sexta-feira, 30 de setembro de 2022

B.039.Boa noite Ateneu - Angélica T. Almstadter


Será mesmo? Quem como eu caminhar por esta casa 
hoje talvez sinta a sensação que sinto invadir o meu peito:
abandono. É a casa está não só quieta, está abandonada
 pelos moradores. Há dias caminho por aqui desolada,
há comodos que nem se acende mais luzes, tanto tempo 
que foi abandonado...cheira bolor. Eu procuro uma 
porta entreaberta um sorriso, as vezes encontro uma luzinha 
fraquinha uma voz sumida e quando me aproximo; era 
só um eco, o dono da voz já tinha partido.
Algumas pessoas deixam bilhetinhos, 
a demonstrar que não partiram; apenas se ausentaram 
um pouco. Eu sempre caminho por essa casa procurando 
um rosto conhecido alguém que queira se sentar comigo 
para bebericar um pouco de poesia, mas nem naquelas 
mesinhas onde habitualmente encontro os 
mais renitentes, há alguém; tudo vazio, empoeirando.
Andando por aí, pelos jardins volta e meia encontro 
aqueles que vieram colher uma flor, encontro na  biblioteca 
rastro de quem apanhou um livro e deixou um recado 
anotado no marcador. Quando o telefone toca, 
mensagens gravadas na secretária eletrônica, tão impessoal.
Na sala  de estar, tudo está no mesmo lugar; 
nem uma ruga no sofá, as cortinas fechadas 
impedem o sol de entrar para iluminar.
Os risos partiram, sinto falta de gente
não de prateleiras para colocar poesias.
Esse é o retrato do Ateneu; infelizmente e eu que 
gosto de entrar nessa casa todos os dias abrir as janelas, 
ligar o som, espanar a tristeza (embora as vezes ela venha comigo). 
Tenho andado sem ânimo de perambular por aqui ouvindo o 
eco da minha própria voz.
Vago por aqui, olhando pelas paredes, pelas frestas, 
me dá um aperto no peito. Saio sem nem sequer 
fechar as portas ou apagar as luzes...

B.038.Balada do caminheiro - Pastorelli


Indo pelo caminho
caminhante caminha
ante a amplidão
do teu destino.

Destino destinado as pedras
chutar chutando
do cauteloso caminho
predestinado.

Caminhante caminha
cuidadosamente
debaixo do sol a pino
em circunstâncias de perigo.

Caminho caminhante caminha
caminha o seu destino
cautelosamente cuidadosamente
em cada esquina.

Cuidado caminhante se não poderá
uma faca riscando o ar encontrar
que interromperá
o teu destino.

B.036.Busca Frenética - Pastorelli


A esferográfica
Não tem o poder
De no papel deslizar
Como um filme noir
Cult movie romântico
Político satírico
E numa busca frenética
Nos abismos de mim buscar
A beira de um copo de cerveja
Os cristais estilhaçados
Por uma bala perdida
Que do seu esquecimento partiu

A minha esferográfica
É uma esferográfica comum
Que obedece os elétricos impulsos
Que a mão recebe dos neurônios
A rabiscar a traçar a riscar
Estas palavras frias e soturnas

Palavras
Sem a concreta transparência
Morrem afogadas solitárias
Na última gota de cerveja
Ao fechar do último bar

Minha esferográfica
Não tem o poder de transformar
O frio em quente
De dissipar a melancolia em saudade

Minha esferográfica
Está estagnada na noite gelada
Dos meus olhos que se fecham
Ao transpor os umbrais
Desta vida torta
Concreta sem reta

Minha esferográfica
No papel desliza
Numa busca frenética
De encontrar o incontrável
De querer o inquerível
De achar o não achado

Minha esferográfica
Mansa repousa
Tranqüila calma
Ao som de uma
Noite fria de setembro

B.035.Balda da Forma nº 2


Na tua mente
uma forma figura
foi formada plenamente
com o tema de:
forma figurada.

Dessa forma figurada
fixamente a figura tornou-se
figura projetada.

Forma figura
projetada
figura formada
ficou figura deformada.

Como se tornou figura
deformada
preciso foi que a forma
figura de figurativa forma
em fina figura ficasse.

B.034.Balda da Forma - Pastorelli


A forma figura
Em forma
Ficou figurada

Ao fitar a forma
Figura figurada
Em forma figurativa
Foi formada

Nesse fitar fixamente
Foi transformada
Em figura fixamente
Focalizada

A figura
De fixamente focalizada
Ficou desfigurada

Mas, a figurativa
Figura fixamente focalizada
Ao ser desfigurada
De figura foi
Em fina forma
Figura formada

B.033.Bocejo - Odete Ronchi Baltazar


É pela manhãque sinto a tua falta...É quando acordo eespalho a preguiça entre os lençóis,quando me viro e não te vejoque sinto a falta dos meus sóis perdidos em teu olhar. Falta-me o côncavo do teu corpo que eu preencho comternura, pernas, braços e pés.Falta-me o teu resmungar rouco,o teu cabelo revirado,falta o teu bocejo (nada) poético,falta a tua roupa largada de qualquer jeito,falta a tua displicência na hora de amar. Que posso fazer?Levanto-me, visto-me com a tua ausência,calço chinelos e espanto o sonho que não quer acordar.Lavo depressa na torneira a minha decepção.O dia começou mais uma vez.Deixemos de lado a emoção.

B.032.Basta - Angélica T. Almstadter


sinto o peso das palavras a modulação dos sons ouço o tilintar das vogais elas entram-me sem dó rasgando os silêncios rompendo portas e janelas ecoando pelas paredes ensurdecendo meus ouvidos
calem-se! quero de volta a mudez das madrugadas insones ouvir minha respiração arquejada meus risos solitários estatelados pelos espelhos e telas quero as lágrimas caladas borrando o rímel sem lenço nem ombro
voltem para as bocas insossas para as gargantas fúteis ao celeiro dos seus desafetos minha algesia não suporta tanta sonoridade rebatendo em zig zag entre minhas arestas

B.037.Bom dia chuva - Pastorelli


Bom dia chuva
Pastorelli


bom dia chuva gloriosa chuva
não gosto de você mas é preciosa
necessária com suas devastações
inundações e tudo mais
prefiro mais o inverno
eu te aceito chuva
mas com uma condição
chova lá no sertão
onde a terra esturricada
pede um pouco de sua atenção
chova nos campos
para que vicejam as plantas
alimentarem os famintos
mas não chova na cidade
justo na hora que eu saio
para o cansativo trabalho
também não chova
quando saio a passear
e nunca quando estou
no micro a trabalhar
aceita minhas condições?
então pode chover a vontade
ah! mas sem raios e trovões

B.031.Brisa e Alma - Lucelena Maia


─ Buenos Aires, voltei!
Silvia sentia-se plena, a rodopiar pela Plaza de Mayo como se resgatasse acontecimentos importantes, ali, vividos.
Faz tanto tempo! Ela pensou, com inquietos olhos buscando por alguém que não era visto.
- O que estou fazendo! Silvia ajeitou-se, despertando da nostalgia, a atravessar a plaza de mayo de forma mais discreta.
Viera a Buenos Aires para documentar a vida turística da bela capital da Argentina. Era preciso não se esquecer disso. Porém, veterano e disponível coração parecia não se importar com esse fato, acalentava pulsar dias vividos unicamente para o romântico aroma portenho do passado.
─ Aquiete-se, coração! – ela esboçou sorriso, espremendo os lábios, com uma das mãos sobre o peito a segurar sua pulsação impulsiva ─ Primeiro, o Cabaña Las Lilas em Puerto Madero, onde degustarei e documentarei sobre o bife de chorizo e seus acompanhamentos, e, como estimulante finalizador para a matéria, falarei das excelentes carnes suculentas, destacando a gastronomia como ponto forte desse país.
Silvia tentava organizar o trabalho para os próximos dias, sem deixar espaço para ilusões ou sonhos descabidos, no entanto, alguns minutos mais e perdia a concentração.
- Eu sei coração, os cafés notables esperam-me. Paciência, antes a obrigação.
Era julho, vestia um sobretudo 7/8 de lã, preto, acompanhado por um scarf em tom carmim. Nos lábios, gloss, para umedecê-los contra o seco vento. Os cabelos castanhos, longos e ondulados moviam-se a cada passo que ela dava em direção ao café Tortoni. Definitivamente, sucumbia aos desejos do coração.
Odiava admitir, mas era movida muito mais pela emoção que pela razão.
De longe podia avistar a fachada do edifício de três andares, em ferro e vidro, com suas varandas em estilo francês. Convencia-se que um bom café e a companhia das lembranças de Borges, que ali, no Tortoni, muitas vezes sentou e rascunhou seus escritos, lhe fariam bem nesse final de tarde gélido.
"...Eu caminho por Buenos Aires e me detenho, talvez já mecanicamente, para olhar o arco de um saguão e uma porta envidraçada; de Borges tenho notícias pelo correio e vejo seu nome numa lista de professores ou num dicionário biográfico...".
Silvia recordava estas palavras por Borges, em Borges e eu. Era incrível como se sentia como ele. A jornalista se resumia ao jornal, revistas e documentários pela televisão, porém a mulher que ela era se fazia pura poesia, romantismo, através de seus olhos cor de céu, observados por Carlos Gardel, a convidá-la para o sub-solo onde concertos de tango e jazz aconteciam.
- Está bem! Eu admito! Carlos Gardel é invenção minha. Mas, coração, eu só queria sentir-me importante. Na verdade, Carlos Gardel já esteve aqui, há menção a ele numa mesa próxima a janela onde estou sentada. Justificava, com sorriso maroto, para si mesma e para seu coração que nesse instante lhe era confidente.
Não havia mais mesa vazia àquela hora, tão pouco barulho que incomodasse, apesar da conversa, muitos se detinham a ler, reclusos a um mundo literário exclusivo. Silvia viajava com seus pensamentos num submarino quente, numa mesa para dois.
Discretamente procurou pelo olhar de Juan, mas era impossível vê-lo, como era impossível reconstituir uma história finalizada. Que pena! Pensou, com certo pouco-caso.
O relógio, na parede que sustentava inúmeros quadros e gravuras, apontava mil motivos para que ela retornasse ao hotel. A manhã seguinte seria de árduo trabalho, acumulados aos que deixara de fazer nesse dia.
Silvia pediu a conta e enquanto aguardava, se prometia, em pensamento, antes de retornar para o Brasil, dançaria um tango com Carlos Gardel que, nessa tarde lhe piscara, num convite irrecusável e confidente.
Quanta criatividade! Ria de si mesma. Pagou a conta e saiu.
Assim era sua vida, ela improvisava o que a realidade lhe dificultava oferecer.
Borges sabia por que afirmara, um dia, como ela dizia agora, copiando-o: "...Chego a meu centro, à minha álgebra, ao meu espelho. Em breve, saberei quem sou...".
A brisa da noite beijava-lhe o rosto sugerindo abraçá-la, como ela assim o desejava ser.
Suspirou, entregue as investidas, como se bebesse os ventos por Juan!

B.030.Bóias-frias - Lucelena Maia


Mãos calejadas repousam na enxada,
Suor de bóia-fria é desolação...
Olhos humildes, perdidos na estrada,
Amanhecidos nas ruas da plantação.

Alimentam-se de solidão, dificuldade,
E da marmita que viu o dia nascer;
Banham seus corpos no sol da tarde,
Laboram searas, sem esmorecer.

Adubam, plantam, colhem poeira,
Comandam a vida ensacando grão;
Da boléia do caminhão, recebem areia,
Que lhes cobre a já cansada visão.

Onde houver terra e trabalho
Haverá música instrumental de peão.
A esse trabalhador humilde e dedicado,
Só o solo poderá garantir-lhe o pão.