sábado, 28 de dezembro de 2024
O.149.O estado apaixonado - Lisiewska e Steen
Mal sabes quanto me alegro
Quando te vejo defronte:
É como quem morre à sede
E põe a boca na fonte!
O meu coração do teu
É bem ruim de apartar:
É como a alma do corpo
Quando Deus a vem buscar.
Ai, muito custa uma ausência
A quem na sabe sentir!
Mas mais custa uma presença
De ver e não possuir!
Dormindo sonho contigo,
De dia contigo estou;
Tua imagem vem comigo
P’ra todo o lado onde vou.
Esta noite sonhei eu
Cuidando que era já tua;
Tive tantas alegrias
Como pedras há na rua!
sexta-feira, 27 de dezembro de 2024
O.148.O rei Mago da Floresta - Um Poeta Vagabundo
O rei Mago da Floresta
vem trazendo as medicina
ó rei Mago da Floresta
vem em visita a aldeia
Divino é o nosso mestre
uma centelha de luz
traz luz, paz e amor
e a união que nos conduz
Ó meu Deus quanta beleza
Oculta na natureza
Alteza celestial
nos trás o bem e afasta o mal
Sua luz de claridade
nos mostra a realidade
é de Deus seu mensageiro
Rei Caiano no mundo inteiro
Rei...rei...rei...ei...ei...ei..
O.147.O Segredo do Portal - Um Poeta Vagabundo
Dia a dia o que conspira?
O Sol nasce pro poente
Cada manhã, uma nova chance
Antes do fim...até o fim
Corpo, o lastro da mente
O Destino, o que pretende?
O Que vem do Nada,
Nada é antes do fim recomeçar?
Paz, vida ensina
O que é viver
O menos é mais
Só a vida faz
Aprender viver e morrer em Paz
Agora faço tijolos
O homem veio do barro
Ou da poeira das estrelas?
Um zunido infinito
No silêncio absoluto
Onde não há tempo perdido
O infinito terá um fim?
O.146.O dia do silêncio - Um Poeta Vagabundo
Se de repente as pessoas não falassem por vinte e quatro horas, o mundo teria um milionésima fração de segundo de sanidade, mas uma sanidade contida pelo silêncio, porque mesmo sem falar , se pensa e age.Mas oque é uma ínfima fração de silêncio na história falada? De que isso seria útil? será que falarão o dobro no dia seguinte? Com certeza, e digo mais, será o acontecimento mais comentado pela imprensa, imagine que prato cheio pros vendedores de jornais e revistas sem conteúdo, terão assunto para capa por semanas, e relatos desnecessários por meses. Nos programas dominicais de tv só se falará nisso, e farão especiais do tipo 'oque as celebridades fizeram no dia do silêncio' ou 'nossos repórteres acompanharam oque fulano fez no dia do silêncio' e mais 'depoimentos da ciclana sobre como foi o seu dia do silêncio'.Nem copa do mundo, nem outro escândalo de corrupção no congresso, nem a morte do Sílvio Santos irá mudar de assunto...ops... a morte Sílvio Santos também já é demais, ele deve ter planejado tudo, até imagino o marketing:-Compre tele-sena de morte do Sílvio Santos, tenha o santinho do Sílvio Santos e enrique como ele, compre o poster do Sílvio Santos, leia a biografia do Sílvio Santos, a única autorizada em testamento, assista o filme sobre a vida do senhor Abravanel, grátis um documentário e um super making off com super depoimentos da família, amigos e artistas, e todos os programas de homenagem ,o museu e até o leilão das perucas, ah!!! Essa eu tenho que ter uma.Fiquei sabendo que ele vai deixar células e congelar o cérebro(mais ainda), ai meu Deus! Nem quero imaginar, já pensou um monte de clones do cara, se já não bastasse os que já temos por aí(Celso Portinhola, Glu Glu Liberado etc...).mas o senhor do baú é outra história, voltemos ao dia do silêncio. Fofoca, isso não aconteceria se ficássemos mais calados, mas penso eu que seria melhor por vinte e quatro dias. Melhor ainda! Falaremos dia sim dia não, assim evitaremos muitas palavras que saem da boca sem passar pela mente, e criaremos o hábito de filosofar metade da vida, (pobre senhor Abravanel, se todos fizessem isso ele seria marreteiro até hoje). Talvez vinte e quatro horas não resolvesse, o ser humano é muito engenhoso, todos usariam a linguagem de libras e não faria muita diferença, seria melhor instituir o dia do silêncio mesmo, então a industria produziria o Silencitone(com gotas de chocolate ou frutas cristalizadas), e ovo de silêncio(chocolate branco, preto, diet e light), e neste dia tão glorioso para a humanidade daremos feliz dia do silêncio(em L.I.B.R.A.S), com aquela cara de pau de quem falou muita besteira e nem sabe o sentido do que esta comemorando.
quinta-feira, 26 de dezembro de 2024
O.145.O jardim secreto - Um Poeta Vagabundo
No interior do Brasil de terras sem fim existia um vilarejo chamado Águas Calmas, neste pequeno fim de mundo, num casarão estilo colonial de paredes brancas e janelas altas, vidros coloridos, em meio a uma pequena fazenda perto duma chapada, que se estendia dando origem a uma grande serra, vivia uma jovem chamada Esther. A garota saia a caminhar pêlos campos floridos todos os dias depois das aula, andava displicente cheirando o perfume das flores, cortando caminho pelas montanhas até chegar em casa. Numa destas tardes furtivas entrou pôr uma trilha ainda desconhecida, caminhou pôr entre as árvores até chegar a uma clareira, que formava um jardim natural ornado pôr uma cachoeira que descia das pedras da chapada formando um lago de águas mornas e cristalina, protegida pela floresta, nadava nua todas as tardes, somente as orquídeas selvagens e o firmamento a contemplar a beleza ímpar da donzela de corpo esguio e pele tão alva como as nuvens do céu de Águas Calmas na primavera.
Numa destas visitas ao santuário, a menina se distraiu com as belezas e encantos da natureza e não percebeu o tempo passar, para seu azar, o pai chegara mais cedo do trabalho e logo notou a falta da filha, perguntara a tia Conceição sobre o paradeiro da garota, mas esta não sabia, se indignou pela falta da velha, mas logo a perdoou, ela era de sua total confiança, fora tia Conceição que o ajudara a cuidar da filha desde o seu nascimento, pois quando viera ao mundo, sua mãe partira desta. .Entretida na lida diária da casa a tia nunca dera falta de Esther e nem imaginava seus passeios, mas depois deste dia a vigilância foi redobrada e a partir de então as visitas ao jardim secreto se tornara cada vez mais raras e a vida de Esther cada vez mais triste e sem brilho, não conseguia bons desempenhos na escola, seu sorriso tornara-se triste e sem brilho, os olhos que outrora tinham o brilho do véu d’agua da cachoeira agora estava opaco, como uma noite sem luar, parecia-lhe faltar um pedaço, a tia não lhe largava do pé o dia inteiro, caminhava léguas todos os dias para leva-la e busca-la na escola. Esther só tinha liberdade quando a noite caia, e o pai e a tia dormiam exaustos depois do dia cansativo de trabalho.Numa noitequente de verão a garota aproveitou seus poucos momentos de liberdade, abriu as janelas de seu quarto afim de refrescar o ambiente, a luz do luar iluminou todo o recinto, os vidros coloridos das janelas desenharam figuras decorando as paredes com uma belezas de cores sutis, e enquanto as sombras brincavam com as luzes prateadas do luar, a própria Lua chamou Esther para perto da janela, então ela sentou-se no beiral e ficou mirando estrelas, cada um a com um brilho, um mistério diferente,os campos que ladeavam sua casa transformaram-se num manto prateado, no horizonte a floresta escondia seus segredos, e da janela de sua casa podia ouvir o som das águas da cachoeira, num canto mágico, como o canto da sereia que encanta o marinheiro, levando-o aos corais.Seus olhos tomaram novamente o brilho radiante das estrelas, seus cabelos o brilho do luar, uma força estranha dominou seu corpo e quando Esther deu pôr si já estava nua na banheira de águas mornas do jardim secreto, a lua e as estrelas, a chapada e as orquídeas selvagens velando seu banho. Antes dos primeiros raios de sol Esther estava de volta, deitada em sua cama ardendo em febre, sem saber direito se o que havia lhe acontecido era verdade ou pura alucinação. A brisa da manhã esfriou o quarto e Esther levantou-se tropega, para fechar as janelas antes de seu pai acordar.
Depois daquela noite não mais voltara a seu jardim e notara que aquele sangramento estranho que lhe ocorria todos os meses havia parado, ficou contente, assim não precisaria contar nada para seu pai ou para sua tia, só de pensar em tal possibilidade ruborizava, agradecia a Deus pôr estar curada, só não sabia de que, mas até promessa para Santa Luzia fizera, e uma graça havia alcançado.Sentia falta das águas confortantes da lagoa, mas não havia menor possibilidade de ir até lá, seu pai comprara uma casa no vilarejo, para que ficasse mais perto da escola, evitando que sua tia andasse tanto, além disso o pai acreditava que se estivesse em maior contato com as meninas de sua idade, Esther não seria tão calada e tímida, e teria mais tempo para se dedicar aos estudos, sua idéia fora logo frustrada, depois dos sucessivos estranhos acontecimentos:
Primeiro Esther começou a sentir muitos enjôos e tonturas, a tia disse com estranheza:
-Cruiz em credo fia, tá com maleita?- e lhe deu um chá de qualquer coisa para passar o mal, porém o mau não se foi e sua barriga estava um pouco dilatada, então a tia disse:
-É bicha, um óio de rinsino , umas erma de Santa Maria e ôce bota essa bicha pra fora, daí adeus barrigão- e a barriga da moça continuava a crescer gerando chacotas e fofocas no lugarejo. A tia, pobre velhina curandeira acalmava a fúria do pai dizendo:
-Um copo de maztruz com leite toda manhã , que logo logo vai tá curada, porque isso ai é uma ameba,... e das grande!- mas a barriga foi crescendo e os comentários crescendo ainda mais que a barriga. Tia Conceição contava histórias antigas, estranhas e sem sentido, de uma índia que engravidara numa lagoa, Esther não tinha nada a dizer, e só de cogitar o assunto ficava com as bochechas rubras como o entardecer no oriente, não tinha menor idéia do que estavam falando, só sabia que não havia feito nada de errado, era inocente.
-Eu te amaldiçôo- disse o pai revoltado- e amaldiçôo o bastardo que carregas na barriga, também amaldiçôo o pai desta cria, que veio para colocar nossa família em vergonha! -Falando com ódio e amargura em suas palavras, Esther encafifada com aquela gravidez misteriosa, voltou para casa da fazenda acompanhada de sua tia, se escondeu de tudo e de todos, trancou portas, janelas e relações externas, seu único vínculo com o mundo fora através da velha tia, seu pai permaneceu no vilarejo, envergonhado começou a beber compulsivamente e antes do neto nascer, já havia perdido tudo que possuia, só lhe restando a fazenda que deixara de herança, e no dia em que Esther sentira as dores do parto, seu pai falecera após um coma alcoólico, morrera na escadaria da igreja sob o sol do meio dia, o reverendo fora acorda-lo para aplicar mais um sermão quando notara que estava morto, então encomendou-lhe a alma dando a extrema unção, pegou sua bicicleta e fora avisar a família. Chegando lá falou com a velha tia, mas esta preferiu não contar nada a sobrinha, devido a seu estado. O padre achou estranho todas as portas e janelas do casarão estarem fechadas numa tarde quente, mas Esther só permitia abri-las nas noites de lua nova.
A garot de a luz a seu filho enquanto na cidade seu pai estava sendo velado, a velha tia não podia ajuda-la, era tradição de sua tribo parir sozinha, mas a garota não era indígena e não tinha idéia de como fazer, a noite foi passando, a lua atingindo seu ponto mais alto, então finalmente o bebê veio a luz, Esther o abraçou e desmaiou exausta, não conseguindo cortar o cordão umbilical, quando voltou do desmaio, estava muito fraca, havia perdido sangue , pegou uma tesoura de pano mas não consegui fazer o que era preciso, pereceu com a tesoura na mão.
Ninguém no vilarejo ficou sabendo do destino de Esther, nem tampouco de seu rebento, só sabiam da tia velha que era tida como maluca, caduca e afins, pois se isolara de todos, e só abria as janelas nas noites quentes de verão ou primavera, sempre na lua nova. As línguas ferinas da cidadezinha diziam que a menina misteriosa fora mandada pela tia para a cidade grande, onde não faria vergonha a família , também havia a corrente que pensava que a garota havia sido trancada no porão pela velha louca, pois também enlouquecera depois de dar a luz a uma criatura horrenda que assombra as fazendas adjacentes, o assunto se transformou em lenda na região, mas ninguém nunca se atrevera a perguntar a velha depois das missas dominicais, nem tiveram coragem de visita-la em sua casa.O menino Aparecido, ficou aos cuidados da tia que agora estava cegueta, mas sua mãe nunca saira do seu lado, assim ele cresceu, e todas dúvidas que tinha sobre a vida perguntava a sua mãe, e toda que esta sabia, respondia. A tia mal enxergava um palmo a frente do nariz, e além da idade avançada tinha o garoto como meio doido, pôr conversar com a mãe morta, mas ela mesma também o fazia, de uma maneira diferente, confundindo a realidade, só sabia que nos momentos mais difíceis se flagrava tomando conselhos de sua sobrinha, e esta sempre tinha um palavra de alento para a tia.
Logo a energia elétrica chegou na roça, então a tv passou a ser a companheira de Aparecido na maioria de seu tempo, era nela que via tudo que nunca poderia conhecer pessoalmente, pois seu mundo era a casa na roça, o espirito da mãe que o acompanhava, a tia e agora a televisão. Isso o transformou num adolescente introspectivo e solitário.Quando a época chegou, os programas que via na tv lhe trouxeram dúvidas e curiosidade, mas sua mãe em nada pode ajuda-lo, este seria um problema que teria que resolver sozinho, e a medida que Aparecido perdia a inocência, sua mãe entrava num estado de catatonia, o deixando ainda mais solitário.Quando era mais novo sempre teve a companhia e o conselho da mãe, agora estava se sentindo cada vez mais sozinho e necessitando de um amigo, mas quem iria querer a amizade de um rapaz de dezesseis, grudado a mãe catatônica pelo cordão umbilical, afinal ele sabia que era uma aberração da natureza.
Através de um programa vespertino de tv educativa, descobriu uma biblioteca pôr correspondência, e um clube do livro, então abandonou sua tão antiga companheira (tv) e se entregou a nova modalidade de entretenimento, conheceu o serviço de correios, criou um grande círculo de amigos pôr correspondência, e através ds cartas teve amigos de todo o Brasil e alguns estrangeiros. Sempre dizia ser como um personagem de algum livro ou da tv, mas notou que uma amizade verdadeira não poderia ser baseada em mentiras, então resolveu mudar o teor de seu discurso, passando a falar(ou melhor , escrever) sobre as belezas de sua região. Dizia como era belo o nascer do sol, ou o entardecer pôr detrás dos montes, os pássaros cantando nas árvores ao amanhecer, ou a lua, que em cada quarto exibe um brilho diferente, descreveu o jardim secreto que sua mãe lhe contara, e pôr falar destas coisas bonitas, despertou a curiosidade em algumas pessoas, então começou a receber propostas de visitas, ficando assustado com a impossibilidade de viajar ou receber pessoas em sua casa, foi obrigado a inventar uma mudança de estado, fez novos amigos pôr correspondência, mas desta vez adotando uma caixa postal, assim não correria riscos de surpresas desagradáveis, lentamente fora abandonando o hábito de escrever, mas uma garota resistiu a todas as cartas não respondidas e insistiu, insistiu muito, e uma das missivas da moça Aparecido sentiu um toque de sinceridade e isolamento, se identificou com este lado da personalidade da garota e saiu de seu silencio postal.Depois de algumas confissões mútuas, a garota contou ser deficiente visual, e ele entedeu porque as cartas eram escritas a máquina. Agora tinha duas amigas a biblioteca e Luzia, não vivia mais na completa solidão e tinha um motivo para continuar sua caminhada pela vida.Luzia fazia parte de um núcleo de apoio ao deficiente visual, e numa das cartas , citou a possibilidade de uma excursão a Águas Calmas afim de conhece-lo pessoalmente, Aparecido topou sem fazer milongas, e foi logo planejando tudo para a chegada de seus novos amigos.Seu Manoel, o velho da venda era muito bisbilhotero , e estranhou a compra de D. Conceição, comentou com sua esposa:
-Minha véia, agora a muié pirou de vez, pra que que ela que tanta coisa? – sua mulher era uma velha banguela e rabujenta de cabelos longos, grisalhos e engordurados, sempre tinha uma aureola de suor manchando a blusa debaixo dos braços, os seios enormes caiam pôr sobre a enorme barriga e a única coisa que tinha a fazer na vida era cuidar da vida alheia, seu Manoel era calvo e tinha os dedos e os dentes amarelados do cigarro de palha, os dois juntos pareciam personagens de filme de terror b , não demorou muito e todo o vilarejo sabia da compra de dona Conceição, e novamente fora motivo de comentários, que aumentaram ainda mais quando uma van lotada de jovens cegos chegou a cidade, e o motorista pediu informações sobre como chegar a fazenda, mas nada disto importa em nossa história , pois finalmente o dia esperado chegou e Aparecido pode ver como Luzia era linda. Tinha um corpo muito bem torneado, pele morena jambo, cabelos negros como os de sua mãe, traços delicados como a pétala de uma orquídea, e nos olhos negros um mistério, sempre escondido pôr trás dos óculos escuros, detalhe que realçava ainda mais seu charme, sua voz era doce como o mel, e uma forma calma e compassada ao falar, lhe dava o carisma que conquistou o rapaz em suas cartas e ainda mais no instante em que ele a viu pessoalmente , em toda a sua aura não havia um só traço de amargura. Luzia deslizou suas mãos macias pelo rosto do rapaz e disse:
-Voce guarda um segredo maior que meu mistério, mas quando quiseres, podes me contar, eu entenderei. – Aparecido trajava um manto negro e bem longo, para que o motorista da ¨ van ¨ não pudesse ver sua mãe escondida debaixo, e ao ouvir aquelas palavras suar pernas tremeram como vara verde ao vento, então gaguejou alguma pinóia e superou o susto, depois disto cuidou ainda mais de manter distância do motorista..
O evento fora um sucesso, e o melhor dia de sua vida terminou com a promessa que haveriam outros, Luzia fora a última a se despedir, passou as mãos no rosto de Aparecido, carinhosamente beijou-lhe a face e disse:
-Nunca esquecerei seu rosto, você é uma pessoa muito diferente e especial, eu posso ver a luz da sua aura na escuridão e é a primeira vez que isso me acontece. – Aparecido sorriu timidamente dizendo até logo, com um nó na garganta, segurando o choro, não conseguiu dizer mais nada, Luzia entrou e o carro lentamente desapareceu em meio ao pó da estrada de terra.
Depois de tantos anos de solidão, ele tinha um novo grupo de amigos, que nunca descobririam seu segredo, e cada vez mais sentia desejo de viver, só para ver Luzia outra vez, escrevia com frequência para sua musa e para ela dedicava poesias, prosas e versos, não sabia quem lia as cartas, mas isso já não importava, imaginava uma amiga íntima lendo em segredo, imaginava as expressões em sua face, se imaginava falando aos ouvidos, declamando poesias, não conseguia conter a ansiedade de vê-la novamente. Outras visitas se sucederam, e com aquele grupo o jovem teve coragem para conhecer o mundo, com sua musa fora conhecer o mar, e pôr onde passavam descrevia tudo o que via, dizia como é lindo a imensidão azul do alto da serra, definindo como um horizonte sem fim, o sol se pondo a beira mar pintando o azul de alaranjado, enquanto os raios refletem na água, criando uma pintura magistral. Luzia ouviu o barulho das ondas quebrando nas pedras num eterno vai e vem , sentiu a brisa em seu rosto e o sal em seus lábio, chorou, então Aparecido sentindo-se triste pôr vê-la derramando lágrimas perguntou-lhe:
-Porque esta chorando?, É pôr não poder ver as coisas belas que descrevo-lhe?
-Não – disse ela- é pôr poder sentir, pôr poder estar aqui e viver este momento de felicidade diante desta força eterna.- depois desta viagem, Luzia pode passar o fim de semana na fazenda sem o grupo que os acompanha e finalmente ficar a sós com Aparecido.
Tarde da noite, Aparecido contemplava o firmamento da varanda de sua casa, Luzia chegou lentamente, e delicadamente colocou suas mãos sobre os ombros dele e lhe pediu:
-Me descreva o que esta vendo meu amor.- apontando para todas as direções, num movimento circular. Aparecido fechou os olhos e começou a falar:
-Vejo o céu azul escuro cobrindo o mundo todo como um abraço de Deus, as estrelas brilhando no manto azul são como centelhas de amor nos chamando para junto delas, a lua é como se fosse nossa mãe dizendo que ainda não estamos prontos, porque somos muito jovens.Então Luzia pergunta pelo jardim secreto, de que tanto falava nas cartas, o rapaz pega em sua mão e instintivamente segue rumo ao lugar desconhecido até mesmo para ele. A lua iluminando os pastos num manto prateado, Aparecido olhou para sua mãe , que se escondia debaixo do manto negro, ela estranhamente havia deixado seu estado de catatonia e lhe sorriu, aprovando sua atitude com um meneio de cabeça, caminharam rumo a floresta sob a luz do luar, o rapaz sentia um misto de felicidade e ansiedade, quando chegaram a floresta, Aparecido não sabia que direção tomar, então sua mãe o pegou pela mão os guiando até o jardim. Tudo estava como a vinte anos atras, então se sentaram numa pedra a beira da lagoa, Luzia sentiu o cheiro das flores e a brisa da noite dominando seu corpo, se despiu completamente e foi em direção a água, sentindo uma atração incontrolável, Aparecido fez o mesmo, levando sua mãe presa ao cordão umbilical.
-Me diga o que estas vendo Aparecido.
-Estou vendo uma cachoeira de beleza tão misteriosa como a sua, a lua iluminando toda a chapada, enquanto as orquídeas multicores nos vela.
-Me abrace aparecido! Pediu em tom de súplica, então ele a abraçou como se fossem tornar uma só pessoa.
-Para onde foi seu segredo?- perguntou surpresa, pois a sensação de nunca estarem a sós desapareceu.
-Meu segredo reencontrou seu lugar aqui no jardim secreto- ficaram em silêncio pôr alguns instantes.
-Pai , eu a trouxe de volta. – falou Aparecido, a moça correu os olhos pôr todos os lados e perguntou:
-Com quem falas, só vejo a lua, as estrelas , a cachoeira e o lago, a floresta e as orquídeas a nos velar?
O.144.O sábio não chinês - Eliane F.C.Lima
Ficou admirando a estatueta “no seu momento”, como chamava algumas horas da manhã que dedicava à leitura, sentado na biblioteca, diante de uma estante cheia de livros. Era muito bonita mesmo, de porcelana fina. Fina e cara. Era um sábio chinês antigo, de uma daquelas dinastias, como havia lhe avisado o dono do antiquário. Intelectual, a comprara por amar os livros e as obras de arte. E, quando em um daqueles momentos tinha levantado a cabeça para refletir sobre o que estava lendo, batera com os olhos nela. Mas o que seria um sábio, chinês ou não? Ele responderia às questões da vida? Daria conselhos às pessoas? Saberia, por fim resolver, com facilidade, as questões da própria vida? Um sábio seria mais feliz que as outras pessoas? Nesse caminhar, lembrou-se de um velho, meio desdentado, que vivia numa cidadezinha do interior, onde tivera um sítio há muitos anos. O velho não tinha profissão. Aliás, o velho não tinha nada, uma casinha de um cômodo, caindo aos pedaços, se é que aquilo podia ser chamado de casa. Vivia de expediente, como o povo diz, capina aqui, retira entulho lá. Ganhava só para comer... e mal. Fora a caridade do povo do lugar, um pouco menos pobre, que gostava muito dele. Não sabia ler e não tinha ideia de absolutamente nada mais que não as cercanias em volta. Ia muito raramente até o centro de comércio, com muito susto. Não sabia que havia um mundo enorme em volta dele. Um dia lhe perguntaram se ele havia votado para presidente. Ele perguntou se presidente era o mesmo que “perfeito”, que ele pronunciava com um “r” muito palatal. Então perguntaram, de novo, se ele sabia o que era um prefeito. “É o dono de tudo em volta, até da cidade”, disse rindo muito, todo contente da explicação. - Até de você? - Inté! – e riu mais ainda, talvez por se sentir, assim, protegido. Contava que dormia muito bem. Que era isso que um homem feliz devia fazer. Não sem antes agradecer pelas coisas boas que tinha.
Fonte: http://conto-gotas.blogspot.com
O.143.O espírito do parque - Eliane F.C.Lima
Ela vem não sei de onde. De repente, ela está lá, fazendo caminhada no Aterro do Flamengo. Será?
Mas não caminha, dança uma melodia que só ela escuta, sem fiozinho de aparelho de som no ouvido.
E é uma dança sem ritmo, meio dança meio andar. O corpo faz um requebrado meio torto, saindo um pouco da direção reta.
E traz, enrolado debaixo do braço, um saco verde de plástico, grande. O mesmo, sempre.
Para que será? Onde ficará guardado, quando não está ali? Será que dança também em outros lugares?
Não olha para ninguém. Vai indo, naquele passo incerto.
De repente, do mesmo modo que veio some. Não se sabe o quanto caminha, não se vê a sua volta, como fazem todos os que ali estão.
No entanto, é aquele caminhar rápido das outras pessoas, se ultrapassando, como quem vai para algum lugar, caras sérias, volta feita,
sem a finalização de um objetivo, sem a realização de um projeto que parecia indicar a pressa e a concentração, que lembra loucos de hospício,
sua desorientação.
Olhados de longe são incompreensíveis.
A mulher estranha, não. Parece não querer chegar a lugar nenhum, mas caminhar por puro prazer no meio da natureza, uma festa lúdica, uma comemoração.
Falta-nos, a nós, um bom saco verde a que nos agarremos.
Fonte: http://conto-gotas.blogspot.com
O.142.O Poder das palavras - Eliane F.C.Lima
Quando olhava para a janela da cozinha do apartamento ao lado via o papagaio pendurado no poleiro, perna acorrentada. A moça olhava e dizia: - Como vai? Ele nunca respondia. Aliás, só ouvia uns grasnados sem sentido. Para ela, pelo menos. Imaginava que devia ser revolta, pedido de socorro, condenado sem advogado. Era piada, mas não conseguia achar graça. Sempre combinava que ia consultar o Ibama sobre aquilo. Os dias iam, corridos, as horas mal davam para tudo. Sábado e domingo, ninguém ia atender em repartição pública. Um dia, cabeça em sua janela, ouviu do outro lado: - Como vai? Arrepiou-se toda, como a própria ave fazia. Não acreditou. Parece que para confirmar a dúvida, a repetição: - Como vai? Agora em outro tom, mais alto e aflito. Exigência de resposta. - Eu vou bem. E você, como vai? - Como vai? – repetiu a ave, feliz do contato. Ficaram nesse diálogo monótono algum tempo, cada um querendo saber como o outro ia, sem resposta, mas muito alegres de se falarem. Até que a hora reclamou a saída. Todos os dias, agora, ela ia para a janela, saudar o novo amigo. Alguns dias depois, entrou com ela no elevador um homem comentando com a mulher: - Papagaio imprestável. É mudo. Não adianta ensinar. Viu que era o vizinho dono da ave. “Papagaio imprestável”? Afinal, um papagaio só presta para si, aquela era boa. Além de tirar da mata, de acorrentar sua patinha, ainda insultava o bichinho. Teve vontade de dizer quem é que não prestava, contar a verdade, que o papagaio falava, sim, era inteligente. Mas não ia trair o amigo. Ao contrário. Deixaria de almoçar, mas, naquele dia, ligava para o Ibama. Quando desligou o telefone, pensou, vitoriosa, que o papagaio não era mudo, é que ele só queria falar na hora certa.
Fonte: http://conto-gotas.blogspot.com
O.141.O Inusitado - Eliane F.C.Lima
Sentou-se no bar, meio escurinho, aconchegante. Pediu um drinque, uma coisinha para comer. Tudo leve. Na verdade, estava ali porque não aguentava mais a solidão. Queria conhecer alguém. Há algum tempo não namorava. E seus últimos relacionamentos tinham sido todos frustrantes. Só achava uns homens meio bobos, desinteressantes, que não queriam se entregar. Não era compromisso propriamente o que ela queria. Não no sentido literal. Ver-se sempre, ir aos mesmos lugares, andar pra lá e pra cá juntos? Não. Mas queria poder contar um momento difícil, ter o outro interessado realmente, ouvir uma opinião. Escutar coisas engraçadas, ditas com sensualidade, mas, principalmente, com muito estilo, ao ouvido. E ter um chamego gostoso, beijos de carinho, um homem que entrega a vida toda naquele momento apenas. Para enfrentar a semana de trabalho e estudo que viria, com a bateria amorosa recarregada. Depois que o garçom se afastou, bebeu um gole e relanceou os olhos em volta. Foi de mesa em mesa. Até que foi atraída para uma, ao canto, onde encontrou uns olhos, que a olhavam. Mas não diretamente. E, lá da adolescência, veio a expressão poética machadiana: os olhos de ressaca, que vão puxando para dentro, como o mar revolto. Uns olhos... de mulher! Sorriu por dentro. De mulher?! Mesmo surpresa percebeu que estava gostando muito, muitíssimo daquilo. Tornou a sorrir, agora para fora.
Fonte: http://conto-gotas.blogspot.com
quarta-feira, 25 de dezembro de 2024
O.140.O descobridor - Eliane F.C.Lima
Sentou-se no banco vazio do ônibus e viu o pacote embrulhado e amarrado. Olhou em volta e não viu o dono. Ficou na dúvida, ao saltar, perigos rondando nesse mundo moderno. Mas levou o pacote para o escritório. Cheio de medo, respirou fundo e abriu: dentro, um caderno de capa dura, verde, devia ser caro. E todo em branco. Aquela era uma grande novidade em seu dia de náufrago da vida. Acordava pela manhã e lamentava ter acordado, lamento mesmo de estar vivo. Dormir era o único lenitivo daquele vazio em que se debatia agora. Comer, andar, trabalhar, decidir-se a prosseguir, enfim, era como um esforço digno de Ulisses. Mas fez o que era obrigado a fazer o resto do dia. Porém separou alguns momentos do final para sentar-se, colocar a data do dia e tomar nota de seu achado, meio um aventureiro que lança a bandeira de seu país em terra nova. Mas, quando percebeu, tinha escrito mais, tinha narrado todo o dia, tinha falado de si, de sua angústia, de seu nada. E, passada a hora de sair, trancou a porta apressado, como alguém que comete um pequeno deslize, quase um pecado. Mas com uma sensação de não sei quê, talvez alívio? No dia seguinte, ao acordar, lembrou da aventura anterior. Olhando no espelho do banheiro, escova e pasta, ousou sorrir? E foi ao encontro de suas difíceis tarefas... e de seu caderno. Abriu o armário e olhou para ele com um pré-entusiasmo. Fez tudo que devia, mas, vez ou outra, lançava um olhar de namorado para a porta da estante. E contou no relógio os minutos que faltavam para o encontro. Afinal, abriu-o, acariciou a página em branco, lançou a data e escreveu. E não narrava mais sobre si, havia seres que nunca tinha conhecido, histórias que nunca tinha vivido. E foram páginas e páginas devoradas, numa fome de louco. E foi embora numa viagem mística, numa viagem mágica, numa viagem magnética. Saiu tarde do trabalho, caminhando com as mãos nos bolsos, assobiando uma canção inventada.
Fonte: http://conto-gotas.blogspot.com
O.139.O Filho do Lubisomen - Eliane F.C.Lima
Havia um grande boato sobre um lobisomem, rondando, à noite. Um disse me disse, um viu aqui, o outro, acolá, ferrolhos na porta, mal escurecia, mesas ajudando a trancar. Uma noite, um deu um tiro no breu, duas botucas vermelhas, olhando, dizia. O bicho sumiu para sempre. Nessa mesma noite, sem mais nem menos, o pai de Honório, depois que todos dormiram, pegou suas roupas e se foi, sem acordar a mulher. Já andava falando em cidade grande há algum tempo. O povo juntou tudo e garantiu que ele era o lobisomem morto, por mais que a mulher mostrasse as roupas sumidas. Honório herdou o destino. Meio sorumbático desde menino pela saudade do pai, as pessoas fugiam dele. “Andar de noite, nem pensar”, implorava a mãe. Um vivente corre menos perigo em uma megalópole do que em estúpido lugarejo do interior. Não namorava, não dançava em festas. Se chegasse à quermesse da igreja com a mãe, o pessoal ia arredando, mudando de barraca. O pobre, sem jeito, desistia e ia embora. Até que chegou ao local uma mulher, cabelos até os ombros, alguns fios brancos. Pensãozinha no banco, muito sisuda e viúva, também do interior, não dava trela a vizinho, ciosa de sua reputação e da língua alheia. Vivia trancada em casa. Mas falaram... e não foi de sua honradez. As conversas eram agora sobre uma bruxa que havia na cidade: ela. O destino, porém, que não quer saber de mitos folclóricos, levou Honório para capinar o terreno de Alzira – a feiticeira –, sem emprego fixo, o coitado, por pura rejeição de todos. E trocou telhas e pintou a casa e acabaram se amando. No casamento, a mãe dele, madrinha, uns poucos primos e primas de outra cidade. E o padre, muito aliviado e abençoando o casal. A cidade, contudo, ainda tinha munição: o assunto então era a dúvida sobre que tipo de tinhoso iria nascer dos dois.
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terça-feira, 24 de dezembro de 2024
O.138.O porta-retratos sobre o piano - Eliane F.C.Lima
Toninho era diferente de seus irmãos.
Todos eram branquinhos, ele, moreninho.
Todos eram robustos, ele, um graveto.
Todos paradões. Toninho, a vida era pouca para ele.
Puxou ao bisavô paterno. Diziam.
Quebrou a perna, um dedo da mão, costurou várias vezes a cabeça, teve dor de barriga feia: comeu fruta desconhecida.
No quintal, conhecia todos os buracos de formiga.
Achava a minhoca mais escondida. Os cachorros andavam atrás feito sombras.
Mal aparecia, rabinhos balançando, verdadeira adoração. Pois se o garoto era pura ternura!
É claro, Toninho morreu menino. Viveu mais do que qualquer um em menos tempo.
E precisava ver, com urgência, o que havia no outro mundo.
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O.137.O melhor do mundo - Eliane F.C.Lima
Fica horas em frente à televisão da loja. Chega mansinho, disfarçando, encosta na parede.
No fim, perde o controle: senta no chão. Até que os vendedores enxotam da passagem.
Então, acorda. Deixa o gramado, Ronaldinho expulso do jogo. Sabe tudo do ídolo.
Só assim. Entreolhando, espiadinha aqui, outra ali: sai de si. Não mora mais na rua.
Não está mais sujo nas mãos, nos pés, nas orelhas. Não tem mais fome, nem falta de carinho.
Não fugiu das surras do pai bêbedo, agora preso; da mãe, recebendo homens em casa, filhos postos para fora no meio da noite.
Ele é amado, aplaudido, mora no estrangeiro. Aparece no comercial, sorrindo, faz maravilhas com a bola.
Os pedestres param na calçada. Alguns riem: ele gesticula, mexe pés e mãos, mímica inconsciente, dublê do outro.
Não vê ninguém, nem a si mesmo, sombra de craque; não escuta nada, nem o ronco da barriga.
Dorme no Largo da Carioca, mas roda por Uruguaiana, Sete de Setembro, Avenida Rio Branco, atrás de televisão ligada.
Pode ir até o Catete, chegar à Glória ou dar uma esticadinha até o fim do mundo. Apelido: Doidinho, posto pelos companheiros de rua.
Quase não fala. Só sussurra, age, pensa como o outro. É o outro. Acreditar na realidade é matar Ronaldinho, puro suicídio.
Troca tudo pelo aparelho mágico, mesmo a disputa pela comida. Recebe só a sobra dos amigos, de pena.
Não rouba, honestidade involuntária: não enxerga passantes, nem bolsas, nem celulares. Só grama, e bola e pernas e gol e grito e comemoração.
Nem cheira cola, sua droga é mais forte.
Menino ainda, é muito magro,só olhos enormes,orelhas enormes,pés enormes:para ver o rosto moreno,para ouvir o sotaque amado,para andar em sua busca maluca.
Por dentro: no peito, coração apaixonado; na cabeça, pura imaginação.
De manhã, olha os jornais. Procura ansiosa por retratos do jogador. E sorri, extasiado.
Sem coragem para perguntar o que está escrito. Se vê a cara de outro que também olha a foto, confere a aceitação, a admiração.
Se ouve elogio, derrete-se todo: elogiam Doidinho, admiram Doidinho, aceitam Doidinho. À noite, outra tela.
No sonho, Doidinho faz propaganda, dá entrevista, joga de novo com o corpo famoso. Acordando, é uma surpresa: só ele, Doidinho.
Hoje a polícia vem correndo atrás de camelô. Pedra para todo lado. Ronaldinho pula da televisão, corre, sonâmbulo, pela calçada.
Um baque no peito. Matou a bola? Escorre suor ou sangue?
Vertigem forte, somem as pessoas: nas nuvens, de avião voando para a África do Sul. Vai ganhar a Copa.
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O.136.Ovelha Negra - Eliana F.C.Lima
Ovelha Negra
Eliane F.C.Lima
De um dia para o outro, a casinha abandonada se viu habitada de novo para espanto da cidade, que, há muito, não tinha um bom motivo para se espantar.
Senhor passado dos sessenta anos – ninguém pôde fixar esse ponto –, ele mesmo pintou a casa, por dentro e por fora.
Sempre de costas.Ninguém conseguiu dar um bom-dia ou boa-tarde. Não atendeu nem às palmas insistentes do verdureiro, convocado para assuntar.
Não comprou o leite tiradinho na hora, de Mané de Elvira, porque não mostrou a cara para aquele “Ô de casa”.
Na tendinha da esquina, nem um ovo comprado, o que um vivente sempre acontece de precisar, ou em dia de temporal, uma vela para acender.
Nada. Saía com um jipezinho meio velho. Fechava o portão, cara virada para dentro.
Na certa comprava tudo fora e as miudezas de esquecimento: algodão, vela, palito, agulha e linha, lâmpadas várias.
A curiosidade não aguentou mais. O que um não sabe, esse um inventa: “Médico, tinha deixado um paciente morrer e foi para ali, curtir a culpa.
Não queria ser reconhecido.” O contador e os ouvintes, aumentado o caso, cada um dando um palpite, iam para casa de alma lavada.
Novidade esfriada, não satisfazia mais. “Era um ex-presidiário.
Pena cumprida, tinha voltado para casa e encontrado a mulher com outro.”
Primeira versão: envergonhado e desiludido de tudo, sumira de casa.
A outra: ele matara os dois e caíra no mundo. Durante um tempo, vigiado a distância, o medo maior que a bisbilhotice. -
É um padre – o pedreiro-benzedor-eletricista na porta da padaria, enchendo os copos de cerveja dos amigos –
Fez mal a uma mocinha lá na paróquia dele e teve que fugir.
Logo umas vinte pessoas batiam na porta do padre local, casa avarandadinha atrás da pequena igreja, meio ressabiadas.
O santo homem, embora conselheiro de todas as horas, não dava asas à parolagem maldosa de suas ovelhas. -
Mas que história é essa?! – cortou aquele assim que ouviu a patacoada –
É isso que vocês andam inventando também às minhas costas? – vinte cabeças sacudiram para um lado e para o outro, todas envergonhadas –
E a Santa Igreja é para estar assim mal falada na boca do povo?! Se escrevo ao Papa, ele vem aqui em pessoa excomungar a cidade inteira.
Voltados para casa, ficaram lá trancados até o dia seguinte. Não viram o fusquinha do padre sair rumo à matriz da cidade vizinha.
Lá pediu ao pároco para tomar informações seguras sobre o homem.
Nenhuma evidência apurada ou notícia de algum caso daqueles, o próprio padre resolveu procurar o novo morador para acalmar as línguas do rebanho tão bem conhecido, integrando o homem à comunidade.
Vendo que o jipe do homem lá estava, bateu palmas na frente da casa: em vão.
Depois chamou mais alto e forte. Deu a volta e gritou por trás, lá para os fundos da cozinha. Ninguém respondeu.
Ao desistir, muitas cabeças se esconderam rapidamente para não serem escovadas ali mesmo, o padre com cara de fulo de raiva.
O fusquinha, na toda, saiu levantando uma poeira tão densa quanto a ira do religioso.
No domingo, a cidade em peso foi à missa e quem se demorou não achou lugar para sentar.
O carrancudo dono da farmácia, que tinha birra com a igreja, foi ali só para gozar a cara do representante de Roma.
Ritual começado, silêncio absoluto, a igreja toda só olhos e ouvidos para o padre. Ele oficiou a missa, sempre sério até a hora do sermão: -
Meus amigos, pela pureza e salvação das almas dessa comunidade, sou obrigado a revelar a vocês onde se esconde o demônio.
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O.135.O tempo - Eliane F.C.Lima
Colecionava páginas de calendário.
Ia enfiando na gaveta para guardar os acontecimentos.
Um dia, sem mais nem menos, colocou-as lado a lado sobre a mesa.
Olhava para elas. Estava ali o passado. Ano a ano.
Reconhecia algumas datas. O aniversário, a morte da tia.
Porém, por mais que olhasse, não ouvia suas vozes.
Eram páginas mudas. Mortas.
Era como se o tempo que escorreu estivesse trancado em um cofre.
Inacessível.
Então fechou os olhos e lembrou o dia da morte da tia: o telefonema, o táxi, as pessoas, a tarde toda, o enterro.
Agora o passado falava, tinha som, tinha cor, movimento.
O passado revivia no presente.
Viu que apenas o presente existia.
De olhos fechados, ainda, pensou no futuro.
Era mais difícil ainda, nenhuma imagem para ajudar.
Grande esforço de concentração encenar o futuro.
Que era isso: acontecia como representação de teatro, pura ficção.
Enorme criatividade, sua mente era um talentoso dramaturgo.
Mas nenhuma certeza.
Abriu os olhos, o presente era momentâneo e certo: sobre a mesa muitas páginas de calendário.
Todas mudas.
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O.134.O Gondoleiro do Amor - Castro Alves
Teus olhos são negros, negros, Como as noites sem luar... São ardentes, são profundos, Como o negrume do mar; Sobre o barco dos amores, Da vida boiando à flor, Douram teus olhos a fronte Do Gondoleiro do amor. Tua voz é cavatina Dos palácios de Sorrento, Quando a praia beija a vaga, Quando a vaga beija o vento. E como em noites de Itália Ama um canto o pescador, Bebe a harmonia em teus cantos O Gondoleiro do amor. Teu sorriso é uma aurora Que o horizonte enrubesceu, — Rosa aberta com o biquinho Das aves rubras do céu; Nas tempestades da vida Das rajadas no furor, Foi-se a noite, tem auroras O Gondoleiro do amor. Teu seio é vaga dourada Ao tíbio clarão da lua, Que, ao murmúrio das volúpias, Arqueja, palpita nua; Como é doce, em pensamento, Do teu colo no languor Vogar, naufragar, perder-se O Gondoleiro do amor!? Teu amor na treva é — um astro, No silêncio uma canção, É brisa — nas calmarias, É abrigo — no tufão; Por isso eu te amo, querida Quer no prazer, quer na dor... Rosa! Canto! Sombra! Estrela! Do Gondoleiro do amor.
segunda-feira, 23 de dezembro de 2024
O.133.O Teu Riso - Pablo Neruda
Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas não
me tires o teu riso.
Não me tires a rosa,
a lança que desfolhas,
a água que de súbito
brota da tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.
A minha luta é dura e regresso
com os olhos cansados
às vezes por ver
que a terra não muda,
mas ao entrar teu riso
sobe ao céu a procurar-me
e abre-me todas
as portas da vida.
Meu amor, nos momentos
mais escuros solta
o teu riso e se de súbito
vires que o meu sangue mancha
as pedras da rua,
ri, porque o teu riso
será para as minhas mãos
como uma espada fresca.
À beira do mar, no outono,
teu riso deve erguer
sua cascata de espuma,
e na primavera, amor,
quero teu riso como
a flor que esperava,
a flor azul, a rosa
da minha pátria sonora.
Ri-te da noite,
do dia, da lua,
ri-te das ruas
tortas da ilha,
ri-te deste grosseiro
rapaz que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando meus passos vão,
quando voltam meus passos,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
porque então morreria.
O.132.O Homem e a Mulher - Vitor Hugo
"O homem é a mais elevada das criaturas.
A mulher é o mais sublime dos ideais.
Deus fez para o homem um trono;
Para a mulher um altar.
O trono exalta; o altar santifica.
O homem é o cérebro; a mulher o coração, o amor.
A luz fecunda; o amor ressuscita.
O homem é o gênio; a mulher o anjo.
O gênio é imensurável; o anjo indefinível.
A aspiração do homem é a suprema glória;
A aspiração da mulher, a virtude extrema.
A glória traduz grandeza; a virtude traduz divindade.
O homem tem a supremacia; a mulher a preferência.
A supremacia representa força.
A preferência representa o direito.
O homem é forte pela razão; a mulher invencível pelas lágrimas.
A razão convence; a lágrima comove.
O homem é capaz de todos os heroísmos;
A mulher de todos os martírios.
O heroísmo enobrece; os martírios sublima.
O homem é o código; a mulher o evangelho.
O código corrige; o evangelho aperfeiçoa.
O homem é o templo; a mulher, um sacrário.
Ante o templo, nos descobrimos;
Ante o sacrário ajoelhamo-nos.
O homem pensa; a mulher sonha.
Pensar é ter cérebro;
Sonhar é ter na fronte uma auréola.
O homem é um oceano; a mulher um lago.
O oceano tem a pérola que embeleza;
O lago tem a poesia que deslumbra.
O homem é a águia que voa; a mulher o rouxinol que canta.
Voar é dominar o espaço; cantar é conquistar a alma.
O homem tem um fanal; a consciência;
A mulher tem uma estrela: a esperança.
O fanal guia, a esperança salva.
Enfim...
O homem está colocado onde termina a terra;
A mulher onde começa o céu...
O.131.Os versos que te fiz - Florbela Espanca
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer!
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer.
Têm dolência de veludos caros,
São como sedas pálidas a arder...
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer!
Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda...
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz!
Amo-te tanto! E nunca te beijei...
E nesse beijo, Amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!
O.130.Os Meus Versos - Florbela Espanca
Deita-os ao nada, ao pó, ao esquecimento,
Que a cinza os cubra, que os arraste o vento,
Que a tempestade os leve aonde for!
Rasga-os na mente, se os souberes de cor,
Que volte ao nada o nada de um momento!
Julguei-me grande pelo sentimento,
E pelo orgulho ainda sou maior!...
Tanto verso já disse o que eu sonhei!
Tantos penaram já o que eu penei!
Asas que passam, todo o mundo as sente...
Rasgas os meus versos... Pobre endoidecida!
Como se um grande amor cá nesta vida
Não fosse o mesmo amor de toda a gente!...
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