelos encantos de Leonora esquiva,
Copiei-a do próprio manuscrito
E para prova da verdade pura
Deste prólogo meu, basta que eu diga
Que a letra era um garrancho indecifrável,
Mistura de borrões e linhas tortas.
Trouxe-me do Arqui. . . lá da lua
E decifrou-ma familiar demônio,
Demais-infelizmente é bem verdade
Que Tasso lastimou-se da penúria
De não ter um ceitil para a candeia.
Provo com isso que do mundo todo
O sol é este Deus indefinível,
Ouro, prata, papel, ou mesmo cobre,
Mais santo do que os Papas-o dinheiro!
Byron no seu Don Juan votou-lhe cantos,
Filinto Elísio e Tolentino o sonham,
Foi o Deus de Bocage e d'Aretino,
Aretino, essa incrível criatura
Lívida e tenebrosa, impura e bela,
Sublime e sem pudor, onda de lado,
Em que do gênio profanou-se a pérola,
Vaso d'ouro que um óxido terrível
Envenenou de morte, alma poeta
Que tudo profanou com as mãos imundas,
E latiu como um cão mordendo um século
Quem não ama o dinheiro? Não me engano
Se creio que Satã à noite veio
Aos ouvidos de Adão adormecido
Na sua hora primeira, murmurar-lhe
Essa palavra mágica da vida,
Que vibra musical em todo o mundo.
Se houvesse o Deus vintém no Paraíso
Eva não se tentava pelas frutas,
Pela rubra maçã não se perdera;
Preferira de certo o louro amante
Que tine tão suave e é tão macio!
Se não faltasse o tempo a meus trabalhos
Eu mostraria quanto o povo mente
Quando diz-que a poesia enjeita, odeia
As moedinhas doiradas.-É mentira!
Desde Homero (que até pedia cobre),
Virgílio, Horácio, Calderon, Racine,
Boileau e o fabuleiro Lafontaine
E tantos que melhor de certo fora
Dos poetas copiar algum catálogo,
Todos a mil e mil por ele vivem,
E alguns chegaram a morrer por ele!
Eu só peço licença de fazer-vos
Uma simples pergunta. Na gaveta
Se Camões visse o brilho do dinheiro-
Malfilâtre, Gilbert, o altivo Chatterton
Se o tivessem nas rotas algibeiras
Acaso blasfemando morreriam?

O.065.O duplo - Affonso Romano Santana


Debaixo de minha mesa
tem sempre um cão faminto
-que me alimenta a tristeza.
Debaixo de minha cama
tem sempre um fantasma vivo
-que perturba quem me ama.
Debaixo de minha pele
alguém me olha esquisito
-pensando que eu sou ele.
Debaixo de minha escrita
há sangue em lugar de tinta
-e alguém calado que grita.

O.064.O dia em que a terra parou - Ângela Bretas


Terça feira 11 de Setembro/2001, não foi uma manhã comum. Acordei com um pressentimento estranho, sem saber ao certo se meu estado de espírito poderia ser em consequência de um dia nublado, com nuvens carregadas no céu... Tentei vir aqui, escrever a vocês leitores, mas não conseguia me concentrar... resolvi então me distrair um pouco ligando a TV, e qual minha surpresa ao constatar que o mundo estava pasmo observando os acontecimentos dos últimos minutos. Assim como eu, tenho certeza que todos vocês ficaram chocados com o que viram, ouviram e testemunharam através de imagens claramentes expostas ao mundo pelas vias de comunicação. Neste dia todas as atenções foram direcionadas ao ato cruel de pessoas que sem escrúpulos levaram consigo não somente a própria vida, mas a vida de milhares de pessoas inocentes, mudando assim o curso da vida de outras milhares de pessoas que sobreviveram ao atentado, além de familiares das vítimas e toda uma nação, que agora se vê marcada eternamente por uma tragédia horrenda, que ficará na história. Enquanto via imagens de total desespero e terror, escutando repórteres que se esforçavam em parecer frios ao descrever o verdadeiro caos que acontecia, eu notei mais uma vez como o ser humano é frágil. Neste cinzento dia, o mundo parou ... O mundo parou para questionar o porque de tal ato... O mundo parou para rezar por aqueles que se foram e por aqueles que ficaram... O mundo parou para julgar, condenar e amaldiçoar... O mundo parou para prometer vingança... O mundo parou... Parou também para amar... Amar aqueles que ficaram... Amar ainda mais a vida... Amar aqueles que heroicamente em meio a escombros tentavam salvar pessoas feridas... Amar cada dia como se fosse o último... O mundo parou.... Parou em forma de respeito... Parou em forma de solidariedade... Parou em forma de união... O mundo parou... Uniu-se... Em meio ao desespero nações deram-se as mãos... O mundo concientizou-se que só unidos saberemos vencer a batalha maior que é a vida... E que esta seja a última grande lição que tivemos de aprender...

O.060.O bordado cruel - Alexei Bueno


Quando era noite, atrás daquela porta,
Junto a uma vela duas velhas riam
Matando aos poucos uma aranha torta.
E a alegria que elas dividiam
Poucos tiveram já no mundo um dia,
Mas os que a achavam sempre a bendiziam.
Cheia de medo, a criatura fria
Dançava horrível rente de uma chama
Que lentamente o corpo lhe roía,
E as velhas rindo a observar da cama
Iam falando sobre de que modo
Com dor mais lenta um corpo vil se inflama.
Espécie estranha de um vivente lodo,
Sendo corcunda e só com sete pernas
A aranha uivava por seu corpo todo
Que se expandia em inchações externas
Causando às velhas, com o vermelho horrendo
Do seu ardor, as sensações mais ternas...
Emocionadas, com as mãos tremendo,
Vieram então com um bando de alfinetes
Que em cada pata foram se prendendo,
E a aranha presa de mil cacoetes
Foi só os espinhos de uma prata ardente
Que a recobria em infernais coletes.
E nesta arte foram indo em frente,
Depois agulhas, e um perfume ardido,
E ao fim de tudo uma tesoura ingente,
Até que o fogo e o animal vencido
Murcharam juntos sobre a mesa irada
Em mil pedaços de um negror transido,
E ambas as velhas, conhecendo o nada,
Com face imensa devoraram tudo
Que lhes restava da fatal jornada.
Enquanto, a olhá-las, um retrato mudo
De seu marido ia chorando as dores
Que o recobriam no ancestral escudo,
E todo o chão ia se abrindo em flores
E uma criança, que ninguém notara,
Pela janela olhava sem temores,
E ia crescendo, e de uma forma rara,
Enquanto as velhas, enxugando as portas,
Varriam tétricas, na noite clara,
Todo o amargor das profecias mortas.

O.063.O cronista é um escritor crônico - Affonso Romano Santana


O primeiro texto que publiquei em jornal foi uma crônica. Devia ter eu lá uns 16 ou 17 anos. E aí fui tomando gosto. Dos jornais de Juiz de Fora, passei para os jornais e revistas de Belo Horizonte e depois para a imprensa do Rio e São Paulo. Fiz de tudo (ou quase tudo) em jornal: de repórter policial a crítico literário. Mas foi somente quando me chamaram para substituir Drummond no Jornal do Brasil, em 1984, que passei a fazer crônica sistematicamente. Virei um escritor crônico.
O que é um cronista?
Luís Fernando Veríssimo diz que o cronista é como uma galinha, bota seu ovo regularmente. Carlos Eduardo Novaes diz que crônicas são como laranjas, podem ser doces ou azedas e ser consumidas em gomos ou pedaços, na poltrona de casa ou espremidas na sala de aula.
Já andei dizendo que o cronista é um estilita. Não confundam, por enquanto, com estilista. Estilita era o santo que ficava anos e anos em cima de uma coluna, no deserto, meditando e pregando. São Simeão passou trinta anos assim, exposto ao sol e à chuva. Claro que de tanto purificar seu estilo diariamente o cronista estilita acaba virando um estilista.
O cronista é isso: fica pregando lá em cima de sua coluna no jornal. Por isto, há uma certa confusão entre colunista e cronista, assim como há outra confusão entre articulista e cronista. O articulista escreve textos expositivos e defende temas e idéias. O cronista é o mais livre dos redatores de um jornal. Ele pode ser subjetivo. Pode (e deve) falar na primeira pessoa sem envergonhar-se. Seu "eu", como o do poeta, é um eu de utilidade pública.
Que tipo de crônica escrevo? De vários tipos. Conto casos, faço descrições, anoto momentos líricos, faço críticas sociais. Uma das funções da crônica é interferir no cotidiano. Claro que essas que interferem mais cruamente em assuntos momentosos tendem a perder sua atualidade quando publicadas em livro. Não tem importância. O cronista é crônico, ligado ao tempo, deve estar encharcado, doente de seu tempo e ao mesmo tempo pairar acima dele.

O.062.O corpo exige - Affonso Romano de Sant'anna


Presto distraída atenção ao meu corpo.
O que me pede, eu faço.
Às vezes, não entendo logo suas ordens, mas
cedo sempre.
Me achego a ele e indago:
-O que queres? Ah, é isso? Então, concedo.
Sempre que eu resisti
um de nós saiu-se mal.
Nas 24 horas do dia, ele pede,
e quando cala, fala
num discurso de sonhos
que me abala.
Ele sabe. Eu sei que ele sabe,
e sabe antes de mim, e nele
eu sei dobrado, sou um-e-dois
como os dois cortes de um sabre

O.061.O Cônego Filipe - Alvares de Azevedo


O cônego Filipe! Ó nome eterno!
Cinzas ilustres que da terra escura
Fazeis rir nos ciprestes as corujas!
Por que tão pobre lira o céu doou-me
Que não consinta meu inglório gênio
Em vasto e heróico poema decantar-te?
Voltemos ao assunto. A minha musa
Como um falado Imperador Romano
Distrai-se às vezes apanhando moscas.
Por estradas mais longas ando sempre.
Com o cônego ilustre me pareço,
Quando ele já sentia vir o sono,
Para poupar caminho até a vela,
Sobre a vela atirava a carapuça.
Então no escuro, em camisola branca
Ia apalpando procurar na sala-
Para o queijo flamengo da careca
Dos defluxos guardar-o negro saco.
À ordem, Musa! Canta agora como
O poeta Ali-Moon no harém entrando
Como um poeta que enamora a lua,
Ou que beija uma estátua de alabastro,
Suando de calor de sol e amores
Cantava no alaúde enamorado.
E como ele saiu-se do namoro.
Assunto bem moral, digno de prêmio,
E interessante como um catecismo;
Que tem ares até de ladainha!
Quem não sonhou a terra do Levante?
As noites do Oriente, o mar, as brisas,
Toda aquela sua natureza
Que amorosa suspira e encanta os olhos?
Princípio no harém. Não é tão novo.
Mas esta vida é sempre deleitosa.
As almas d'homem ao harém se voltam-
Ser um dia sultão quem não deseja?
Quem não quisera das sombrias folhas.
Nas horas do calor, junto do lago
As odaliscas espreitar no banho
E mais bela a sultana entre as formosas?
Mas ah! o plágio nem perdão merece!
Digam - pega ladrão! - Confesso o crime,
Não é Ovídio só que imito e sonho
Quando pinta Acteon fitando os olhos
Nas formas nuas de Diana virgem!
Não! embora eu aqui não fale em ninfas,
Essa idéia é do cônego Filipe!

O.059.O Beijo - Alexandre O'Neill


Congresso de gaivotas neste céu
Como uma tampa azul cobrindo o Tejo.
Querela de aves, pios, escaracéu.
Ainda palpitante voa um beijo.
Donde teria vindo! (não é meu...)
De algum quarto perdido no desejo?
De algum jovem amor que recebeu
Mandado de captura ou de despejo?
É uma ave estranha: colorida,
Vai batendo como a própria vida,
Um coração vermelho pelo ar.
E é a força sem fim de duas bocas,
De duas bocas que se juntam, loucas!
De inveja as gaivotas a gritar...

O.058.O anjo caído - Almeida Garret


Era um anjo de Deus
Que se perdera dos céus
E terra a terra voava.
A seta que lhe acertava
Partira de arco traidor,
Porque as penas que levava
Não eram penas de amor.
O anjo caiu ferido
E se viu aos pés rendido
Do tirano caçador.
De asa morta e sem esplendor
O triste, peregrinando
Por estes vales de dor,
Andou gemendo e chorando.
Vi-o eu, n anjo dos céus,
O abandonado de Deus,
Vi-o, nessa tropelia
Que o mundo chama alegria,
Vi-o a taça do prazer
Pôr ao lábio que tremia
E só lágrimas beber.
Ninguém mais na terra o via,
Era eu só que o conhecia
Eu que já não posso amar!
Quem no havia de salvar?
Eu, que numa sepultura
Me fora vivo enterrar?
Loucura! Ai, cega loucura!
Mas entre os anjos dos céus
Cantava um anjo ao seu Deus;
E remi-lo e resgatá-lo,
Daquela infâmia salvá-lo
Só força de amor podia.
Quem desse amor há-de amá-lo,
Se ninguém o conhecia?
Eu só, - e eu morto, eu descrido,
Eu tive o arrojo atrevido
De amar um anjo sem luz.
Cravei-a eu nessa cruz
Minha alma que renascia,
Que toda em sua alma pus,
E o meu ser se dividia,
Porque ela outra alma não tinha,
Outra alma senão a minha...
Tarde, ai! tarde o conheci,
Porque eu o meu ser perdi,
E ele à vida não volveu...
Mas da morte que eu morri
Também o infeliz morreu.

O.057.O amor no éter - Adélia Prado


Há dentro de mim uma paisagem
entre meio-dia e duas horas da
tarde.
Aves pernaltas, os bicos
mergulhados na água,
entram e não neste lugar de memória,
uma lagoa rasa com caniço na margem.
Habito nele, quando os desejos do corpo,
a metafísica, exclamam:
como és bonito!
Quero escrever-te até encontrar
onde segregas tanto sentimento.
Pensas em mim, teu meio-riso secreto
atravessa mar e montanha,
me sobressalta em arrepios,
o amor sobre o natural.
O corpo é leve como a alma,
os minerais voam como borboletas.
Tudo deste lugar
entre meio-dia e duas horas da tarde.

O.056.O Amor e o outro - Affonso Romano Santana


Não amo
melhor
nem pior
do que nunguém.
Do meu jeito amo.
Ora esquesito, ora fogoso,
às vezes aflitou
ou ensandecido de gozo.
Já amei
até com nojo.
Coisas fabulosas
acontecem-me no leito. Nem sempre
de mim dependem, confesso.
O corpo do outro
é que é sempre surpreendente.

N.068.Nunca é tarde para amar - Andréa Borba Pinheiro


Nunca é tarde para amar!
Venta o vento,
chove a chuva,
raia o raio,
choro o choro...

Falta a tua presença...
Presencio a tua falta.
Às vezes mato a saudade,
outras, ela me mata!

Machuco minha ferida,
ao lembrar do que fiz
e do que poderia ter feito...
Quisera ser feliz!...

Sequer olho-te nos olhos...
A vergonha se apossa de mim...
E vejo, a minha inconsciência
perante o consciente.
Fui tola...enfim...

Se um dia me perdoares,
estarei a te esperar.
Afinal de contas, sei que
nunca é tarde para amar!...

N.067.Nostálgica Canção - Andréa Borba Pinheiro


Nostálgica canção
Ouvi-a novamente:
Aquela música,
aquela melodia,
aquela harmonia...

As notas combinavam-se tão perfeitamente...
Parecia até não ser real.
À cada acorde tocado,
eu sentia uma facada de nostalgia.

Lembranças vieram assim...em vão!
Expressões brincavam em meu rosto,
dependendo do pensamento que me ocorria,
dependendo da dor que me abatia!

No compasso da música, comecei a escrever.
Escrevi, errei, apaguei e reescrevi.
Nada me fez sentido!
Parecia inconseqüente...sem chão.

Parecia vazio, buraco de sentimentos.
Guardei a caneta e a borracha, mas não rasguei a folha...
Queimei-a com o fogo dos olhos,
escutando sempre ao longe, em um ruído,
o ressonar daquele expressivo violão!...

N.066.Nosso amor e a distância - Andréa Borba Pinheiro


Nosso amor e a distância
Ai que saudade...
Saudade que corrói o meu coração...
Me faz penar, sem poder te encontrar...
Tendo que me contentar somente com a emoção...

Algumas pessoas vêm para aprender,
Outras para nos ensinar,
E você...
Oh sim... você me ensinou a amar...

Não tem problema que você não volte...
Não tem problema se quiser me esquecer...
Mas ninguém vai te amar como eu...
Nem fazer tudo por você... como eu...

Lembro das nossas conversas...
Das palavras sussurradas docemente...
Das nossas promessas...
Dos nossos lábios tentando um beijo...
incessantemente...

Há coisas...
Que não voltam.
Outras...
Que sequer se realizam...

E assim é o nosso amor...
Nunca vai ser real...
Mas sempre vai existir...
Pois mesmo sob dificuldades, sobre ele,
nunca se abaterá nenhum mal.

N.065.Noite de Natal - Almandrade


Atrás da canção
uma grande lua
a estrela da festa
sinos da madrugada
que ninguém mais
escuta
despertam
lembranças distantes.

N.064.Noite - Abgar Renault


Há duas pombas brancas no telhado.
Junto delas pousa o silêncio do dia já parado,
e entre asas caladas o primeiro gesto da noite vai crescendo.
É tarde nos telhados e nas árvores,
é tarde (triste e mais tarde) nessa rua
que se reabriu no fundo de um olhar,
onde se movem ressurrectos mármores
e começam a discorrer ventos e velas
por sobre a limpidez das mesmas águas velhas,
e pássaros azuis bicam frutos de astro soltos no ar.
Sobem (de onde?) vultos escuros de coisas e de entes,
alongam a última distância, somem a luz que se destece
e a linha dos caminhos, apagam o verde prado.
Não há duas pombas brancas no telhado:
sobre elas, seu vôo e seu arrulho ausentes
a lápide sem cor das horas desce.

N.062.Neste ontem-castelo - Alexei Bueno


Neste ontem-castelo…

Neste ontem-castelo, sol rememorado,
Declínio tão fundo que é um lembrar do ocaso,
Vazias de homem, num pântano raso
Afundam-se as vidas, vai a morte ao lado:
Dentes que se trincam sem dentes na morte
Pelas equipagens inúteis de guerra
Que, perdida ou ganha, o mesmo nada encerra
Tanta hora após, tão afogada a sorte.
Peitorais sem sangue, viseiras no escuro,
Nomes de heróis mortos nas tapeçarias,
Mortos duas vezes, vomitar dos dias
Que a razão de tudo soterrou num muro.
Mortos de seu nome, mortos no porquê...
Puderam morrer por terem sido um tanto.
Mendigos de então com ulcerado canto
Nem morte tiveram, que a vida os não vê.
Olhos visitantes que são calma e agora
A correr sem febre o vestido das damas,
A não-febre de hoje que cheira das camas,
A febre do amor, da peste, do ir da hora.
Pêndulos que batem, mas nem visam nada,
Não existe tempo nas pedras daqui
E tudo se empedra, e toda pedra ri
No arranhar segundos pela madrugada.
Espada que fura, mas não tem mais ponta...
Leão que devora, mas não tem mais dente...
Luva que degola, com a mão ausente...
Sábio sem mais olhos que as estrelas
conta.se hoje tudo é morto, teve raiva um dia,
Teve sangue e o sangue derramado alheio,
Coração que pulsa à carta que não veio,
Mas minha alma a tudo consegue ser fria,
Do fundo de um fosso, de espiar de estrela...
Nunca batalhei e nem vitória quero,
Nem derrota alcanço, esqueço de onde espero...
Deus nem luta dá para eu poder perdê-la.

N.063.No baile - Afonso Celso


Ontem ao contemplá-la decotada,
Ao primor do seu colo descoberto,
Senti-me tonto, da vertigem perto,
Fremente o pulso, a vista deslumbrada.
E, como em láctea fonte perfumada,
Sorvi-lhe sonhos mil no seio aberto,
Com a sede de um filho do deserto
Que encontre enfim a linfa suspirada.
Giram em derredor das níveas flores,
Sofregamente, insetos zumbidores ...
- Meus desejos então foram assim...
Mas arredei os olhos, de repente,
Pois meu olhar podia, de tão quente,
Crestar-lhe a fina cútis de cetim!

N.061.Nem com uma flor - Affonso Romano Santana


"Até hoje só bati numa mulher,
mas com singular delicadeza".
Vinicius de Moraes

Um amigo ia passando pela Avenida Atlântica quando viu um homem batendo numa mulher dentro de um carro estacionado. Resolveu parar e chamar a polícia. Mas iam passando pelo calçadão dois garotões atléticos que vendo o tumulto pararam também para saber. Meu amigo então lhes explica que o sujeito estava batendo na mulher.
- Mas a mulher não é dele? - indagou o garotão.
- E só porque é dele pode bater? - diz o amigo.
- É, nessa você me pegou, cara.
Nesta semana a OAB descobriu que em Imperatriz, no Maranhão, nos últimos cinco anos, maridos mataram 30 mulheres. Mas o fizeram por uma razão muito clara: não queriam pagar pensão nem partilhar os bens na separação. Diante desta estatística da terra de Sarney, os machos da terra de Tancredo ficam humilhados, porque eles só matam mulher por "traição", e, mesmo assim, em menor escala.
Mas vou lhes contar outra estória: uma amiga estava em São Paulo numa conversa sobre espancamento de mulheres. De repente, falou-se de um conhecido professor que havia espancado a mulher (coisa, aliás, que acontece em várias faculdades do país). Reparem bem, estamos falando de gente fina. Não se trata de cachaceiros na subida do morro, do sujeito massacrado pela vida que chega em casa escorraçando as crianças, cães e mulheres. Estamos falando de gente inteligente, formada, com anel no dedo, que toma coquetéis com a gente e cita Marx, Hegel et caterva. Vai daí, alguém, comentando a razão por que o professor teria batido na mulher, sendo ele uma pessoa célebre, indaga: - Mas, afinal, ele é ele, e ela quem é?
Na primeira estorinha vocês viram que um acha que a mulher é propriedade privada do marido, e por isto pode apanhar. Quer dizer: é igual quando a gente tem um cavalo ou cão. Já na segunda narrativa, a titulação acadêmica ou a importância hierárquica justifica a violência sobre o mais fraco. E a mulher, do ponto de vista muscular, é geralmente mais fraca que o homem. Por isto faz muito sentido quando na favela ao lado ouço as mulheres que apanham gritar: "Covarde! Vai bater num homem". E um garotão esclarecido, que estuda lutas marciais, ao ouvir a estória do professor espancador, observou: "Eu queria ver esse professor crescer para cima de mim".
As estorinhas como essas são intermináveis. Lá vai outra. Uma amiga estava dando uma entrevista à televisão e o assunto era exatamente o espancamento de mulheres e a necessidade de se criar uma delegacia especial no Rio, como Franco Montoro criou em São Paulo, só para atender mulheres. E lá ia explicando o bê-á-bá da violência dos homens sobre as mulheres, lembrando que, quando uma mulher é violentada ou espancada, nas delegacias comuns têm que passar por vexames e cantadas, que os homens vêem a vítima como culpada, porque nossa sociedade nos convenceu de que a mulher é sempre uma Eva pecadora. Lembrava que em alguns países, além das delegacias para mulheres, há associações estruturadas para esconderem as vítimas, porque sabem que se muitas delas voltarem para casa serão até assassinadas. E foi explicando que em alguns lugares dos Estados Unidos existe um tratamento para maridos violentos, em sessões comuns, uma espécie de Associação de Alcoólatras Anônimos (os Espancadores Anônimos), que se curam e se tratam em grupo, porque isto é uma doença pessoal e social.
Mas enquanto minha amiga dava a entrevista, os câmeras estavam indóceis. Parecia que o assunto era com eles. E aí, não agüentaram, interromperam a entrevista e um disse: - a gente trabalha na rua o dia inteiro, chega em casa cansado e a comida não está pronta, o que é que há? Ela está querendo apanhar! E a amiga tentou explicar: - então é só você que trabalhou? Ela não batalhou por aí em dupla jornada? Imagine se toda mulher fosse bater em marido que traz pouco ou nenhum dinheiro para casa?
Os câmeras continuaram resmungando durante a entrevista. Não sei o que aconteceu quando eles chegaram em casa. Mas se houvesse na cidade uma delegacia para defender o direito das mulheres certamente pensariam duas vezes. Talvez não chegassem em casa sobraçando flores. Mas seguramente chegariam menos arrogantes.