sábado, 28 de dezembro de 2024
O.149.O estado apaixonado - Lisiewska e Steen
Mal sabes quanto me alegro
Quando te vejo defronte:
É como quem morre à sede
E põe a boca na fonte!
O meu coração do teu
É bem ruim de apartar:
É como a alma do corpo
Quando Deus a vem buscar.
Ai, muito custa uma ausência
A quem na sabe sentir!
Mas mais custa uma presença
De ver e não possuir!
Dormindo sonho contigo,
De dia contigo estou;
Tua imagem vem comigo
P’ra todo o lado onde vou.
Esta noite sonhei eu
Cuidando que era já tua;
Tive tantas alegrias
Como pedras há na rua!
sexta-feira, 27 de dezembro de 2024
O.148.O rei Mago da Floresta - Um Poeta Vagabundo
O rei Mago da Floresta
vem trazendo as medicina
ó rei Mago da Floresta
vem em visita a aldeia
Divino é o nosso mestre
uma centelha de luz
traz luz, paz e amor
e a união que nos conduz
Ó meu Deus quanta beleza
Oculta na natureza
Alteza celestial
nos trás o bem e afasta o mal
Sua luz de claridade
nos mostra a realidade
é de Deus seu mensageiro
Rei Caiano no mundo inteiro
Rei...rei...rei...ei...ei...ei..
O.147.O Segredo do Portal - Um Poeta Vagabundo
Dia a dia o que conspira?
O Sol nasce pro poente
Cada manhã, uma nova chance
Antes do fim...até o fim
Corpo, o lastro da mente
O Destino, o que pretende?
O Que vem do Nada,
Nada é antes do fim recomeçar?
Paz, vida ensina
O que é viver
O menos é mais
Só a vida faz
Aprender viver e morrer em Paz
Agora faço tijolos
O homem veio do barro
Ou da poeira das estrelas?
Um zunido infinito
No silêncio absoluto
Onde não há tempo perdido
O infinito terá um fim?
O.146.O dia do silêncio - Um Poeta Vagabundo
Se de repente as pessoas não falassem por vinte e quatro horas, o mundo teria um milionésima fração de segundo de sanidade, mas uma sanidade contida pelo silêncio, porque mesmo sem falar , se pensa e age.Mas oque é uma ínfima fração de silêncio na história falada? De que isso seria útil? será que falarão o dobro no dia seguinte? Com certeza, e digo mais, será o acontecimento mais comentado pela imprensa, imagine que prato cheio pros vendedores de jornais e revistas sem conteúdo, terão assunto para capa por semanas, e relatos desnecessários por meses. Nos programas dominicais de tv só se falará nisso, e farão especiais do tipo 'oque as celebridades fizeram no dia do silêncio' ou 'nossos repórteres acompanharam oque fulano fez no dia do silêncio' e mais 'depoimentos da ciclana sobre como foi o seu dia do silêncio'.Nem copa do mundo, nem outro escândalo de corrupção no congresso, nem a morte do Sílvio Santos irá mudar de assunto...ops... a morte Sílvio Santos também já é demais, ele deve ter planejado tudo, até imagino o marketing:-Compre tele-sena de morte do Sílvio Santos, tenha o santinho do Sílvio Santos e enrique como ele, compre o poster do Sílvio Santos, leia a biografia do Sílvio Santos, a única autorizada em testamento, assista o filme sobre a vida do senhor Abravanel, grátis um documentário e um super making off com super depoimentos da família, amigos e artistas, e todos os programas de homenagem ,o museu e até o leilão das perucas, ah!!! Essa eu tenho que ter uma.Fiquei sabendo que ele vai deixar células e congelar o cérebro(mais ainda), ai meu Deus! Nem quero imaginar, já pensou um monte de clones do cara, se já não bastasse os que já temos por aí(Celso Portinhola, Glu Glu Liberado etc...).mas o senhor do baú é outra história, voltemos ao dia do silêncio. Fofoca, isso não aconteceria se ficássemos mais calados, mas penso eu que seria melhor por vinte e quatro dias. Melhor ainda! Falaremos dia sim dia não, assim evitaremos muitas palavras que saem da boca sem passar pela mente, e criaremos o hábito de filosofar metade da vida, (pobre senhor Abravanel, se todos fizessem isso ele seria marreteiro até hoje). Talvez vinte e quatro horas não resolvesse, o ser humano é muito engenhoso, todos usariam a linguagem de libras e não faria muita diferença, seria melhor instituir o dia do silêncio mesmo, então a industria produziria o Silencitone(com gotas de chocolate ou frutas cristalizadas), e ovo de silêncio(chocolate branco, preto, diet e light), e neste dia tão glorioso para a humanidade daremos feliz dia do silêncio(em L.I.B.R.A.S), com aquela cara de pau de quem falou muita besteira e nem sabe o sentido do que esta comemorando.
quinta-feira, 26 de dezembro de 2024
O.145.O jardim secreto - Um Poeta Vagabundo
No interior do Brasil de terras sem fim existia um vilarejo chamado Águas Calmas, neste pequeno fim de mundo, num casarão estilo colonial de paredes brancas e janelas altas, vidros coloridos, em meio a uma pequena fazenda perto duma chapada, que se estendia dando origem a uma grande serra, vivia uma jovem chamada Esther. A garota saia a caminhar pêlos campos floridos todos os dias depois das aula, andava displicente cheirando o perfume das flores, cortando caminho pelas montanhas até chegar em casa. Numa destas tardes furtivas entrou pôr uma trilha ainda desconhecida, caminhou pôr entre as árvores até chegar a uma clareira, que formava um jardim natural ornado pôr uma cachoeira que descia das pedras da chapada formando um lago de águas mornas e cristalina, protegida pela floresta, nadava nua todas as tardes, somente as orquídeas selvagens e o firmamento a contemplar a beleza ímpar da donzela de corpo esguio e pele tão alva como as nuvens do céu de Águas Calmas na primavera.
Numa destas visitas ao santuário, a menina se distraiu com as belezas e encantos da natureza e não percebeu o tempo passar, para seu azar, o pai chegara mais cedo do trabalho e logo notou a falta da filha, perguntara a tia Conceição sobre o paradeiro da garota, mas esta não sabia, se indignou pela falta da velha, mas logo a perdoou, ela era de sua total confiança, fora tia Conceição que o ajudara a cuidar da filha desde o seu nascimento, pois quando viera ao mundo, sua mãe partira desta. .Entretida na lida diária da casa a tia nunca dera falta de Esther e nem imaginava seus passeios, mas depois deste dia a vigilância foi redobrada e a partir de então as visitas ao jardim secreto se tornara cada vez mais raras e a vida de Esther cada vez mais triste e sem brilho, não conseguia bons desempenhos na escola, seu sorriso tornara-se triste e sem brilho, os olhos que outrora tinham o brilho do véu d’agua da cachoeira agora estava opaco, como uma noite sem luar, parecia-lhe faltar um pedaço, a tia não lhe largava do pé o dia inteiro, caminhava léguas todos os dias para leva-la e busca-la na escola. Esther só tinha liberdade quando a noite caia, e o pai e a tia dormiam exaustos depois do dia cansativo de trabalho.Numa noitequente de verão a garota aproveitou seus poucos momentos de liberdade, abriu as janelas de seu quarto afim de refrescar o ambiente, a luz do luar iluminou todo o recinto, os vidros coloridos das janelas desenharam figuras decorando as paredes com uma belezas de cores sutis, e enquanto as sombras brincavam com as luzes prateadas do luar, a própria Lua chamou Esther para perto da janela, então ela sentou-se no beiral e ficou mirando estrelas, cada um a com um brilho, um mistério diferente,os campos que ladeavam sua casa transformaram-se num manto prateado, no horizonte a floresta escondia seus segredos, e da janela de sua casa podia ouvir o som das águas da cachoeira, num canto mágico, como o canto da sereia que encanta o marinheiro, levando-o aos corais.Seus olhos tomaram novamente o brilho radiante das estrelas, seus cabelos o brilho do luar, uma força estranha dominou seu corpo e quando Esther deu pôr si já estava nua na banheira de águas mornas do jardim secreto, a lua e as estrelas, a chapada e as orquídeas selvagens velando seu banho. Antes dos primeiros raios de sol Esther estava de volta, deitada em sua cama ardendo em febre, sem saber direito se o que havia lhe acontecido era verdade ou pura alucinação. A brisa da manhã esfriou o quarto e Esther levantou-se tropega, para fechar as janelas antes de seu pai acordar.
Depois daquela noite não mais voltara a seu jardim e notara que aquele sangramento estranho que lhe ocorria todos os meses havia parado, ficou contente, assim não precisaria contar nada para seu pai ou para sua tia, só de pensar em tal possibilidade ruborizava, agradecia a Deus pôr estar curada, só não sabia de que, mas até promessa para Santa Luzia fizera, e uma graça havia alcançado.Sentia falta das águas confortantes da lagoa, mas não havia menor possibilidade de ir até lá, seu pai comprara uma casa no vilarejo, para que ficasse mais perto da escola, evitando que sua tia andasse tanto, além disso o pai acreditava que se estivesse em maior contato com as meninas de sua idade, Esther não seria tão calada e tímida, e teria mais tempo para se dedicar aos estudos, sua idéia fora logo frustrada, depois dos sucessivos estranhos acontecimentos:
Primeiro Esther começou a sentir muitos enjôos e tonturas, a tia disse com estranheza:
-Cruiz em credo fia, tá com maleita?- e lhe deu um chá de qualquer coisa para passar o mal, porém o mau não se foi e sua barriga estava um pouco dilatada, então a tia disse:
-É bicha, um óio de rinsino , umas erma de Santa Maria e ôce bota essa bicha pra fora, daí adeus barrigão- e a barriga da moça continuava a crescer gerando chacotas e fofocas no lugarejo. A tia, pobre velhina curandeira acalmava a fúria do pai dizendo:
-Um copo de maztruz com leite toda manhã , que logo logo vai tá curada, porque isso ai é uma ameba,... e das grande!- mas a barriga foi crescendo e os comentários crescendo ainda mais que a barriga. Tia Conceição contava histórias antigas, estranhas e sem sentido, de uma índia que engravidara numa lagoa, Esther não tinha nada a dizer, e só de cogitar o assunto ficava com as bochechas rubras como o entardecer no oriente, não tinha menor idéia do que estavam falando, só sabia que não havia feito nada de errado, era inocente.
-Eu te amaldiçôo- disse o pai revoltado- e amaldiçôo o bastardo que carregas na barriga, também amaldiçôo o pai desta cria, que veio para colocar nossa família em vergonha! -Falando com ódio e amargura em suas palavras, Esther encafifada com aquela gravidez misteriosa, voltou para casa da fazenda acompanhada de sua tia, se escondeu de tudo e de todos, trancou portas, janelas e relações externas, seu único vínculo com o mundo fora através da velha tia, seu pai permaneceu no vilarejo, envergonhado começou a beber compulsivamente e antes do neto nascer, já havia perdido tudo que possuia, só lhe restando a fazenda que deixara de herança, e no dia em que Esther sentira as dores do parto, seu pai falecera após um coma alcoólico, morrera na escadaria da igreja sob o sol do meio dia, o reverendo fora acorda-lo para aplicar mais um sermão quando notara que estava morto, então encomendou-lhe a alma dando a extrema unção, pegou sua bicicleta e fora avisar a família. Chegando lá falou com a velha tia, mas esta preferiu não contar nada a sobrinha, devido a seu estado. O padre achou estranho todas as portas e janelas do casarão estarem fechadas numa tarde quente, mas Esther só permitia abri-las nas noites de lua nova.
A garot de a luz a seu filho enquanto na cidade seu pai estava sendo velado, a velha tia não podia ajuda-la, era tradição de sua tribo parir sozinha, mas a garota não era indígena e não tinha idéia de como fazer, a noite foi passando, a lua atingindo seu ponto mais alto, então finalmente o bebê veio a luz, Esther o abraçou e desmaiou exausta, não conseguindo cortar o cordão umbilical, quando voltou do desmaio, estava muito fraca, havia perdido sangue , pegou uma tesoura de pano mas não consegui fazer o que era preciso, pereceu com a tesoura na mão.
Ninguém no vilarejo ficou sabendo do destino de Esther, nem tampouco de seu rebento, só sabiam da tia velha que era tida como maluca, caduca e afins, pois se isolara de todos, e só abria as janelas nas noites quentes de verão ou primavera, sempre na lua nova. As línguas ferinas da cidadezinha diziam que a menina misteriosa fora mandada pela tia para a cidade grande, onde não faria vergonha a família , também havia a corrente que pensava que a garota havia sido trancada no porão pela velha louca, pois também enlouquecera depois de dar a luz a uma criatura horrenda que assombra as fazendas adjacentes, o assunto se transformou em lenda na região, mas ninguém nunca se atrevera a perguntar a velha depois das missas dominicais, nem tiveram coragem de visita-la em sua casa.O menino Aparecido, ficou aos cuidados da tia que agora estava cegueta, mas sua mãe nunca saira do seu lado, assim ele cresceu, e todas dúvidas que tinha sobre a vida perguntava a sua mãe, e toda que esta sabia, respondia. A tia mal enxergava um palmo a frente do nariz, e além da idade avançada tinha o garoto como meio doido, pôr conversar com a mãe morta, mas ela mesma também o fazia, de uma maneira diferente, confundindo a realidade, só sabia que nos momentos mais difíceis se flagrava tomando conselhos de sua sobrinha, e esta sempre tinha um palavra de alento para a tia.
Logo a energia elétrica chegou na roça, então a tv passou a ser a companheira de Aparecido na maioria de seu tempo, era nela que via tudo que nunca poderia conhecer pessoalmente, pois seu mundo era a casa na roça, o espirito da mãe que o acompanhava, a tia e agora a televisão. Isso o transformou num adolescente introspectivo e solitário.Quando a época chegou, os programas que via na tv lhe trouxeram dúvidas e curiosidade, mas sua mãe em nada pode ajuda-lo, este seria um problema que teria que resolver sozinho, e a medida que Aparecido perdia a inocência, sua mãe entrava num estado de catatonia, o deixando ainda mais solitário.Quando era mais novo sempre teve a companhia e o conselho da mãe, agora estava se sentindo cada vez mais sozinho e necessitando de um amigo, mas quem iria querer a amizade de um rapaz de dezesseis, grudado a mãe catatônica pelo cordão umbilical, afinal ele sabia que era uma aberração da natureza.
Através de um programa vespertino de tv educativa, descobriu uma biblioteca pôr correspondência, e um clube do livro, então abandonou sua tão antiga companheira (tv) e se entregou a nova modalidade de entretenimento, conheceu o serviço de correios, criou um grande círculo de amigos pôr correspondência, e através ds cartas teve amigos de todo o Brasil e alguns estrangeiros. Sempre dizia ser como um personagem de algum livro ou da tv, mas notou que uma amizade verdadeira não poderia ser baseada em mentiras, então resolveu mudar o teor de seu discurso, passando a falar(ou melhor , escrever) sobre as belezas de sua região. Dizia como era belo o nascer do sol, ou o entardecer pôr detrás dos montes, os pássaros cantando nas árvores ao amanhecer, ou a lua, que em cada quarto exibe um brilho diferente, descreveu o jardim secreto que sua mãe lhe contara, e pôr falar destas coisas bonitas, despertou a curiosidade em algumas pessoas, então começou a receber propostas de visitas, ficando assustado com a impossibilidade de viajar ou receber pessoas em sua casa, foi obrigado a inventar uma mudança de estado, fez novos amigos pôr correspondência, mas desta vez adotando uma caixa postal, assim não correria riscos de surpresas desagradáveis, lentamente fora abandonando o hábito de escrever, mas uma garota resistiu a todas as cartas não respondidas e insistiu, insistiu muito, e uma das missivas da moça Aparecido sentiu um toque de sinceridade e isolamento, se identificou com este lado da personalidade da garota e saiu de seu silencio postal.Depois de algumas confissões mútuas, a garota contou ser deficiente visual, e ele entedeu porque as cartas eram escritas a máquina. Agora tinha duas amigas a biblioteca e Luzia, não vivia mais na completa solidão e tinha um motivo para continuar sua caminhada pela vida.Luzia fazia parte de um núcleo de apoio ao deficiente visual, e numa das cartas , citou a possibilidade de uma excursão a Águas Calmas afim de conhece-lo pessoalmente, Aparecido topou sem fazer milongas, e foi logo planejando tudo para a chegada de seus novos amigos.Seu Manoel, o velho da venda era muito bisbilhotero , e estranhou a compra de D. Conceição, comentou com sua esposa:
-Minha véia, agora a muié pirou de vez, pra que que ela que tanta coisa? – sua mulher era uma velha banguela e rabujenta de cabelos longos, grisalhos e engordurados, sempre tinha uma aureola de suor manchando a blusa debaixo dos braços, os seios enormes caiam pôr sobre a enorme barriga e a única coisa que tinha a fazer na vida era cuidar da vida alheia, seu Manoel era calvo e tinha os dedos e os dentes amarelados do cigarro de palha, os dois juntos pareciam personagens de filme de terror b , não demorou muito e todo o vilarejo sabia da compra de dona Conceição, e novamente fora motivo de comentários, que aumentaram ainda mais quando uma van lotada de jovens cegos chegou a cidade, e o motorista pediu informações sobre como chegar a fazenda, mas nada disto importa em nossa história , pois finalmente o dia esperado chegou e Aparecido pode ver como Luzia era linda. Tinha um corpo muito bem torneado, pele morena jambo, cabelos negros como os de sua mãe, traços delicados como a pétala de uma orquídea, e nos olhos negros um mistério, sempre escondido pôr trás dos óculos escuros, detalhe que realçava ainda mais seu charme, sua voz era doce como o mel, e uma forma calma e compassada ao falar, lhe dava o carisma que conquistou o rapaz em suas cartas e ainda mais no instante em que ele a viu pessoalmente , em toda a sua aura não havia um só traço de amargura. Luzia deslizou suas mãos macias pelo rosto do rapaz e disse:
-Voce guarda um segredo maior que meu mistério, mas quando quiseres, podes me contar, eu entenderei. – Aparecido trajava um manto negro e bem longo, para que o motorista da ¨ van ¨ não pudesse ver sua mãe escondida debaixo, e ao ouvir aquelas palavras suar pernas tremeram como vara verde ao vento, então gaguejou alguma pinóia e superou o susto, depois disto cuidou ainda mais de manter distância do motorista..
O evento fora um sucesso, e o melhor dia de sua vida terminou com a promessa que haveriam outros, Luzia fora a última a se despedir, passou as mãos no rosto de Aparecido, carinhosamente beijou-lhe a face e disse:
-Nunca esquecerei seu rosto, você é uma pessoa muito diferente e especial, eu posso ver a luz da sua aura na escuridão e é a primeira vez que isso me acontece. – Aparecido sorriu timidamente dizendo até logo, com um nó na garganta, segurando o choro, não conseguiu dizer mais nada, Luzia entrou e o carro lentamente desapareceu em meio ao pó da estrada de terra.
Depois de tantos anos de solidão, ele tinha um novo grupo de amigos, que nunca descobririam seu segredo, e cada vez mais sentia desejo de viver, só para ver Luzia outra vez, escrevia com frequência para sua musa e para ela dedicava poesias, prosas e versos, não sabia quem lia as cartas, mas isso já não importava, imaginava uma amiga íntima lendo em segredo, imaginava as expressões em sua face, se imaginava falando aos ouvidos, declamando poesias, não conseguia conter a ansiedade de vê-la novamente. Outras visitas se sucederam, e com aquele grupo o jovem teve coragem para conhecer o mundo, com sua musa fora conhecer o mar, e pôr onde passavam descrevia tudo o que via, dizia como é lindo a imensidão azul do alto da serra, definindo como um horizonte sem fim, o sol se pondo a beira mar pintando o azul de alaranjado, enquanto os raios refletem na água, criando uma pintura magistral. Luzia ouviu o barulho das ondas quebrando nas pedras num eterno vai e vem , sentiu a brisa em seu rosto e o sal em seus lábio, chorou, então Aparecido sentindo-se triste pôr vê-la derramando lágrimas perguntou-lhe:
-Porque esta chorando?, É pôr não poder ver as coisas belas que descrevo-lhe?
-Não – disse ela- é pôr poder sentir, pôr poder estar aqui e viver este momento de felicidade diante desta força eterna.- depois desta viagem, Luzia pode passar o fim de semana na fazenda sem o grupo que os acompanha e finalmente ficar a sós com Aparecido.
Tarde da noite, Aparecido contemplava o firmamento da varanda de sua casa, Luzia chegou lentamente, e delicadamente colocou suas mãos sobre os ombros dele e lhe pediu:
-Me descreva o que esta vendo meu amor.- apontando para todas as direções, num movimento circular. Aparecido fechou os olhos e começou a falar:
-Vejo o céu azul escuro cobrindo o mundo todo como um abraço de Deus, as estrelas brilhando no manto azul são como centelhas de amor nos chamando para junto delas, a lua é como se fosse nossa mãe dizendo que ainda não estamos prontos, porque somos muito jovens.Então Luzia pergunta pelo jardim secreto, de que tanto falava nas cartas, o rapaz pega em sua mão e instintivamente segue rumo ao lugar desconhecido até mesmo para ele. A lua iluminando os pastos num manto prateado, Aparecido olhou para sua mãe , que se escondia debaixo do manto negro, ela estranhamente havia deixado seu estado de catatonia e lhe sorriu, aprovando sua atitude com um meneio de cabeça, caminharam rumo a floresta sob a luz do luar, o rapaz sentia um misto de felicidade e ansiedade, quando chegaram a floresta, Aparecido não sabia que direção tomar, então sua mãe o pegou pela mão os guiando até o jardim. Tudo estava como a vinte anos atras, então se sentaram numa pedra a beira da lagoa, Luzia sentiu o cheiro das flores e a brisa da noite dominando seu corpo, se despiu completamente e foi em direção a água, sentindo uma atração incontrolável, Aparecido fez o mesmo, levando sua mãe presa ao cordão umbilical.
-Me diga o que estas vendo Aparecido.
-Estou vendo uma cachoeira de beleza tão misteriosa como a sua, a lua iluminando toda a chapada, enquanto as orquídeas multicores nos vela.
-Me abrace aparecido! Pediu em tom de súplica, então ele a abraçou como se fossem tornar uma só pessoa.
-Para onde foi seu segredo?- perguntou surpresa, pois a sensação de nunca estarem a sós desapareceu.
-Meu segredo reencontrou seu lugar aqui no jardim secreto- ficaram em silêncio pôr alguns instantes.
-Pai , eu a trouxe de volta. – falou Aparecido, a moça correu os olhos pôr todos os lados e perguntou:
-Com quem falas, só vejo a lua, as estrelas , a cachoeira e o lago, a floresta e as orquídeas a nos velar?
O.144.O sábio não chinês - Eliane F.C.Lima
Ficou admirando a estatueta “no seu momento”, como chamava algumas horas da manhã que dedicava à leitura, sentado na biblioteca, diante de uma estante cheia de livros. Era muito bonita mesmo, de porcelana fina. Fina e cara. Era um sábio chinês antigo, de uma daquelas dinastias, como havia lhe avisado o dono do antiquário. Intelectual, a comprara por amar os livros e as obras de arte. E, quando em um daqueles momentos tinha levantado a cabeça para refletir sobre o que estava lendo, batera com os olhos nela. Mas o que seria um sábio, chinês ou não? Ele responderia às questões da vida? Daria conselhos às pessoas? Saberia, por fim resolver, com facilidade, as questões da própria vida? Um sábio seria mais feliz que as outras pessoas? Nesse caminhar, lembrou-se de um velho, meio desdentado, que vivia numa cidadezinha do interior, onde tivera um sítio há muitos anos. O velho não tinha profissão. Aliás, o velho não tinha nada, uma casinha de um cômodo, caindo aos pedaços, se é que aquilo podia ser chamado de casa. Vivia de expediente, como o povo diz, capina aqui, retira entulho lá. Ganhava só para comer... e mal. Fora a caridade do povo do lugar, um pouco menos pobre, que gostava muito dele. Não sabia ler e não tinha ideia de absolutamente nada mais que não as cercanias em volta. Ia muito raramente até o centro de comércio, com muito susto. Não sabia que havia um mundo enorme em volta dele. Um dia lhe perguntaram se ele havia votado para presidente. Ele perguntou se presidente era o mesmo que “perfeito”, que ele pronunciava com um “r” muito palatal. Então perguntaram, de novo, se ele sabia o que era um prefeito. “É o dono de tudo em volta, até da cidade”, disse rindo muito, todo contente da explicação. - Até de você? - Inté! – e riu mais ainda, talvez por se sentir, assim, protegido. Contava que dormia muito bem. Que era isso que um homem feliz devia fazer. Não sem antes agradecer pelas coisas boas que tinha.
Fonte: http://conto-gotas.blogspot.com
O.143.O espírito do parque - Eliane F.C.Lima
Ela vem não sei de onde. De repente, ela está lá, fazendo caminhada no Aterro do Flamengo. Será?
Mas não caminha, dança uma melodia que só ela escuta, sem fiozinho de aparelho de som no ouvido.
E é uma dança sem ritmo, meio dança meio andar. O corpo faz um requebrado meio torto, saindo um pouco da direção reta.
E traz, enrolado debaixo do braço, um saco verde de plástico, grande. O mesmo, sempre.
Para que será? Onde ficará guardado, quando não está ali? Será que dança também em outros lugares?
Não olha para ninguém. Vai indo, naquele passo incerto.
De repente, do mesmo modo que veio some. Não se sabe o quanto caminha, não se vê a sua volta, como fazem todos os que ali estão.
No entanto, é aquele caminhar rápido das outras pessoas, se ultrapassando, como quem vai para algum lugar, caras sérias, volta feita,
sem a finalização de um objetivo, sem a realização de um projeto que parecia indicar a pressa e a concentração, que lembra loucos de hospício,
sua desorientação.
Olhados de longe são incompreensíveis.
A mulher estranha, não. Parece não querer chegar a lugar nenhum, mas caminhar por puro prazer no meio da natureza, uma festa lúdica, uma comemoração.
Falta-nos, a nós, um bom saco verde a que nos agarremos.
Fonte: http://conto-gotas.blogspot.com
O.142.O Poder das palavras - Eliane F.C.Lima
Quando olhava para a janela da cozinha do apartamento ao lado via o papagaio pendurado no poleiro, perna acorrentada. A moça olhava e dizia: - Como vai? Ele nunca respondia. Aliás, só ouvia uns grasnados sem sentido. Para ela, pelo menos. Imaginava que devia ser revolta, pedido de socorro, condenado sem advogado. Era piada, mas não conseguia achar graça. Sempre combinava que ia consultar o Ibama sobre aquilo. Os dias iam, corridos, as horas mal davam para tudo. Sábado e domingo, ninguém ia atender em repartição pública. Um dia, cabeça em sua janela, ouviu do outro lado: - Como vai? Arrepiou-se toda, como a própria ave fazia. Não acreditou. Parece que para confirmar a dúvida, a repetição: - Como vai? Agora em outro tom, mais alto e aflito. Exigência de resposta. - Eu vou bem. E você, como vai? - Como vai? – repetiu a ave, feliz do contato. Ficaram nesse diálogo monótono algum tempo, cada um querendo saber como o outro ia, sem resposta, mas muito alegres de se falarem. Até que a hora reclamou a saída. Todos os dias, agora, ela ia para a janela, saudar o novo amigo. Alguns dias depois, entrou com ela no elevador um homem comentando com a mulher: - Papagaio imprestável. É mudo. Não adianta ensinar. Viu que era o vizinho dono da ave. “Papagaio imprestável”? Afinal, um papagaio só presta para si, aquela era boa. Além de tirar da mata, de acorrentar sua patinha, ainda insultava o bichinho. Teve vontade de dizer quem é que não prestava, contar a verdade, que o papagaio falava, sim, era inteligente. Mas não ia trair o amigo. Ao contrário. Deixaria de almoçar, mas, naquele dia, ligava para o Ibama. Quando desligou o telefone, pensou, vitoriosa, que o papagaio não era mudo, é que ele só queria falar na hora certa.
Fonte: http://conto-gotas.blogspot.com
O.141.O Inusitado - Eliane F.C.Lima
Sentou-se no bar, meio escurinho, aconchegante. Pediu um drinque, uma coisinha para comer. Tudo leve. Na verdade, estava ali porque não aguentava mais a solidão. Queria conhecer alguém. Há algum tempo não namorava. E seus últimos relacionamentos tinham sido todos frustrantes. Só achava uns homens meio bobos, desinteressantes, que não queriam se entregar. Não era compromisso propriamente o que ela queria. Não no sentido literal. Ver-se sempre, ir aos mesmos lugares, andar pra lá e pra cá juntos? Não. Mas queria poder contar um momento difícil, ter o outro interessado realmente, ouvir uma opinião. Escutar coisas engraçadas, ditas com sensualidade, mas, principalmente, com muito estilo, ao ouvido. E ter um chamego gostoso, beijos de carinho, um homem que entrega a vida toda naquele momento apenas. Para enfrentar a semana de trabalho e estudo que viria, com a bateria amorosa recarregada. Depois que o garçom se afastou, bebeu um gole e relanceou os olhos em volta. Foi de mesa em mesa. Até que foi atraída para uma, ao canto, onde encontrou uns olhos, que a olhavam. Mas não diretamente. E, lá da adolescência, veio a expressão poética machadiana: os olhos de ressaca, que vão puxando para dentro, como o mar revolto. Uns olhos... de mulher! Sorriu por dentro. De mulher?! Mesmo surpresa percebeu que estava gostando muito, muitíssimo daquilo. Tornou a sorrir, agora para fora.
Fonte: http://conto-gotas.blogspot.com
quarta-feira, 25 de dezembro de 2024
O.140.O descobridor - Eliane F.C.Lima
Sentou-se no banco vazio do ônibus e viu o pacote embrulhado e amarrado. Olhou em volta e não viu o dono. Ficou na dúvida, ao saltar, perigos rondando nesse mundo moderno. Mas levou o pacote para o escritório. Cheio de medo, respirou fundo e abriu: dentro, um caderno de capa dura, verde, devia ser caro. E todo em branco. Aquela era uma grande novidade em seu dia de náufrago da vida. Acordava pela manhã e lamentava ter acordado, lamento mesmo de estar vivo. Dormir era o único lenitivo daquele vazio em que se debatia agora. Comer, andar, trabalhar, decidir-se a prosseguir, enfim, era como um esforço digno de Ulisses. Mas fez o que era obrigado a fazer o resto do dia. Porém separou alguns momentos do final para sentar-se, colocar a data do dia e tomar nota de seu achado, meio um aventureiro que lança a bandeira de seu país em terra nova. Mas, quando percebeu, tinha escrito mais, tinha narrado todo o dia, tinha falado de si, de sua angústia, de seu nada. E, passada a hora de sair, trancou a porta apressado, como alguém que comete um pequeno deslize, quase um pecado. Mas com uma sensação de não sei quê, talvez alívio? No dia seguinte, ao acordar, lembrou da aventura anterior. Olhando no espelho do banheiro, escova e pasta, ousou sorrir? E foi ao encontro de suas difíceis tarefas... e de seu caderno. Abriu o armário e olhou para ele com um pré-entusiasmo. Fez tudo que devia, mas, vez ou outra, lançava um olhar de namorado para a porta da estante. E contou no relógio os minutos que faltavam para o encontro. Afinal, abriu-o, acariciou a página em branco, lançou a data e escreveu. E não narrava mais sobre si, havia seres que nunca tinha conhecido, histórias que nunca tinha vivido. E foram páginas e páginas devoradas, numa fome de louco. E foi embora numa viagem mística, numa viagem mágica, numa viagem magnética. Saiu tarde do trabalho, caminhando com as mãos nos bolsos, assobiando uma canção inventada.
Fonte: http://conto-gotas.blogspot.com
O.139.O Filho do Lubisomen - Eliane F.C.Lima
Havia um grande boato sobre um lobisomem, rondando, à noite. Um disse me disse, um viu aqui, o outro, acolá, ferrolhos na porta, mal escurecia, mesas ajudando a trancar. Uma noite, um deu um tiro no breu, duas botucas vermelhas, olhando, dizia. O bicho sumiu para sempre. Nessa mesma noite, sem mais nem menos, o pai de Honório, depois que todos dormiram, pegou suas roupas e se foi, sem acordar a mulher. Já andava falando em cidade grande há algum tempo. O povo juntou tudo e garantiu que ele era o lobisomem morto, por mais que a mulher mostrasse as roupas sumidas. Honório herdou o destino. Meio sorumbático desde menino pela saudade do pai, as pessoas fugiam dele. “Andar de noite, nem pensar”, implorava a mãe. Um vivente corre menos perigo em uma megalópole do que em estúpido lugarejo do interior. Não namorava, não dançava em festas. Se chegasse à quermesse da igreja com a mãe, o pessoal ia arredando, mudando de barraca. O pobre, sem jeito, desistia e ia embora. Até que chegou ao local uma mulher, cabelos até os ombros, alguns fios brancos. Pensãozinha no banco, muito sisuda e viúva, também do interior, não dava trela a vizinho, ciosa de sua reputação e da língua alheia. Vivia trancada em casa. Mas falaram... e não foi de sua honradez. As conversas eram agora sobre uma bruxa que havia na cidade: ela. O destino, porém, que não quer saber de mitos folclóricos, levou Honório para capinar o terreno de Alzira – a feiticeira –, sem emprego fixo, o coitado, por pura rejeição de todos. E trocou telhas e pintou a casa e acabaram se amando. No casamento, a mãe dele, madrinha, uns poucos primos e primas de outra cidade. E o padre, muito aliviado e abençoando o casal. A cidade, contudo, ainda tinha munição: o assunto então era a dúvida sobre que tipo de tinhoso iria nascer dos dois.
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terça-feira, 24 de dezembro de 2024
O.138.O porta-retratos sobre o piano - Eliane F.C.Lima
Toninho era diferente de seus irmãos.
Todos eram branquinhos, ele, moreninho.
Todos eram robustos, ele, um graveto.
Todos paradões. Toninho, a vida era pouca para ele.
Puxou ao bisavô paterno. Diziam.
Quebrou a perna, um dedo da mão, costurou várias vezes a cabeça, teve dor de barriga feia: comeu fruta desconhecida.
No quintal, conhecia todos os buracos de formiga.
Achava a minhoca mais escondida. Os cachorros andavam atrás feito sombras.
Mal aparecia, rabinhos balançando, verdadeira adoração. Pois se o garoto era pura ternura!
É claro, Toninho morreu menino. Viveu mais do que qualquer um em menos tempo.
E precisava ver, com urgência, o que havia no outro mundo.
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O.137.O melhor do mundo - Eliane F.C.Lima
Fica horas em frente à televisão da loja. Chega mansinho, disfarçando, encosta na parede.
No fim, perde o controle: senta no chão. Até que os vendedores enxotam da passagem.
Então, acorda. Deixa o gramado, Ronaldinho expulso do jogo. Sabe tudo do ídolo.
Só assim. Entreolhando, espiadinha aqui, outra ali: sai de si. Não mora mais na rua.
Não está mais sujo nas mãos, nos pés, nas orelhas. Não tem mais fome, nem falta de carinho.
Não fugiu das surras do pai bêbedo, agora preso; da mãe, recebendo homens em casa, filhos postos para fora no meio da noite.
Ele é amado, aplaudido, mora no estrangeiro. Aparece no comercial, sorrindo, faz maravilhas com a bola.
Os pedestres param na calçada. Alguns riem: ele gesticula, mexe pés e mãos, mímica inconsciente, dublê do outro.
Não vê ninguém, nem a si mesmo, sombra de craque; não escuta nada, nem o ronco da barriga.
Dorme no Largo da Carioca, mas roda por Uruguaiana, Sete de Setembro, Avenida Rio Branco, atrás de televisão ligada.
Pode ir até o Catete, chegar à Glória ou dar uma esticadinha até o fim do mundo. Apelido: Doidinho, posto pelos companheiros de rua.
Quase não fala. Só sussurra, age, pensa como o outro. É o outro. Acreditar na realidade é matar Ronaldinho, puro suicídio.
Troca tudo pelo aparelho mágico, mesmo a disputa pela comida. Recebe só a sobra dos amigos, de pena.
Não rouba, honestidade involuntária: não enxerga passantes, nem bolsas, nem celulares. Só grama, e bola e pernas e gol e grito e comemoração.
Nem cheira cola, sua droga é mais forte.
Menino ainda, é muito magro,só olhos enormes,orelhas enormes,pés enormes:para ver o rosto moreno,para ouvir o sotaque amado,para andar em sua busca maluca.
Por dentro: no peito, coração apaixonado; na cabeça, pura imaginação.
De manhã, olha os jornais. Procura ansiosa por retratos do jogador. E sorri, extasiado.
Sem coragem para perguntar o que está escrito. Se vê a cara de outro que também olha a foto, confere a aceitação, a admiração.
Se ouve elogio, derrete-se todo: elogiam Doidinho, admiram Doidinho, aceitam Doidinho. À noite, outra tela.
No sonho, Doidinho faz propaganda, dá entrevista, joga de novo com o corpo famoso. Acordando, é uma surpresa: só ele, Doidinho.
Hoje a polícia vem correndo atrás de camelô. Pedra para todo lado. Ronaldinho pula da televisão, corre, sonâmbulo, pela calçada.
Um baque no peito. Matou a bola? Escorre suor ou sangue?
Vertigem forte, somem as pessoas: nas nuvens, de avião voando para a África do Sul. Vai ganhar a Copa.
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O.136.Ovelha Negra - Eliana F.C.Lima
Ovelha Negra
Eliane F.C.Lima
De um dia para o outro, a casinha abandonada se viu habitada de novo para espanto da cidade, que, há muito, não tinha um bom motivo para se espantar.
Senhor passado dos sessenta anos – ninguém pôde fixar esse ponto –, ele mesmo pintou a casa, por dentro e por fora.
Sempre de costas.Ninguém conseguiu dar um bom-dia ou boa-tarde. Não atendeu nem às palmas insistentes do verdureiro, convocado para assuntar.
Não comprou o leite tiradinho na hora, de Mané de Elvira, porque não mostrou a cara para aquele “Ô de casa”.
Na tendinha da esquina, nem um ovo comprado, o que um vivente sempre acontece de precisar, ou em dia de temporal, uma vela para acender.
Nada. Saía com um jipezinho meio velho. Fechava o portão, cara virada para dentro.
Na certa comprava tudo fora e as miudezas de esquecimento: algodão, vela, palito, agulha e linha, lâmpadas várias.
A curiosidade não aguentou mais. O que um não sabe, esse um inventa: “Médico, tinha deixado um paciente morrer e foi para ali, curtir a culpa.
Não queria ser reconhecido.” O contador e os ouvintes, aumentado o caso, cada um dando um palpite, iam para casa de alma lavada.
Novidade esfriada, não satisfazia mais. “Era um ex-presidiário.
Pena cumprida, tinha voltado para casa e encontrado a mulher com outro.”
Primeira versão: envergonhado e desiludido de tudo, sumira de casa.
A outra: ele matara os dois e caíra no mundo. Durante um tempo, vigiado a distância, o medo maior que a bisbilhotice. -
É um padre – o pedreiro-benzedor-eletricista na porta da padaria, enchendo os copos de cerveja dos amigos –
Fez mal a uma mocinha lá na paróquia dele e teve que fugir.
Logo umas vinte pessoas batiam na porta do padre local, casa avarandadinha atrás da pequena igreja, meio ressabiadas.
O santo homem, embora conselheiro de todas as horas, não dava asas à parolagem maldosa de suas ovelhas. -
Mas que história é essa?! – cortou aquele assim que ouviu a patacoada –
É isso que vocês andam inventando também às minhas costas? – vinte cabeças sacudiram para um lado e para o outro, todas envergonhadas –
E a Santa Igreja é para estar assim mal falada na boca do povo?! Se escrevo ao Papa, ele vem aqui em pessoa excomungar a cidade inteira.
Voltados para casa, ficaram lá trancados até o dia seguinte. Não viram o fusquinha do padre sair rumo à matriz da cidade vizinha.
Lá pediu ao pároco para tomar informações seguras sobre o homem.
Nenhuma evidência apurada ou notícia de algum caso daqueles, o próprio padre resolveu procurar o novo morador para acalmar as línguas do rebanho tão bem conhecido, integrando o homem à comunidade.
Vendo que o jipe do homem lá estava, bateu palmas na frente da casa: em vão.
Depois chamou mais alto e forte. Deu a volta e gritou por trás, lá para os fundos da cozinha. Ninguém respondeu.
Ao desistir, muitas cabeças se esconderam rapidamente para não serem escovadas ali mesmo, o padre com cara de fulo de raiva.
O fusquinha, na toda, saiu levantando uma poeira tão densa quanto a ira do religioso.
No domingo, a cidade em peso foi à missa e quem se demorou não achou lugar para sentar.
O carrancudo dono da farmácia, que tinha birra com a igreja, foi ali só para gozar a cara do representante de Roma.
Ritual começado, silêncio absoluto, a igreja toda só olhos e ouvidos para o padre. Ele oficiou a missa, sempre sério até a hora do sermão: -
Meus amigos, pela pureza e salvação das almas dessa comunidade, sou obrigado a revelar a vocês onde se esconde o demônio.
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O.135.O tempo - Eliane F.C.Lima
Colecionava páginas de calendário.
Ia enfiando na gaveta para guardar os acontecimentos.
Um dia, sem mais nem menos, colocou-as lado a lado sobre a mesa.
Olhava para elas. Estava ali o passado. Ano a ano.
Reconhecia algumas datas. O aniversário, a morte da tia.
Porém, por mais que olhasse, não ouvia suas vozes.
Eram páginas mudas. Mortas.
Era como se o tempo que escorreu estivesse trancado em um cofre.
Inacessível.
Então fechou os olhos e lembrou o dia da morte da tia: o telefonema, o táxi, as pessoas, a tarde toda, o enterro.
Agora o passado falava, tinha som, tinha cor, movimento.
O passado revivia no presente.
Viu que apenas o presente existia.
De olhos fechados, ainda, pensou no futuro.
Era mais difícil ainda, nenhuma imagem para ajudar.
Grande esforço de concentração encenar o futuro.
Que era isso: acontecia como representação de teatro, pura ficção.
Enorme criatividade, sua mente era um talentoso dramaturgo.
Mas nenhuma certeza.
Abriu os olhos, o presente era momentâneo e certo: sobre a mesa muitas páginas de calendário.
Todas mudas.
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O.134.O Gondoleiro do Amor - Castro Alves
Teus olhos são negros, negros, Como as noites sem luar... São ardentes, são profundos, Como o negrume do mar; Sobre o barco dos amores, Da vida boiando à flor, Douram teus olhos a fronte Do Gondoleiro do amor. Tua voz é cavatina Dos palácios de Sorrento, Quando a praia beija a vaga, Quando a vaga beija o vento. E como em noites de Itália Ama um canto o pescador, Bebe a harmonia em teus cantos O Gondoleiro do amor. Teu sorriso é uma aurora Que o horizonte enrubesceu, — Rosa aberta com o biquinho Das aves rubras do céu; Nas tempestades da vida Das rajadas no furor, Foi-se a noite, tem auroras O Gondoleiro do amor. Teu seio é vaga dourada Ao tíbio clarão da lua, Que, ao murmúrio das volúpias, Arqueja, palpita nua; Como é doce, em pensamento, Do teu colo no languor Vogar, naufragar, perder-se O Gondoleiro do amor!? Teu amor na treva é — um astro, No silêncio uma canção, É brisa — nas calmarias, É abrigo — no tufão; Por isso eu te amo, querida Quer no prazer, quer na dor... Rosa! Canto! Sombra! Estrela! Do Gondoleiro do amor.
segunda-feira, 23 de dezembro de 2024
O.133.O Teu Riso - Pablo Neruda
Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas não
me tires o teu riso.
Não me tires a rosa,
a lança que desfolhas,
a água que de súbito
brota da tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.
A minha luta é dura e regresso
com os olhos cansados
às vezes por ver
que a terra não muda,
mas ao entrar teu riso
sobe ao céu a procurar-me
e abre-me todas
as portas da vida.
Meu amor, nos momentos
mais escuros solta
o teu riso e se de súbito
vires que o meu sangue mancha
as pedras da rua,
ri, porque o teu riso
será para as minhas mãos
como uma espada fresca.
À beira do mar, no outono,
teu riso deve erguer
sua cascata de espuma,
e na primavera, amor,
quero teu riso como
a flor que esperava,
a flor azul, a rosa
da minha pátria sonora.
Ri-te da noite,
do dia, da lua,
ri-te das ruas
tortas da ilha,
ri-te deste grosseiro
rapaz que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando meus passos vão,
quando voltam meus passos,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
porque então morreria.
O.132.O Homem e a Mulher - Vitor Hugo
"O homem é a mais elevada das criaturas.
A mulher é o mais sublime dos ideais.
Deus fez para o homem um trono;
Para a mulher um altar.
O trono exalta; o altar santifica.
O homem é o cérebro; a mulher o coração, o amor.
A luz fecunda; o amor ressuscita.
O homem é o gênio; a mulher o anjo.
O gênio é imensurável; o anjo indefinível.
A aspiração do homem é a suprema glória;
A aspiração da mulher, a virtude extrema.
A glória traduz grandeza; a virtude traduz divindade.
O homem tem a supremacia; a mulher a preferência.
A supremacia representa força.
A preferência representa o direito.
O homem é forte pela razão; a mulher invencível pelas lágrimas.
A razão convence; a lágrima comove.
O homem é capaz de todos os heroísmos;
A mulher de todos os martírios.
O heroísmo enobrece; os martírios sublima.
O homem é o código; a mulher o evangelho.
O código corrige; o evangelho aperfeiçoa.
O homem é o templo; a mulher, um sacrário.
Ante o templo, nos descobrimos;
Ante o sacrário ajoelhamo-nos.
O homem pensa; a mulher sonha.
Pensar é ter cérebro;
Sonhar é ter na fronte uma auréola.
O homem é um oceano; a mulher um lago.
O oceano tem a pérola que embeleza;
O lago tem a poesia que deslumbra.
O homem é a águia que voa; a mulher o rouxinol que canta.
Voar é dominar o espaço; cantar é conquistar a alma.
O homem tem um fanal; a consciência;
A mulher tem uma estrela: a esperança.
O fanal guia, a esperança salva.
Enfim...
O homem está colocado onde termina a terra;
A mulher onde começa o céu...
O.131.Os versos que te fiz - Florbela Espanca
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer!
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer.
Têm dolência de veludos caros,
São como sedas pálidas a arder...
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer!
Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda...
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz!
Amo-te tanto! E nunca te beijei...
E nesse beijo, Amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!
O.130.Os Meus Versos - Florbela Espanca
Deita-os ao nada, ao pó, ao esquecimento,
Que a cinza os cubra, que os arraste o vento,
Que a tempestade os leve aonde for!
Rasga-os na mente, se os souberes de cor,
Que volte ao nada o nada de um momento!
Julguei-me grande pelo sentimento,
E pelo orgulho ainda sou maior!...
Tanto verso já disse o que eu sonhei!
Tantos penaram já o que eu penei!
Asas que passam, todo o mundo as sente...
Rasgas os meus versos... Pobre endoidecida!
Como se um grande amor cá nesta vida
Não fosse o mesmo amor de toda a gente!...
sábado, 30 de novembro de 2024
O.129.O verbo amar - JG de Araujo Jorge
Te amei: era de longe que te olhava
e de longe me olhavas vagamente...
Ah, quanta coisa nesse tempo a gente sente,
que a alma da gente faz escrava.
Te amava: como inquieto adolescente,
tremendo ao te enlaçar, e te enlaçava
adivinhando esse mistério ardente
do mundo, em cada beijo que te dava.
Te amo: e ao te amar assim vou conjugando
os tempos todos desse amor, enquanto
segue a vida, vivendo, e eu, vou te amando...
Te amar: é mais que em verbo é a minha lei,
e é por ti que o repito no meu canto:
te amei, te amava, te amo e te amarei!
sexta-feira, 29 de novembro de 2024
O.128.O amor antigo - Carlos Drummond de Andrade
O amor antigo vive de si mesmo,
não de cultivo alheio ou de presença.
Nada exige nem pede. Nada espera,
mas do destino vão nega a sentença.
O amor antigo tem raízes fundas,
feitas de sofrimento e de beleza.
por aquelas mergulha no infinito,
e por estas suplanta a natureza.
Se em toda parte o tempo desmorona
aquilo que foi grande e deslumbrante,
o amor antigo, porém, nunca fenece
e a cada dia surge mais amante.
Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor.
quinta-feira, 28 de novembro de 2024
O.127.O tempo passa ? Não passa - Carlos Drummond de Andrade
O tempo passa? Não passa
no abismo do coração.
Lá dentro, perdura a graça
do amor, florindo em canção.
O tempo nos aproxima
cada vez mais, nos reduz
a um só verso e uma rima
de mãos e olhos, na luz.
Não há tempo consumido
nem tempo a economizar.
O tempo é todo vestido
de amor e tempo de amar.
O meu tempo e o teu, amada,
transcendem qualquer medida.
Além do amor, não há nada,
amar é o sumo da vida.
São mitos de calendário
tanto o ontem como o agora,
e o teu aniversário
é um nascer a toda hora.
E nosso amor, que brotou
do tempo, não tem idade,
pois só quem ama escutou
o apelo da eternidade.
quarta-feira, 27 de novembro de 2024
O.126.Olhos - Angélica T. Almstadter
Há olhos cravadosnas paredesna rua,no chão.
Não há olhos de ler,de chorara cura, a alma pura.
Olhos rodeiama imensidão sem nada ver.
Nas órbitas tristesde um branco sem fim moram os olhosde uma vida.
A vida inteirase percorrepelos olhos;e o olhos vida aforapercorrem a vida.
Morre-se sem dos olhosentender a razão.
Sem deles ter impresso a paixãoa tristeza dos dias,o sorrisoou a dor.
terça-feira, 26 de novembro de 2024
O.125.O anjo de pedra - Cissa de Oliveira
“Sabe lá o que é passar mais de oitenta anos sendo lembrado de forma humilhante sobre alguma coisa que você nem ao menos precisa esquecer? Por aí você vê que ter nascido preto foi o meu primeiro karma. Não, azar, que karma é palavra que preto do meu naipe não conhece; ou porque não conhece mesmo ou porque pensam que a gente é burro, por fora de tudo, sem percepção. Se a gente deixa, vai ficando o dito pelo não dito, o pensado pelo não pensando e por aí à fora. O segundo karma foi ter nascido pobre. O terceiro: continuar pobre, mesmo aposentado, e pior, dependente de filho”
Naquele dia Otoniel tinha acordado com a revolta da vida toda. Pior, revolta calada, daquela que mói por dentro sem fazer barulho, até deixar o sujeito uma casquinha assim, de nada. Casquinha fiiiina, curvada de tudo; qualquer coisa quebra, de atropelamento a ingratidão de filho.
- Já ta pronto?
Otoniel, calado estava, calado ficou. Ara!
- Coloca o cinto, pai... Não ta vendo que a calça ta caindo?
Otoniel abotoou o cinto num dos quatro furos que ele mesmo foi acrescentando desde que foi morar na casa do flho. Um a cada ano, mais ou menos. A ponta do cinto pendia. Era um tanto de tira de couro, fina, meio molenga, tão molenga que não se segurava nos passantes do cós da calça preta. Ele se arrumava bem devagar, o que irritava o filho.
Logo na porta, ao sairem, o vento encheu a camisa clara de seu Otoniel, um dos seis moradores do barraco número 528 do Parque Esplendor. Nem o nome bonito consertava a realidade do lugar. Seu Otoniel seguia meio curvado. Os pés descalços das crianças, pra lá e pra cá, atrapalhando a passagem pelas vielas estreitas. Vez em quando ouvia uma saudação, intuia um olhar, alguma profunda consternação. Não era pela pobreza não, que isso era coisa que ali não faltava. É que os vizinhos sabiam...
Venceram o aglomerado de minúsculas casas. Do outro lado, o muro pintado de vermelho, o portão grande e os carros de bombeiros.
- A civilização ...
- Nós também somos civilização!
- É mesmo? Resmungou Otoniel, colocando o chapéu de palha sobre a cabeça coberta de fios brancos.
Caminharam por cerca de quinze minutos. Seu Otoniel com dificuldade, Alcides, o filho, com impaciência. Atravessaram a passarela e logo seguiam pelo asfalto da rua paralela à rodovia. Os portões altos das casas mostravam bem a preocupação da vizinhança para com o Parque Esplendor. Ah, que aquilo incomodava seu Otoniel tanto quanto o sol daquele dia, por mais que o vento arejasse por dentro da camisa dele, com um movimento que mais parecia brincadeira. Brincadeira de criança.
Suzete e ele tiveram cinco filhos. Delmira, Juca, Ataíde, Alcides e Melissa, nessa mesmíssima ordem. Teriam mais, não fosse o destino ter arrancado dele, e de forma trágica, a companheira. Chegados na cidade grande, ela se empregou mesmo antes que ele. Suzete, criada na lida do interior de Pernambuco, era mulher pra toda obra, e não ia recusar serviço. Depois, tinha uma carinha boa, gestos calmos, olhos brilhantes, cílios longos, curvados nas pontas. Parecia afagar, a cada piscar de olhos, os viézes do cotidiano. E quando se emocionava? Anjo disfarçando, enxugando as lágrimas com a pontinha dos dedos.
- A minha Suzete inspira confiança... dizia seu Otoniel, para o constrangimento dos patrões dela. No trabalho, Suzete corria pra todo lado. Fogão, tanque, arrumação, crianças que iam e voltavam da escola, uniforme, mesa posta. Do lado dos patrões, diziam que no dia do acontecido Suzete se descuidou com a penela de pressão. Queimaduras terriveis, trinta e nove dias de internação, respiração artificial, sofrimento nela e nos demais. Infecção hospitalar. Por fim, a notícia que ninguém queria: morte.
Seu Otoniel fez o que pode. Terminou de criar os filhos sozinho. Os dois mais velhos se revezavam entre a escola e o cuidado com a casa e com os irmãos. Com exceção de Melissa, que terminou o ginásio, todos largaram a escola precocemente. Juca e Ataíde pra trabalhar. Delmira porque engravidou e foi morar com um rapaz, até o dia em que ele sumiu no mundo e ela voltou pra casa com dois filhos. Depois se juntou com outro e foi morar em Salvador. Alcides não estudou porque nunca foi muito chegado a estudar. Dava trabalho que só! No fim, nem bandido, nem honesto. Alcides fazia o tipo malandro esperto. Vivia de bico. A vida traçou os seus meandros. O tempo voou, até que seu Otoniel, há muito aposentado, se viu na condição de ter que morar com um dos filhos. Que fique esclarecido: da aposentadoria nem o cartão do banco ele via! Coisa do Alcides.
Mais uma subida e alcançariam o semáforo da principal avenida local. “Suzete, Suzete, as crianças ainda pequenas... Trabalho de sol a sol. Cansaço do bom. As tardes de domingos, simple s,preguiçosas, festeiras. Salgueiro, no interior de Pernambuco, que nem luz elétrica conhecia, parecia vibrar. Tudo acontecia ao mesmo tempo. Música, dança, grito de criança, risada e conversa alta, misturados igual a leite com fruta, nesses aparelhos da cidade, os liquidificadores.”
- Vê se fica aí! Nada de ir pra outros semáforos. Às seis horas eu volto, ta? Otoniel fez que sorriu, mostrando que entendeu. Logo estendeu o chapéu. Os carros parando no semáforo... algumas moedas. “A casa era pintada de amarelo. No inverno lembrava um sol fincado no chão, no meio da chuva, bem ao alcance das mãos. O verde da plantação crescia do mesmo tanto que a alegria. Mas isso era quando Deus queria. De um lado, Ele, do outro a força da seca. Era preciso pensar nos filhos, no futuro deles, na educação... Onde foi que eu errei...?”
- Vai trabalhar!
- Olha, hoje não tem moedas, vovô! Fica para a próxima.
- Tudo bem aí? Alguns motoristas, muitos dos quais já familiarizados com seu Otoniel, cumprimentavam. Talvez entendessem aquela dor que encolhidinha por dentro devia vazar. Colocavam algum dinheiro no chapéu estendido de seu Otoniel, ao que ele agradecia sempre. Não naquele dia, consumido que estava.
Foi duro pra abandonar as terras, os parentes, os amigos, enfiar a cara no mundo desconhecido da cidade grande. Tudo pela família. Agora, andando com dificuldade, entre um e outro carro, ia feito liquidificador, misturando o presente e o passado. Quando chegasse em casa, o valor arrecadado que ele nem contava, ia direto para o filho. Os outros filhos também estavam casados, cuidando cada um da própria vida. Um ou outro aparecia de vez em quando no barraco. Queriam saber das coisas, até traziam mimos vez por outra, mas disfarçavam mal o alívio por não terem de cuidar dele. Como se não bastasse, nessas ocasiões ele estava proibido pelo Alcides de tocar no assunto “semáforo”.
“É... ainda outro dia o Alcides não voltou... e querem saber, foi bom! Eu fiquei aqui até escurecer. Deu nove horas e nada. Foi quando eu decidi voltar sozinho. Antes, de vingança, eu comprei com o dinheiro das esmolas uma caixa inteira das paçocas que o maltrapilho do outro semáforo vende. Ele disse que é sozinho na vida. Daí que na sorte a gente é muito do igual!”- E aí vovô, cuidado.
- O que deu nele...?
O seu Otoniel, por demais admirado, não ouvia nada. Podia jurar que o anjo de pedra, da catedral do outro lado da avenida, enxugava uma lágrima com a pontinha dos dedos. Ele pensava em Deus, nas alegrias, nas decepções, no tempo que passa rápido, na fragilidade entre o certo e o errado, entre o bem e o mal. Foi atravessando a avenida. “Estou como um liquidificador meio quebrado. Ah, que saudade da esperança que ficou lá no fundo, bem no passado." Uma freada tardia, seguida de um baque, levantou Otoniel bem acima da superfície. Então já era tarde, e tudo escureceu.
segunda-feira, 25 de novembro de 2024
O.124.O menino e o tio - Pastorelli
Feito intrépido Rocicler enfrentando a poeirenta estrada, o velho caminhão apelidado carinhosamente de Mazzarope resfolegava em mais uma viagem transportando o pessoal.
Em pé na carroceria junto com os outros, ele se equilibrava numa disfarçada brincadeira para ver quem permaneceria mais tempo em pé. Brincadeira estúpida, não gostava. Preferia ficar deitado no assoalho de tábuas brancas que exalava cheiro de cevada contemplando o céu azul, mas como estavam em mais de vinte pessoas era obrigado a participar dessa brincadeira boba.
Seus olhos castanhos esverdeados claro lembravam os olhos da vó dardejavam um inquieto brilho de raiva, duro, magoado, de quem espera uma oportunidade, e quando ela chegasse não iria perdê-la, ah! não, não iria perdê-la por nada, seria seu passaporte para a vida futura.
A humilhação queimava na mente como ferro em brasa. Os ouvidos martelavam as gozações, as risadas ao verem ele sem calça, nu, pelado na frente de todos. O tio, irmão mais velho da sua mãe, segurando sua calça era quem mais gozava da sua cara. Como odiara o tio, odiara aquele momento. Seus olhos fuzilaram o tio, seus dentes rangeram um contra o outro num ódio imenso. Nada pudera fazer, a não ser se esconder. Num safanão arrancara a calça da mão do tio e fugira. Ah! Ele não perdia por esperar.
Chegavam à cidade.
Parariam na casa do tio como faziam toda vez que havia matança de porcos, para a distribuição do quinhão pertencentes a cada uma das famílias. Era nesse momento que ele iria ter a chance. Era só ficar de olho aberto, vigiando.
Enquanto o velho Mazzarope atravessava a rodovia entrando na cidade, revia os acontecimentos que gostaria nunca ter acontecido. Descendo do caminhão no pátio da fazenda, a primeira coisa que viu foi os porcos sacrificados. Um estava em cima da mesa sendo destrinchado pelas mulheres, o outro boiava num tacho de água super quente, e logo mais adiante, perto do chiqueiro, um terceiro guinchava e se esperneava percebendo seu destino. Por fim, se rendendo deixou-se esfaquear pela mão firme do tio que decidido enterrou fundo a faca pontuda na carne do animal espirrando sangue que fora recolhido numa grande caneca.
E quando arrumavam as coisas para vir embora, o tio teve a infeliz idéia de arrancar sua calça na frente de todos. O que lhe doía não era o fato de ficar nu, as gozações, os deboches, as risadas das meninas, das mulheres, e sim, o não poder se defender, o não poder revidar o tio sendo obrigado ao vexame.
Vigiando os movimentos viu quando o tio ao chegarem foi deitar-se para um pequeno e leve descanso. Esperou até que o tio fechou os olhos e devagar, sem fazer ruído, chegou bem perto. Sentia até o hálito do ronco.
Não esperou mais. Desceu a mão em cheio, foi um tapa estrondoso no rosto do tio que assustado não teve tempo de segurar o sobrinho que em desabalada carreira fugia do quarto.
A partir desse dia nunca mais falou com o tio.
domingo, 24 de novembro de 2024
O.123.O papagaio - Pastorelli
O campinho como era chamado o terreno baldio que ficava atrás da casa àquela hora estava vazio. O que lhe proporcionou uma alegria safada.
Queria testar primeiramente antes de mostrar aos amigos o papagaio que fizera com ajuda do pai na noite anterior.
Olhando para os lados viu que o dia estava excelente. O vento soprava docemente o que prometia boa diversão. Paciente esticou a linha e sem muita dificuldade conseguiu colocar o papagaio no ar.
A linha quase totalmente estirada produzia na sua mão vibrações pequena que ao seu comando o papagaio subia, descia e com pequenos toques na linha fazia com que ele embicasse ora para a esquerda, ora para a direita.
Já previa a estupefação dos amigos, as exclamações de admiração. Veriam que agora eles tinham um competidor à altura, sorriu satisfeito.
Nisso ao dar um puxão um pouco mais violento, a linha perdeu a força. O pipa estava caindo. Largou a lata de linha e saiu correndo. O campinho não era grande, mas o vento para desespero do garoto arrastou o pipa para o outro lado da rua.
Estava quase perto do pipa caído no asfalto quando viu surgir o carro vindo pelo lado esquerdo. Aflito ele acelerou as pernas e gritando e gesticulando os braços procurou chamar a atenção do motorista.
Porém o veículo aumentou a velocidade não dando oportunidade para que ele chegasse a tempo para salvar o papagaio. Com os olhos fixos cheios de lágrimas pegou os destroços do chão e com passos lentos entrou em casa.
sábado, 23 de novembro de 2024
O.122.Os mil tons da solidão - Angélica T. Almstadter
acenando ao vento se afasta,
já fora do alcance dos sons,
sua obtusa lembrança gasta
na trilha matizes em mil tons
a rede rompeu laços tantos
é hora de navegar a solidão
espraiar em outros recantos,
com fúria, sua autêntica ilusão
sem traves, obstáculos ou afins
sobre os próprios passos
poder calçar solfejos de serafins
um brinde borbulha na taça
a palavra se sujeita a míngua
de qualquer língua em ameaça
sexta-feira, 22 de novembro de 2024
O.121.Out - Angélica T. Almstadter
Chic é ousar ser é não negar o tesão,muitos não se levam a auto estima.
Estar on as vezes é muito vazio;
Estar out é uma saca da pra grandes vôos.
A solidão é off a alegria está out;um clic e se acende.
Mas chic mesmo é saber ser out curtir a solidão gostar muito de ser
beber o vazio e voar com alegria.
quinta-feira, 21 de novembro de 2024
O.120.Olhos de ressaca - Angélica T. Almstadter
Mataram meu humor na curva de uma palavra
O riso ficou pendurado num canto sem graça da boca
minha voz foi encoberta pelo som dos silêncios entre olhados cúmplices
meus olhos pensos soluçaram de dor e não mais sairam do porta-retratos da sala
segunda-feira, 28 de outubro de 2024
O.119.O que queremos - Angélica T. Almstadter
O que esperamos nós brasileiros quando estamos diante da campanha para presidência do Brasil?Esperamos ver os candidatos e pessoas próximas empenhadas em mostrar suas propostas para um Brasil cada vez melhor para todos os brasileiros, não só promessas; reais possibilidades de que possam ser passadas para o exercício prático.Mas será que é isso mesmo que pensam todos?Parece que esqueceram que os maiores interessados, nós brasileiros; povo, portanto a maioria, não quer saber se fulano é santinho ou se ciclano usa vermelho, verde ou amarelo, nós pensamos como um todo pensa: O Brasil que queremos viver, com escolas, educação, saúde, moradia, democracia e paz!
O palco da política nessa campanha virou tanque da lavadeira (que me desculpem as lavadeiras) para lavar todo tipo de roupa suja, inclusive a íntima, em público, enfiando goela abaixo do pobre eleitor falsas promessas, mentiras, boatos maldosos e muita fofoca. Um desrespeito total com quem assiste a esse patético jogo do poder.A democracia é um jogo onde todos têm direito a livre expressão, que não quer dizer bagunça, nem que esse direito não deva ser exercido com responsabilidade, muito pelo contrário; quem tem o poder da palavra, o espaço para se manifestar tem que dar o exemplo e para ser respeitado tem que se dar o respeito.
Por mais que contestem vivemos num país livre, democrático e laico que tem mostrado sua cara no mundo. graças ao empenho do governo do Lula, porque se hoje o Brasil é um país soberano e respeitado lá fora, isso não aconteceu por acaso e nem da noite para o dia, mas pelo esforço do nosso presidente em fazer desse país um país melhor, menos desigual, que sabe o que quer e que luta para que o povo brasileiro entre no mundo moderno usando as mesmas mídias que as elites, com os mesmos direitos a educação, emprego, moradia e a participação ativa na sociedade, a mesma que antes era reservada só a escolhidos e bem nascidos.As eleições presidenciais de 2010 vão entrar para a história, por muitos motivos, entre os quais pela volta do ódio, da busca do retrocesso calcado nas alianças mais espúrias com a extrema direita mais reacionária e retrógada. Uma eleição onde se pretendeu avivar a Inquisição, que foi a face mais vergonhosa da nação cristã. Ainda nessa eleição se pretendeu trazer para o centro das discussões, questões religiosas que não podem e não devem decidir questões eleitorais, destruindo com isso a possibilidade de uma discussão sadia e amplamente divulgada; a do aborto como questão de saúde pública e não do modo aparvalhado e covarde que foi. Um jogo ambicioso onde não se mediu as conseqüências de se atirar no adversário sem observar que na reta estava o próprio pé.Há que levar em grande conta nessa eleição de 2010 a maciça participação das mídias independentes, a blogosfera e o twiter que contribuiram de maneira extraordinária para o envolvimento do eleitor, formando uma massa crítica que não se intimida. Com esse cenário de crescimento da participação popular na internet, já podemos afirmar com certeza de que estamos caminhando a passos largos para uma consciência política muito maior; não há meio mais democrático do que a mídia eletrônica, apesar da crueldade que também pode ser destilada por essa mesma mídia.
Vivemos num país onde quem detêm o poder da palavra escrita, radiofusão e televisiva são as grandes fortunas, que não estão acostumadas as serem confrontados, mas que nessa eleição, muito mais que em outras, tiveram que conviver com a mídia independente o tempo todo fazendo contraponto, filmando e mostrando a verdade. É preciso dar cada vez mais voz ao povo para que ele se manifeste livremente e também faça parte do processo democrático: "Todo poder emana do povo e em seu nome será exercido".Essa pequena burguesia que se mantêm no poder da palavra escrita e falada não gosta de povo que pensa e está tendo que engolir a rebelião pensante levantada pela blogosfera. Já não mais se mostra como o grande poder de "informação" e sim como uma imprensa marrom, golpista que se desnuda a cada dia diante até dos eleitores mais simples.Só seremos uma verdadeira democracia quando o povo conseguir participar do processo ativamente, consciente da sua participação, lendo e escrevendo ciente da sua responsabilidade e participação inequívoca sem que lhe seja tolhido o direito de livremente se manifestar e enxergar a verdadeira face do poder, formando uma consciência crítica.Apesar de ser clara a manipulação de uma imprensa facciosa, ainda podemos tirar dessa eleição lições para nunca mais esquecer: Queremos uma país cada vez mais politizado, consciente e não vamos permitir que nos enfiem goela abaixo convicções pré-estabelecidas, mentiras e principalmente exclusão do povo no processo democrático.Não podemos deixar que nos calem, somos a voz dessa nação e não é meia dúzia de pessoas que vai nos dizer o que fazer, ler ou pensar, muito menos impor os "seus modelos de liderança".Queremos um pais de iguais direitos e deveres.Queremos um país soberano e com as riquezas divididas com o povo e não com estrangeiros.Queremos um BraSil para brasileiros cidadãos e não para aproveitadores de plantão!
quinta-feira, 24 de outubro de 2024
O.118.O destino de todos - Teca Miranda
Nem penso em morrer
vou deixar acontecer.
Velório não quero,
logo estarei voando
sem urna a me prender.
Minha lembrança ficará
o resto não me importa.
Estarei presente nas ações
deixadas por mim.
Para perpetuar o amor
serei semente no infinito
cantando nos corações
daqueles que ficaram.
quarta-feira, 23 de outubro de 2024
O.117.Ocaso do amor em si bemol - Herculano Alencar
Foi-se a última nota musical,
plangente, em dissonante sofrimento:
Um Si bemol, acordes de um lamento,
a sostenir um grande recital!
A partitura enverga-se ao final!
Resta uma só clave em solidão,
no lúgubre sepulcro da canção,
tal qual fora um doente terminal.
Foi-se a última dor de uma paixão:
Um Si bemol, em tom quase divino,
deixando amargo rastro no refrão,
qual mugidos de dor do violino!
Do pinho, um pedaço de ilusão
traz a sonata do amor ao seu destino.
terça-feira, 22 de outubro de 2024
O.116.O velho e o mar - Ernest Hemingway
(logo nas primeiras linhas deste clássico senti vontade de, mais do que lê-lo, resumir a história do humilde velho que pescava sozinho em seu barco. Espero ter conseguido passar a essência de Santiago nas minhas linhas) Lucelena Maia
Noventa e cinco páginas de uma narrativa direta, com frases curtas e diálogos secos.
Ernest Hemingway anuncia em O velho e o mar a história de Santiago, um pescador cubano em fim de linha. Foi escrito em 1952 e lhe rendeu o Prêmio Pulitzer. Em 1954, o Nobel da Literatura.
Dia após dia, Santiago sai com seu barco e volta de mãos vazias. Um velho humilde, magro e seco, com as mãos cobertas de cicatrizes. A princípio levara em sua companhia para pescar um garoto para auxiliá-lo, mas com o passar do tempo e sem que pescasse peixe algum, porque os pais do garoto acharam que ele se tornara um azarento, puseram o filho Manolin para trabalhar em outro barco. Mas, o garoto tinha afeição forte pelo velho pescador e o ajudava a carregar os rolos de linha, o gancho e o arpão quando regressava com a embarcação vazia. Talvez porque o velho ensinara o garoto a pescar e por isso ele o adorava. Todo final de tarde os dois encontravam-se, carinhosos e confiantes um com o outro, em diálogo de respeito e admiração. Também de ajuda. O garoto arranjava-lhe iscas, comida e café. O velho examinava o garoto com seus olhos queimados pelo sol. O garoto gostaria de tornar a sair com o velho, mas Santiago economizava palavras dizendo-lhe não, que ele agora estava num barco de sorte. A noite chegava e precisavam descansar para a próxima manhã, quando o velho iria acordá-lo, bem cedo, em sua casa. O garoto ajudava Santiago a carregar os rolos de linhas, arpão e o gancho para o barco, em seguida tomavam café, depois cada um deslizava sua embarcação para a água, mas não antes de o garoto desejar a Santiago sorte. – Boa sorte, meu velho! Boa sorte, ele devolvia. Ainda na escuridão o velho seguia e, à medida que remava, pensava no mar com querer bem. Nesse dia, o sol levantou-se do mar e o velho Santiago enxergou os outros barcos, lá mais para a terra. Depois o sol começou a tornar-se mais forte, as águas começaram a brilhar mais. Agora os barcos estavam muito longe. Decidiu aventurar-se mais longe ainda, nas águas da corrente do Golfo. Entre observar os movimentos das varas penduradas fora do barco, viu uma andorinha-do-mar, com suas enormes asas pretas. Pôs-se a remar lenta em direção ao ponto onde ela estava pairando. Um grande cardume de dourados. Os meus peixes grandes devem estar ai por perto, falou em voz alta. Adquirira o hábito de falar em voz alta quando estava sozinho, mas não sabia dizer desde quando. A linha da popa deu um esticão e ele largou os remos. Trouxe o peixe para dentro do barco. Albacora, da família dos atuns, de pelo menos três quilos. Esse peixe lhe serviria de refeição. Já não podia ver o verde da costa. O mar estava muito escuro e a luz formava prismas na água. No momento em que examinava as linhas viu uma das varas verdes dobrar-se violentamente. Começava então uma extraordinária batalha entre o homem e o animal. Que o melhor e o mais corajoso vença, pensou o velho marinheiro, tamanha a força do peixe. O peixe também é meu amigo – disse ele em voz alta. Nunca vi ou ouvi falar de um peixe desse tamanho. Mas eu tenho de matá-lo. “Se o garoto estivesse aqui, podia molhar os rolos de linha”, pensou. “Se o garoto estivesse aqui. Sim, se o garoto estivesse aqui”. O sol estava nascendo pela terceira vez desde que se fizera ao mar quando o peixe começou a nadar em círculos. Sentia sono, sede, cansaço pelo enorme esforço que fazia. Sentira-se também, por duas vezes, estonteado e fraco. “Nunca estive assim tão cansado em toda a minha vida”, pensou o velho. “Trabalhe agora você, meu peixe. Eu trabalho depois”. O peixe ia no seu terceiro circulo quando o velho o viu aparecer à tona d´água. Quase não podia acreditar no seu comprimento. “Não é possível que tenha esse tamanho todo”. Santiago estava transpirando muito, mas não era só por causa do sol. Em cada uma das lentas voltas que o peixe dava, o velho ganhava linha e poderia ter a oportunidade de usar o arpão. Mas nada era fácil, mais uma vez, entre muitas, o peixe tornou a retomar o equilíbrio e afastou-se. - Peixe! – gritou-lhe o velho – Peixe, de qualquer modo você tem de morrer. Acha que precisa matar-me também? Pôs toda a sua alma no puxão e na agonia do peixe, que veio para junto do barco. Erguendo o arpão tão alto quanto lhe era possível, cravou-o para baixo com toda força. Conseguiu espetar o peixe de lado. O peixe parecia flutuar no ar, por cima do velho. Em seguida caiu na água. “Agora preciso preparar os laços e a corda para prendê-lo ao barco, pensou. Tenho de preparar tudo, encostá-lo ao barco, prendê-lo bem, fixar o mastro e tomar a direção para a costa”. As mãos muito machucadas, em carne viva, não o preocupavam. “Curam-se depressa com o sal da água” Não precisava de uma bússola para lhe indicar o sudoeste. Só precisava sentir os ventos alísios e o enfunar da vela. A embarcação navegava bastante bem. Bebeu a metade de água que lhe restava e comeu os camarões abrigados em um molho das algas amarelas do golfo que o arpão enganchara. Tentava manter-se lúcido. Já havia decorrido uma hora quando apareceu o primeiro tubarão. Viera das profundezas porque o sangue do peixe se espalhara pelo mar. “Fora bom demais para durar” pensou o velho. “Não posso impedi-lo de nos atacar, mas talvez possa cravar o arpão na cabeça do tubarão”. Assim ele fez. O tubarão permaneceu imóvel à tona d´água e o velho fixava-o com o olhar. Abocanhou uns quinze quilos de carne. Exclamou Santiago. Mas matei o tubarão que mordeu o meu peixe. Um homem pode ser destruído, mas nunca derrotado. Algumas outras vezes vieram os tubarões. Ele matou a todos, mas, a cada nova investida deles perdia as ferramentas que usava para livrar-se daqueles famintos Galanos. Não tinha ele nenhuma outra palavra que melhor exprimisse os seus sentimentos nesta situação, por isso falava em espanhol. Ficara sem o arpão, a faca que prendera ao remo, também o remo e muito da carne do peixe. “Era um peixe que poderia ter alimentado um homem durante todo o inverno”, pensou o velho. Gostaria que tudo isso tivesse sido um sonho. “Já devo estar bastante perto”. “Que pode você fazer agora, se eles atacarem durante a noite? Lute! Lute até morrer. Mas o que é que um homem pode fazer contra eles no escuro e sem armas?”
Vieram todos juntos e o velho só conseguia distinguir as barbatanas na água. Lançava e tornava a lançar o cajado com desespero e depois sentiu alguma coisa agarrar no cajado e levá-lo para o mar. Mas agora os tubarões atacavam o peixe todo da popa à proa. Durante a noite alguns tubarões atacaram a carcaça, mas afastaram-se ao verificar que já não lhes restava nenhuma carne. “Eu nunca tinha sido derrotado e não sabia como era fácil. E o que me venceu? Nada. Fui longe demais”. Não havia ninguém para ajuda-lo e por isso foi com dificuldade que arrastou o barco para terra, deixando-o a meio da praia, sem conseguir leva-lo mais longe. Foi então que conheceu como era profundo o seu cansaço. Dormia ainda quando, pela manhã, o garoto espreitou pela porta. O garoto viu que o velho respirava. Saiu para a rua para buscar café. Durante todo o caminho não parou de chorar. Muitos dos pescadores da aldeia estavam em volta da embarcação do velho. Um deles mediu o esqueleto com um pedaço de linha. Manolin levou a cafeteira para a cabana de Santiago e sentou-se ao lado da cama, até ele acordar. - Venceram-me, Manolin – falou a custo. - Venceram-me de verdade.
- Ele não o venceu. O peixe, não.
- Não. Você tem razão. Foi depois. Quando saiu para a rua e a caminho da aldeia, o garoto começou a chorar. Lá em cima, na cabana, o velho estava dormindo de novo, com o rosto escondido no monte de jornais que lhe servia de almofada.
segunda-feira, 21 de outubro de 2024
O.115.Onde estarão as estrelas - Lucelena Maia
...Se eu as sinto no côncavo de meu corpo,
espalhadas
repousando nas pupilas de meus olhos,
mosqueadas
fazendo-me enxergar além das algemas
apertadas.
... Se eu as sinto presentes no céu de minha boca,
esculturadas
temperando com saliva todas as palavras
desajustadas
que teimam sair, de meus indóceis lábios,
amotinadas.
... Se eu as sinto como agasalho à fria pele
acinzentada
aquecendo em mim, muito além da superfície
macerada
dando-me luz para que eu busque as belezas
espalhadas
... Se eu as sinto penetrando em minha alma
fadigada
transformando-a pândega, calma e
aliviada.
Onde estarão as estrelas, se não, dentro de mim,
guardadas?
domingo, 20 de outubro de 2024
O.114.O que se pretende preservar? - Lucelena Maia
Analisando com cuidado os relacionamentos, percebe-se que se esfacelam com o tempo.
Na forma figurativa, por exposição exagerada ao sol, porque a madrugada é fria, pelo indiferente lusco-fusco do entardecer.
Na verdade e talvez, por serem secundários perante as tantas prioridades que a vida impõe no dia-a-dia e, ainda, recordando a aurora da vida, porque os sonhos eram muitos e as mazelas desconhecidas, a cautela apenas um adereço sem importância.
Quem sabe, se esfacelem pelo excesso de respeito a individualidade de cada um!
DNA é único e intransferível. É prova absoluta de independência do ser humano em relação ao outro, exceto com pai e mãe, o que não os favorece para o bom relacionamento com seu filho, é preciso conviver para fertilizar amor e aguardar que os anos digam do caráter.
A palavra complexidade tem dono; o homem, independente de classe social, raça ou instrução escolar.
Apesar das confusões interiores que permeiam o ser humano, em certo momento da vida tudo fica claro e simples, nem sempre fácil, mas oportuno para reconhecer o que se perdeu por ser rude e o que ainda pode-se reconquistar num relacionamento.
Pessoas despretensiosas têm maior facilidade para enxergar o azul do céu, onde estrelas brilham e a lua se mostra linda e livre, em qualquer fase.
Pessoas despojadas são capazes de opinar sobre uma obra de arte, exporem-se, ao mesmo tempo ouvir com disponibilidade de aprendizado o que diz o crítico.
Pessoa desprevenida facilmente é levada a acreditar naquilo que lhe sopram ao ouvido, mergulhando num mundo imaginário em que reina absoluto o propósito alheio.
Nada a preservar quando a intenção interior é ferir. Esquecidas, impróprias e inúteis tornam-se as palavras respeito e diálogo.
No entanto todo ato pode ser revisto, desde que desfeitas as malícias, as intenções duvidosas, desde que as mãos estejam limpas pelas águas cristalinas do coração e nulos sejam os mecanismos de oportunismo.
Tornar-se uma pessoa melhor é observar mais a si do que ao outro, cuidar de revisar os momentos da vida vividos, e ponderar; como tenho alimentado meus sentimentos!
A cada um é dado o direito de expiar os seus atos.
Há tempo de plantar e tempo de colher!
sábado, 19 de outubro de 2024
O.113.O roçar do outono - Lucelena Maia
Junto ao vento
na fria manhã outonal
sobre rústico peitoril da janela
cortina esvoaça
num vai e vem sem destino
deixando entrar
folhas secas
a se acomodarem no chão...
O vento, mais uma vez,
ao outono se abraça,
as folhas secas, antes,
sossegadas,
levitam e se vão
rumo ao firmamento,
livres de quaisquer anseios,
como bolhas de sabãoque encantam os olhos brindam a estação,
depoisjanelas elas adentramindo acomodarem-se no chão...
sexta-feira, 11 de outubro de 2024
O.112.O rio Capibaribe - Lucelena Maia
Sofre o rio
de águas serenas
que inspirou ao poeta ( João Cabral de Melo Neto a Chico Science)
escrever-lhe poemas...
Sofre o homem
consciente do crescimento desordenado;
causador da grande poluição
a este rio histórico, hoje, assoreado...
Sofre o rio,
sofre o homem;
um, sucateado
outro, de braço cruzado
Mas o Capibaribe tem salvação!
Diz o poeta, nos céus, ajoelhado;
que o povo pernambucano, devoto,
numa corrente de braços comece a limpá-lo!
quinta-feira, 10 de outubro de 2024
O.111.Olhos que [nada] vêem - Lucelena Maia
...Nada vêem, mas sabem da lua
Branca como neve, redonda, sua
Em sentinela no céu, à noite, linda,
Reunida com estrelas infindas.
...Nada vêem, mas sabem no rosto
De quem segue à risca destino tosco,
Silenciosa brisa a beijar-lhe a face.
No pensamento, a sombra desfaz-se
...Nada vêem, mas sabem dos pés
Descalços, esfolados, em peregrina fé
Ladeira a baixo, ladeira a cima
Cansados a caminhar pela sina
...Nada vêem, mas sabem das mãos,
Que buscam à volta alguma razão
Para as linhas que lhe cortam a palma
A desvendarem a cegueira d'alma
Que buscam à volta alguma razão
Para as linhas que lhe cortam a palma
A desvendarem a cegueira d'alma
terça-feira, 8 de outubro de 2024
O.110.O mundo que criei está triste - Douglas Farias
Mente minha mente No frio, meu coração esfria
Solidão que me deixa só Imaginário mundo se cria
Longe como a lua
Seco como o outono
Sombrio como a noite
Meu mundo está assim
Vejo que nessa noite
Não há mais estrelas
Elas não irão me iluminar
Hoje meu mundo ficou triste
Meço minhas palavras
Elas confundem meu andar
Guardo meu coração
Com ele crio meu mundo
segunda-feira, 30 de setembro de 2024
O.109.Ouça minha canção - Douglas Farias
Em cada canto você me encanta
O seu brilho, a sua fala, o seu olhar
Dai-me seu sorriso e terá uma nova canção
Deixe seu coração e terá alguém para amar
Ouça, sinta, expresse essa canção
Com carinho tenho escrito para ti
Para que se sintas inteiramente amada
E assim todos os dias sorrires assim
Ouça essa canção, apenas ouça
Ela diz o quanto amo você
Eternamente estará guardada
Para nunca mais te esquecer
O.108.O amor chegou - Thaina Santiago
Quando te vi passar
Perdi meu chão
Perto do céu cheguei
E ficava de bem longe
Só te observando
Então o destino
Nos fez se reencontrar
Quando te vi passar
Voltei a sorrir
Me liberei
Para te amar
E você se aproximou
Com aquele olhar...
Logo veio a sedução
Quando te vi se aproximar
Meu coração acelerou
E em fim
Você me beijou
Cheguei a duvidar
Suspirar de agonia
Quando percebi
O amor chegou
Você é meu grande amor
Meu tudo, e 1º em tudo
Na frente de tudo
E que sege eterno
Tudo isso.
O.107.Olhe pra cima - Douglas Farias
Tem tudo para ser feliz filha minha
O que vai provar com todo esse orgulho?
Não demonstra muito sentimento,
Porém vive a sofrer calada,
Divida esse cargo, essa luta também é minha
Sempre sonhou, mas nunca vivenciou
Porquê insiste nesse caminho?
Chegaria muito mais longe, se quisesse
Porém não me deixa ajudá-la
Já se esqueceu quem eu sou
Prenda a respiração, pois mais fundo estás
Consegues enxergar minha mão?
Já lhe disse: não importa o abismo, eu irei para te buscar
Olhe outra vez, segure minha mão
Não irei lhe soltar de novo
Seu lindo rosto ainda mostra você
Ainda se lembra de quem és?
Ama com um olhar
Fala com um sorriso
És muito mais, és tudo pra mim
O.106.O que é um verdadeiro amigo - Anali Sabino
Disse um soldado ao seu comandante:
- O meu amigo não voltou do campo de batalha. Meu comandante, solicito autorização para ir buscá-lo.
Respondeu o oficial:
- Autorização negada! Não quero que você arrisque a vida por um homem que, provavelmente, está morto!
O soldado ignorando a proibição saiu e uma hora mais tarde voltou mortalmente ferido, transportando o cadáver do seu amigo.
O oficial estava furioso:
- Eu não lhe disse que ele estava morto?! Diga - me, valia a pena ir até lá para trazer um cadáver?
E o soldado, moribundo, respondeu:
- Claro que sim, meu comandante! Quando o encontrei, ele ainda estava vivo e disse-me: "Tinha a certeza que virias!"
Um amigo é aquele que chega quando todos já se foram.
O.105.O canto dos pássaros - Douglas Farias
Hoje de manhã não a vi na cama, estava na janela olhando os pássaros cantando. Reflexiva, não parava de observá-los. Parece que eles fazem lembrar do dia em que casamos, como foi especial. Seu rosto lindo transparecia a felicidade do momento que vivenciamos, doce momento, que a alegria contagiava a todos que ali estavam, triste nostalgia, que faz com que a lembrança nos deixe perto dos momentos bons e ao mesmo tempo longe para voltar a vivê-los. Pois nesse mesmo dia, tínhamos algo especial, que era fruto de nossa união.
Será que iremos, um dia, entender o por que disso? Perdas nos deixam mais fortes, a tendência é de nos prepararmos na próxima rasteira, porém ficamos mais frios, quem volta a amar quando lhe arrancam o coração? O tempo trará essas respostas e levará as cinzas que ficaram no caminho. Pois continuaremos a andar.
Volte para cama, o passado nos molda para viver o presente preparando o futuro. Amanhã ao acordar, verá que os pássaros voltarão a cantar e dessa vez será para nós vermos que tudo se renova, e assim juntos cantaremos.
O.104.Outra vez poder sentir - Douglas Farias
Outra vez poder sentir
Douglas Faria
Hoje meu desejo é
De estar bem junto a ti
Seu perfume tão suave
Bem perto poder sentir
Triste, olho para o céu
É o mais perto que posso chegar
Sei que um breve dia
Nós vamos nos encontrar
Lembro de seu sorriso
Nas noites de verão
Só você sabia
Alegrar meu coração
Sinto sua falta
Como queria você aqui
Seu perfume tão suave
Outra vez poder sentir
O.103.O que importa - Anali Sabino
Não importa do que é o mundo , o importante são os seus sonhos.
Não importa o que você é , o importante é o que você quer ser.
Não importa onde você está , o importante é para onde você quer ir.
Não importa o motivo, o importante é o querer .
Não importa suas mágoas, o importante mesmo são suas alegrias.
Não importa o que você já passou, o passado guarde na sua lembrança .
Não veja, apenas olhe.
Não escute, apenas ouça.
Não toque, apenas sinta.
O mundo é um espelho, não seja apenas um reflexo.
Só acreditando no futuro você conseguirá a paz para alcançar seu sonhos.
Afinal, o que importa ? Você importa ...
O.102.Ontem a noite lembrei de voce - Thaina Santiago
Ontem à noite conversando com minha mãe,
Chorei emocionada ao falar de você.
E pude perceber o quanto tu és importante para mim,
E que já não consigo mais viver sem te ter.
E que por mais que o tempo passe
Seremos sempre amigos e namorados, eu jamais te deixarei.
Eu sinto teu cheiro aqui
E relembro se nossos momentos,
De repente estou a sorrir.
Por este motivo digo e repito
Que não preciso de outro aqui comigo,
Por que você é o meu tudo e muito mais.
Você é o sol que me aquece,
O ar que me rodeia,
A chuva que molha minha boca,
E todo esse sentimento
E tudo o que eu sinto por você
Aumenta a cada dia.
O.101.O presente que lhe dou - Douglas Farias
O presente que lhe dou
Não é simples de encontrar
Ele é conquistado
O presente que lhe dou
Não pode ser comprado
Tem valor, mas não há preço
O presente que lhe dou
Não é material
Ele não se consome pelo tempo
O presente que lhe dou
Tem sentimentos
Que mil palavras não descreveriam
O presente que lhe dou
É para renovar seus sonhos
Sonhos perdidos, Sonhos conquistados
O presente que lhe dou
É para sempre lembrar
O quanto você é especial
O.100.Os degraus - Mário Quintana
Não desças os degraus do sonho
Para não despertar os monstros.
Não subas aos sótãos - onde
Os deuses, por trás das suas máscaras,
Ocultam o próprio enigma.
Não desças, não subas, fica.
O mistério está é na tua vida!
E é um sonho louco este nosso mundo...
sábado, 31 de agosto de 2024
E.178.Esta é a forma fêmea - Walt Whitman
Esta é a forma fêmea:
dos pés à cabeça dela exala um halo divino,
ela atrai com ardente
e irrecusável poder de atração,
eu me sinto sugado pelo seu respirar
como se eu não fosse mais
que um indefeso vapor
e, a não ser ela e eu, tudo se põe de lado
— artes, letras, tempos, religiões,
o que na terra é sólido e visível,
e o que do céu se esperava
e do inferno se temia,
tudo termina:
estranhos filamentos e renovos
incontroláveis vêm à tona dela,
e a ação correspondente
é igualmente incontrolável;
cabelos, peitos, quadris,
curvas de pernas, displicentes mãos caindo
todas difusas, e as minhas também difusas,
maré de influxo e influxo de maré,
carne de amor a inturgescer de dor
deliciosamente,
inesgotáveis jatos límpidos de amor
quentes e enormes, trémula geleia
de amor, alucinado
sopro e sumo em delírio;
noite de amor de noivo
certa e maciamente laborando
no amanhecer prostrado,
a ondular para o presto e proveitoso dia,
perdida na separação do dia
de carne doce e envolvente.
Eis o núcleo — depois vem a criança
nascida de mulher,
vem o homem nascido de mulher;
eis o banho de origem,
a emergência do pequeno e do grande,
e de novo a saída.
Não se envergonhem, mulheres:
é de vocês o privilégio de conterem
os outros e darem saída aos outros
— vocês são os portões do corpo
e são os portões da alma.
A fêmea contém todas
as qualidades e a graça de as temperar,
está no lugar dela e movimenta-se
em perfeito equilíbrio,
ela é todas as coisas devidamente veladas,
é ao mesmo tempo passiva e ativa,
e está no mundo para dar ao mundo
tanto filhos como filhas,
tanto filhas como filhos.
Assim como na Natureza eu vejo
minha alma refletida,
assim como através de um nevoeiro,
eu vejo Uma de indizível plenitude
e beleza e saúde,
com a cabeça inclinada e os braços
cruzados sobre o peito
— a Fêmea eu vejo.
E.177.Esquecimento - Walmir Becker
Agorinha mesmo,
Sem mais nem menos,
Em meio a tantos pensamentos,
Lembrei-me que te esqueci.
É que andei ocupado,
Por todos esses tempos,
Com pensamentos
Que não pensavam em ti.
E.176.Escuto a América cantar - Walt Whitman
Escuto a América a cantar, as várias canções que escuto;
O cantar dos mecânicos – cada um com sua canção, como deve ser, forte e contente;
O carpinteiro cantando a sua, enquanto mede a tábua ou viga,
O pedreiro cantando a sua, enquanto se prepara para o trabalho ou termina o trabalho;
O barqueiro cantando o que pertence a ele em seu barco – o assistente cantando no deque do navio a vapor;
O sapateiro cantando sentado em seu banco – o chapeleiro cantando de pé;
O cantar do lenhador – o jovem lavrador, em seu rumo pela manhã, ou no intervalo do almoço, ou ao por-do-sol;
O delicioso cantar da mãe – ou da jovem esposa ao trabalho – ou da menina costurando ou lavando – cada uma cantando o que lhe pertence, e a ninguém mais;
O dia, ao que pertence ao dia – De noite, o grupo de jovens, robustos, amigáveis,
Cantando, de bocas abertas, suas fortes melodiosas canções.
E.175.Entre tópicos e trópicos - Lucas Menezes Maida
Garota carioca, o seu rosto é Laranjeiras
Sua pele que me toca, o teu corpo é Mangueira
Curva
Da Urca, gira enfeitiçada da Tijuca
Que girou
Me sinuca, me truca
Pede 6
E desce do Troncal 3
Eu quero 12
Você na areia fazendo pose
Outro close, escolhe qual foto que você quer
Não quero um romance igual o do Buscapé
Quero jongo à luz do luar, sal e o sol que me consome
Quero escola de samba, mas sem Beija-Flor de codinome
É por mim, por você, por Ogum e Iansã
É pela terra, pela carne, pelo samba no morro
Vou guardar o seu amor toda manhã
Com senha e corrente num cofre boca de lobo
Do topo da favela numa varanda
Penso em uma sacada pra te impressionar
Uma que te deixe mais contente
Do que qualquer uma de frente pro mar
Entre caminhos e passeios pela orla
Ela é prata como a areia que pisamos
Dois pássaros soltos da gaiola
Presos na liberdade que criamos
Somos todos um bando de perdidos
Nos encontrando nos desencontros
Procurando, em lojas 24 horas, livros já lidos
Com finais de frases sem três pontos
Entre tópicos e trópicos, quero andar aí
Estar aí, de Cosme Velho até o Andaraí
Ver o Pôr do sol tingido de laranja, resfriando o calor
No asfalto de Ipanema, indo pras pedras do Arpoador
Ela é tão preto e branco, mas cheia de cor do lado
Um amor panóptico de cima do Corcovado
E a cidade não estava mais cinza
O Cristo rasgou as nuvens do céu nublado
E.174.Enquanto eu ponderava em silêncio - Walt Whitman
Enquanto eu ponderava em silêncio,
Retornando sobre meus poemas, considerando, muito demorando-me
Um Fantasma ergueu-se diante de mim, de aspecto desconfiado,
Terrível em beleza, idade e poder,
O gênio de poetas de antigas terras,
Como se a mim direcionasse seus olhos feito chama,
Com dedo apontado para muitas canções imortais
E voz ameaçadora, O que cantas tu?, disse;
Não sabes que há senão um tema para bardos sempiternos?
E que esse é o tema da Guerra, a fortuna das batalhas,
A feitura de soldados perfeitos?
Que assim seja, pois, respondi,
Também eu, altivo Vulto, canto a guerra – e uma maior e mais longa do que qualquer outra,
Travada em meu livro com fortunas várias – com fuga, avanço e retirada – a Vitória trêmula e deferida,
(No entanto, creio, certa, ou quase o mesmo que certa, afinal,) – O campo o mundo;
Pois a vida e a morte – para o Corpo, e para a Alma eterna,
Vede! também venho, entoando o canto das batalhas,
Eu, sobretudo, promovo bravos soldados.
E.173.Enfermidade Sulnheira - Nathaly Guatura
Suado.
Oco.
Atônito e faminto.
Visivelmente perturbado te negava e me aventuro novamente a dormir.
Naquela manhã sou tão Maiakóvski...
“Transtornado, tornado louco pelo desespero”.
Abro os olhos e o ultrarromantismo de serem salgadas, no deserto, as minhas fontes,
Deus meu, como me há ainda de doer.
Delírio, desisto de fatigá-lo, entojá-lo, socá-lo em ferro, em fogo, em pau, em pedra...
Desista, tu, de mim, pois não te sou direito nem direto.
Eu quis ser só um sujeito transitivo por aí, mãe,
Vagoso sem verbo, com complemento singular e indefinido.
Naquela noite eu sou subordinada à qualquer oração ou prece que me coubesse.
Mas em tudo sou acessório, mãe,
E eu quis teus braços! Me acorde!
Me acode! Me sacode!
Mãe, deixe que eu seja um bicho.
Eu não precisei ser integrante.
Deixe eu ser expletivo, vão, qualquer,
Futilizado porém lúcido.
Me deixe qualquer coisa, mãe!
Só não me deixe mais sonhar!
E.172.Ela pra mim - Lucas Menezes Maida
É a voz pro Cazuza
É a maquiagem pro Kiss
É a Ipanema pro Tom
É o peixe grande pro Tim
É o amarelo pra faixa
É o azul pro céu
É o preto pra Pérola
É a independência pro Padre Miguel
É o verde pro Marcelo
É o espelho pro João
É a onda pro Cassiano
É a sétima corda pro violão
É a palhetada pro Hendrix
É a margem pro Ferréz
É a cor pro Djavan
É o improviso pro Jazz
É o breque pra bateria
É o Patriarca pro Vantuir
É o templo pra Udaipur
É o tempo pro Dalí
É o cortiço pro Aluísio
É a água pra Dona Celestina
É a viola pro Paulinho
É a cuíca pro China
É a serotonina pro químico
É a anatomia pra Meredith
É a fruta pro Arcimboldo
É o cachimbo pro Magritte
É o morro pro Bezerra
É a ginga pro malandro
É a área pro Romário
É a Pessoa pro Fernando
É o líquido pro Bauman
É o instrumento pra seresta
É o sereno pro boêmio
É a poesia pro poeta
E171.E isto é o amor? - Gregório de Matos Guerra
Mandai-me Senhores, hoje
que em breves rasgos descreva
do Amor a ilustre prosápia,
e de Cupido as proezas.
Dizem que de clara escuma,
dizem que do mar nascera,
que pegam debaixo d’água
as armas que o amor carrega.
O arco talvez de pipa,
a seta talvez esteira,
despido como um maroto,
cego como uma toupeira
E isto é o Amor? É um corno.
Isto é o Cupido? Má peça.
Aconselho que não comprem
Ainda que lhe achem venda
O amor é finalmente
um embaraço de pernas,
uma união de barrigas,
um breve tremor de artérias
Uma confusão de bocas,
uma batalha de veias,
um reboliço de ancas,
quem diz outra coisa é besta.
E.170.E dai? - Walmir Becker
Na escola achava, cada amigo mais chegado,
que ele viria a ser um homem celebrado;
pensando o mesmo, ele viveu com esse humor,
fartando os seus vinte anos de labor;
E daí?" "E daí?" - cantou o fantasma de Platão. Tudo o que ele escreveu, tudo foi lido; Depois de certos anos tinha já obtido dinheiro suficiente para sua precisão, e amigos que deveras foram seus amigos; "E daí?" "E daí?" - cantou o fantasma de Platão. Seus sonhos mais felizes realizaram-se: uma velha casinha; esposa, filha; um filho ele houve, e em seu quintal cresciam ameixeira e couve; poetas e intelectuais juntavam-se-lhe à mão; "E daí?" "E daí?" - cantou o fantasma de Platão. "A obra está feita", pensou ele, envelhecido, "segundo o que em menino dei por decidido que os tolos raivem, eu não me desviei em nada, alguma coisa eu trouxe à perfeição"; "E daí?" - cantou mais alto a sombra de Platão.
E.169.Entre nós - Jelane Agyei
Entre nós olho dentro dos teus olhos e observo a imensidão a ser desvendada
e com jeitinho chego e me embriago nessa fonte tão rara
nela quero me envolver cada vez mais para te-la perto de mim
e sentir que cada dia só tem começo e nunca um fim
e descobrir no intimo do seu ser
o quanto é prazeroso em meu braços poder te ter
é com isso cada vez mais poder crescer
e ter um romance eterno com você.
Entre nós a cada manhã rola aquele lance de conquista
deve ser por que quando nossas almas se juntam ela se identificam
te quero todos os dias desde o amanhecer quando rola o primeiro olhar do dia
ate quando deito quando você pergunta como foi seu dia
nosso amor não tem limites nem dimensão muio menos hora para ser consumado
e você me faz tão feliz que ter você ao meu lado me sinto presenteado
e como um presente a ser aberto adoro te despir
e cada vez é uma surpresa pois gosto de te-la perto de mim.
Entre nós adoro nossos lances, nossas trocas de mensagens
adoro mesmo que a distância da sua vida fazer parte
nossa paixão exala essência e magnitude
e podermos nos amar não importa a forma se torna uma virtude.
se para alguns o céu é azul anil para mim é vermelho quando pinta seus lábios
e me convida a sentir teus beijos
e é tão provocante que em seus ouvidos declaro que eles são tudo que almejo
e fico descontrolado com o coração pulsando a mil batidas por minuto
o com seu olhar malicioso um outro lado de mim descubro.
Entre nós falo baixinho em seus ouvidos afim de te arrancar suspiros
e arrancar o mais puro dos seus gemidos
rola entre nós uma maravilhosa química em explosões de alegria
e por onde passamos nosso amor as flores contagia
elas desabrocham ficam tão lindas sem ser estação da primavera
e tudo começa a ficar com um clima agradável cheirando as floras raras da terra
faço orações agradecendo a Deus por te-la em minha vida
e fico amarradão quando me acorda desejando um bom dia.
Entre nós adoro como agente se completa é como goiabada com queijo
e minhas pernas bambeiam quando sinto o gosto do teu beijo
sua benevolência amor já faz parte de mim
e te digo eita qualidade boa de sentir
e nosso amor é regado a paixão e protegido pelos querubins
e tão intenso que é abençoado pelo exercito de serafins
debaixo das asas dos anjos eu te admiro
tão intensa e radiante com seu brilho.
Entre nós tenho um segredinho você que me desperta o libido
e em seu corpo sacio minha sede com teu afeto não me sinto sozinho
alias tenho outro não tenho medo de dizer TE AMO na frente de todos
e como é apaixonante essa sensação de quando nos amamos
por fim só tenho a dizer que estar com você me torna mais amável
e fico bobo com esse sentimento tão puro e notável
e em sou sorriso encontrei a luz que precisava
e hoje posso dizer que você é a parte que me faltava...
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