sábado, 30 de novembro de 2024

O.129.O verbo amar - JG de Araujo Jorge


Te amei: era de longe que te olhava
e de longe me olhavas vagamente...
Ah, quanta coisa nesse tempo a gente sente,
que a alma da gente faz escrava.

Te amava: como inquieto adolescente,
tremendo ao te enlaçar, e te enlaçava
adivinhando esse mistério ardente
do mundo, em cada beijo que te dava.

Te amo: e ao te amar assim vou conjugando
os tempos todos desse amor, enquanto
segue a vida, vivendo, e eu, vou te amando...

Te amar: é mais que em verbo é a minha lei,
e é por ti que o repito no meu canto:
te amei, te amava, te amo e te amarei!

sexta-feira, 29 de novembro de 2024

O.128.O amor antigo - Carlos Drummond de Andrade


O amor antigo vive de si mesmo,
não de cultivo alheio ou de presença.
Nada exige nem pede. Nada espera,
mas do destino vão nega a sentença.

O amor antigo tem raízes fundas,
feitas de sofrimento e de beleza.
por aquelas mergulha no infinito,
e por estas suplanta a natureza.

Se em toda parte o tempo desmorona
aquilo que foi grande e deslumbrante,
o amor antigo, porém, nunca fenece
e a cada dia surge mais amante.

Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor.

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

O.127.O tempo passa ? Não passa - Carlos Drummond de Andrade


O tempo passa? Não passa
no abismo do coração.
Lá dentro, perdura a graça
do amor, florindo em canção.

O tempo nos aproxima
cada vez mais, nos reduz
a um só verso e uma rima
de mãos e olhos, na luz.

Não há tempo consumido
nem tempo a economizar.
O tempo é todo vestido
de amor e tempo de amar.

O meu tempo e o teu, amada,
transcendem qualquer medida.
Além do amor, não há nada,
amar é o sumo da vida.

São mitos de calendário
tanto o ontem como o agora,
e o teu aniversário
é um nascer a toda hora.

E nosso amor, que brotou
do tempo, não tem idade,
pois só quem ama escutou
o apelo da eternidade.

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

O.126.Olhos - Angélica T. Almstadter


Há olhos cravadosnas paredesna rua,no chão. 
Não há olhos de ler,de chorara cura, a alma pura. 
Olhos rodeiama imensidão sem nada ver. 
Nas órbitas tristesde um branco sem fim moram os olhosde uma vida. 
A vida inteirase percorrepelos olhos;e o olhos vida aforapercorrem a vida. 
Morre-se sem dos olhosentender a razão. 
Sem deles ter impresso a paixãoa tristeza dos dias,o sorrisoou a dor.

terça-feira, 26 de novembro de 2024

O.125.O anjo de pedra - Cissa de Oliveira


“Sabe lá o que é passar mais de oitenta anos sendo lembrado de forma humilhante sobre alguma coisa que você nem ao menos precisa esquecer? Por aí você vê que ter nascido preto foi o meu primeiro karma. Não, azar, que karma é palavra que preto do meu naipe não conhece; ou porque não conhece mesmo ou porque pensam que a gente é burro, por fora de tudo, sem percepção. Se a gente deixa, vai ficando o dito pelo não dito, o pensado pelo não pensando e por aí à fora. O segundo karma foi ter nascido pobre. O terceiro: continuar pobre, mesmo aposentado, e pior, dependente de filho”

Naquele dia Otoniel tinha acordado com a revolta da vida toda. Pior, revolta calada, daquela que mói por dentro sem fazer barulho, até deixar o sujeito uma casquinha assim, de nada. Casquinha fiiiina, curvada de tudo; qualquer coisa quebra, de atropelamento a ingratidão de filho.

- Já ta pronto?
Otoniel, calado estava, calado ficou. Ara!
- Coloca o cinto, pai... Não ta vendo que a calça ta caindo?

Otoniel abotoou o cinto num dos quatro furos que ele mesmo foi acrescentando desde que foi morar na casa do flho. Um a cada ano, mais ou menos. A ponta do cinto pendia. Era um tanto de tira de couro, fina, meio molenga, tão molenga que não se segurava nos passantes do cós da calça preta. Ele se arrumava bem devagar, o que irritava o filho.

Logo na porta, ao sairem, o vento encheu a camisa clara de seu Otoniel, um dos seis moradores do barraco número 528 do Parque Esplendor. Nem o nome bonito consertava a realidade do lugar. Seu Otoniel seguia meio curvado. Os pés descalços das crianças, pra lá e pra cá, atrapalhando a passagem pelas vielas estreitas. Vez em quando ouvia uma saudação, intuia um olhar, alguma profunda consternação. Não era pela pobreza não, que isso era coisa que ali não faltava. É que os vizinhos sabiam...
Venceram o aglomerado de minúsculas casas. Do outro lado, o muro pintado de vermelho, o portão grande e os carros de bombeiros.
- A civilização ...
- Nós também somos civilização!
- É mesmo? Resmungou Otoniel, colocando o chapéu de palha sobre a cabeça coberta de fios brancos.

Caminharam por cerca de quinze minutos. Seu Otoniel com dificuldade, Alcides, o filho, com impaciência. Atravessaram a passarela e logo seguiam pelo asfalto da rua paralela à rodovia. Os portões altos das casas mostravam bem a preocupação da vizinhança para com o Parque Esplendor. Ah, que aquilo incomodava seu Otoniel tanto quanto o sol daquele dia, por mais que o vento arejasse por dentro da camisa dele, com um movimento que mais parecia brincadeira. Brincadeira de criança.

Suzete e ele tiveram cinco filhos. Delmira, Juca, Ataíde, Alcides e Melissa, nessa mesmíssima ordem. Teriam mais, não fosse o destino ter arrancado dele, e de forma trágica, a companheira. Chegados na cidade grande, ela se empregou mesmo antes que ele. Suzete, criada na lida do interior de Pernambuco, era mulher pra toda obra, e não ia recusar serviço. Depois, tinha uma carinha boa, gestos calmos, olhos brilhantes, cílios longos, curvados nas pontas. Parecia afagar, a cada piscar de olhos, os viézes do cotidiano. E quando se emocionava? Anjo disfarçando, enxugando as lágrimas com a pontinha dos dedos.

- A minha Suzete inspira confiança... dizia seu Otoniel, para o constrangimento dos patrões dela. No trabalho, Suzete corria pra todo lado. Fogão, tanque, arrumação, crianças que iam e voltavam da escola, uniforme, mesa posta. Do lado dos patrões, diziam que no dia do acontecido Suzete se descuidou com a penela de pressão. Queimaduras terriveis, trinta e nove dias de internação, respiração artificial, sofrimento nela e nos demais. Infecção hospitalar. Por fim, a notícia que ninguém queria: morte.

Seu Otoniel fez o que pode. Terminou de criar os filhos sozinho. Os dois mais velhos se revezavam entre a escola e o cuidado com a casa e com os irmãos. Com exceção de Melissa, que terminou o ginásio, todos largaram a escola precocemente. Juca e Ataíde pra trabalhar. Delmira porque engravidou e foi morar com um rapaz, até o dia em que ele sumiu no mundo e ela voltou pra casa com dois filhos. Depois se juntou com outro e foi morar em Salvador. Alcides não estudou porque nunca foi muito chegado a estudar. Dava trabalho que só! No fim, nem bandido, nem honesto. Alcides fazia o tipo malandro esperto. Vivia de bico. A vida traçou os seus meandros. O tempo voou, até que seu Otoniel, há muito aposentado, se viu na condição de ter que morar com um dos filhos. Que fique esclarecido: da aposentadoria nem o cartão do banco ele via! Coisa do Alcides.

Mais uma subida e alcançariam o semáforo da principal avenida local. “Suzete, Suzete, as crianças ainda pequenas... Trabalho de sol a sol. Cansaço do bom. As tardes de domingos, simple s,preguiçosas, festeiras. Salgueiro, no interior de Pernambuco, que nem luz elétrica conhecia, parecia vibrar. Tudo acontecia ao mesmo tempo. Música, dança, grito de criança, risada e conversa alta, misturados igual a leite com fruta, nesses aparelhos da cidade, os liquidificadores.”

- Vê se fica aí! Nada de ir pra outros semáforos. Às seis horas eu volto, ta? Otoniel fez que sorriu, mostrando que entendeu. Logo estendeu o chapéu. Os carros parando no semáforo... algumas moedas. “A casa era pintada de amarelo. No inverno lembrava um sol fincado no chão, no meio da chuva, bem ao alcance das mãos. O verde da plantação crescia do mesmo tanto que a alegria. Mas isso era quando Deus queria. De um lado, Ele, do outro a força da seca. Era preciso pensar nos filhos, no futuro deles, na educação... Onde foi que eu errei...?”

- Vai trabalhar!
- Olha, hoje não tem moedas, vovô! Fica para a próxima.
- Tudo bem aí? Alguns motoristas, muitos dos quais já familiarizados com seu Otoniel, cumprimentavam. Talvez entendessem aquela dor que encolhidinha por dentro devia vazar. Colocavam algum dinheiro no chapéu estendido de seu Otoniel, ao que ele agradecia sempre. Não naquele dia, consumido que estava.

Foi duro pra abandonar as terras, os parentes, os amigos, enfiar a cara no mundo desconhecido da cidade grande. Tudo pela família. Agora, andando com dificuldade, entre um e outro carro, ia feito liquidificador, misturando o presente e o passado. Quando chegasse em casa, o valor arrecadado que ele nem contava, ia direto para o filho. Os outros filhos também estavam casados, cuidando cada um da própria vida. Um ou outro aparecia de vez em quando no barraco. Queriam saber das coisas, até traziam mimos vez por outra, mas disfarçavam mal o alívio por não terem de cuidar dele. Como se não bastasse, nessas ocasiões ele estava proibido pelo Alcides de tocar no assunto “semáforo”.

“É... ainda outro dia o Alcides não voltou... e querem saber, foi bom! Eu fiquei aqui até escurecer. Deu nove horas e nada. Foi quando eu decidi voltar sozinho. Antes, de vingança, eu comprei com o dinheiro das esmolas uma caixa inteira das paçocas que o maltrapilho do outro semáforo vende. Ele disse que é sozinho na vida. Daí que na sorte a gente é muito do igual!”- E aí vovô, cuidado.

- O que deu nele...?

O seu Otoniel, por demais admirado, não ouvia nada. Podia jurar que o anjo de pedra, da catedral do outro lado da avenida, enxugava uma lágrima com a pontinha dos dedos. Ele pensava em Deus, nas alegrias, nas decepções, no tempo que passa rápido, na fragilidade entre o certo e o errado, entre o bem e o mal. Foi atravessando a avenida. “Estou como um liquidificador meio quebrado. Ah, que saudade da esperança que ficou lá no fundo, bem no passado." Uma freada tardia, seguida de um baque, levantou Otoniel bem acima da superfície. Então já era tarde, e tudo escureceu.

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

O.124.O menino e o tio - Pastorelli


Feito intrépido Rocicler enfrentando a poeirenta estrada, o velho caminhão apelidado carinhosa­mente de Mazzarope resfolegava em mais uma viagem transportando o pessoal.

Em pé na carroceria junto com os outros, ele se equilibrava numa disfar­çada brincadeira para ver quem permanece­ria mais tempo em pé. Brincadeira estúpida, não gostava. Preferia ficar deitado no assoalho de tá­buas brancas que exalava cheiro de cevada con­templando o céu azul, mas como estavam em mais de vinte pes­soas era obrigado a participar dessa brincadeira boba.

Seus olhos castanhos esverdeados claro lembravam os olhos da vó dardeja­vam um inquieto brilho de raiva, duro, ma­goado, de quem es­pera uma oportunidade, e quando ela chegasse não iria perdê-la, ah! não, não iria perdê-la por nada, seria seu passaporte para a vida futura.

A humilhação quei­mava na mente como ferro em brasa. Os ouvidos martelavam as gozações, as risadas ao verem ele sem calça, nu, pelado na frente de todos. O tio, irmão mais velho da sua mãe, segurando sua calça era quem mais go­zava da sua cara. Como odiara o tio, odiara aquele momento. Seus olhos fuzilaram o tio, seus dentes rangeram um contra o outro num ódio imenso. Nada pudera fa­zer, a não ser se esconder. Num safanão arrancara a calça da mão do tio e fugira. Ah! Ele não perdia por esperar.

Che­gavam à cidade.

Para­riam na casa do tio como faziam toda vez que havia matança de porcos, para a distribuição do quinhão perten­centes a cada uma das fa­mílias. Era nesse momento que ele iria ter a chance. Era só ficar de olho aberto, vigi­ando.

En­quanto o velho Mazzarope atravessava a rodovia en­trando na cidade, revia os acontecimentos que gostaria nunca ter acontecido. Descendo do ca­mi­nhão no pátio da fazenda, a pri­meira coisa que viu foi os porcos sacrifi­cados. Um estava em cima da mesa sendo destrinchado pelas mulhe­res, o outro boiava num tacho de água super quente, e logo mais adi­ante, perto do chiqueiro, um terceiro guinchava e se esperneava perce­bendo seu des­tino. Por fim, se rendendo deixou-se esfaquear pela mão firme do tio que decidido enterrou fundo a faca pontuda na carne do animal espirrando sangue que fora recolhido numa grande caneca.

E quando arrumavam as coisas para vir em­bora, o tio teve a infeliz idéia de arran­car sua calça na frente de todos. O que lhe doía não era o fato de ficar nu, as gozações, os deboches, as ri­sadas das meninas, das mulheres, e sim, o não poder se defender, o não poder revidar o tio sendo obrigado ao vexame.

Vigiando os movi­mentos viu quando o tio ao chegarem foi deitar-se para um pequeno e leve descanso. Esperou até que o tio fechou os olhos e devagar, sem fazer ru­ído, chegou bem perto. Sentia até o hálito do ronco.

Não esperou mais. Desceu a mão em cheio, foi um tapa estrondoso no rosto do tio que assustado não teve tempo de segurar o so­brinho que em desabalada carreira fugia do quarto.

A partir desse dia nunca mais falou com o tio.

domingo, 24 de novembro de 2024

O.123.O papagaio - Pastorelli


O cam­pinho como era cha­mado o ter­reno baldio que fi­cava atrás da casa àquela hora estava va­zio. O que lhe proporcionou uma alegria safada.

Queria testar primei­ra­mente antes de mostrar aos amigos o papagaio que fizera com ajuda do pai na noite anterior.

Olhando para os lados viu que o dia estava exce­lente. O vento so­prava docemente o que prometia boa diversão. Paci­ente esticou a li­nha e sem muita dificul­dade conseguiu colocar o papa­gaio no ar.

A linha quase totalmente esti­rada produzia na sua mão vi­brações pequena que ao seu comando o papagaio subia, descia e com pequenos toques na linha fazia com que ele embi­casse ora para a esquerda, ora para a direita.

Já previa a estupefação dos amigos, as ex­clamações de admiração. Veriam que agora eles tinham um compe­tidor à altura, sor­riu satisfeito.

Nisso ao dar um puxão um pouco mais violento, a linha perdeu a força. O pipa estava caindo. Largou a lata de li­nha e saiu cor­rendo. O campinho não era grande, mas o vento para desespero do ga­roto arrastou o pipa para o outro lado da rua.

Estava quase perto do pipa caído no asfalto quando viu surgir o carro vindo pelo lado es­querdo. Aflito ele acelerou as pernas e gritando e gesticu­lando os bra­ços procurou chamar a atenção do mo­torista.

Porém o veí­culo au­mentou a velocidade não dando oportunidade para que ele che­gasse a tempo para salvar o papagaio. Com os olhos fixos cheios de lá­grimas pegou os destroços do chão e com passos lentos en­trou em casa.

sábado, 23 de novembro de 2024

O.122.Os mil tons da solidão - Angélica T. Almstadter


acenando ao vento se afasta,
já fora do alcance dos sons,
sua obtusa lembrança gasta
na trilha matizes em mil tons


a rede rompeu laços tantos
é hora de navegar a solidão
espraiar em outros recantos,
com fúria, sua autêntica ilusão


sem traves, obstáculos ou afins
sobre os próprios passos
poder calçar solfejos de serafins


um brinde borbulha na taça
a palavra se sujeita a míngua
de qualquer língua em ameaça

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

O.121.Out - Angélica T. Almstadter


 Chic é ousar ser é não negar o tesão,muitos não se levam a auto estima. 
 Estar on as vezes é muito vazio;
 Estar out é uma saca da pra grandes vôos. 
 A solidão é off a alegria está out;um clic e se acende. 
 Mas chic mesmo é saber ser out curtir a solidão gostar muito de ser
 beber o vazio e voar com alegria.

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

O.120.Olhos de ressaca - Angélica T. Almstadter


 Mataram meu humor na curva de uma palavra
 O riso ficou pendurado num canto sem graça da boca 
 minha voz foi encoberta pelo som dos silêncios entre olhados cúmplices 
 meus olhos pensos soluçaram de dor e não mais sairam do porta-retratos da sala